Na minha carta de 24 de Janeiro (tenho só rascunho)
agradeci-lhe o envio do Boletim, com a sua nota a meu respeito: se não fiz
então comentários, ou foi porque estava de corrida, ou porque sempre me é
difícil comentar o que me diga respeito: mas gostei a valer dela, e acho
excelente a sua maneira de tratar o problema da expatriação – que tem pano para
mangas: Aldous Huxley, Christopher Isherwood, S. Maugham, O’ Connor, - dezenas
de ingleses e irlandeses (dos Grandes) vivem ou têm vivido expatriados, ou
temporariamente exilados: (J.M. Foster, o D.H. Lawrence… etc.) e no entanto são
profundamente britânicos! (O T.S. Eliot e o H. James americanos, fizeram-se em
Inglaterra…) O J. Joyce, e o O. Wilde, o Shean O’ Casey e outros irlandeses
viveram ou vivem fora da Irlanda… Eu vivo em Portugal (por dentro) e a
sofrer!... É evidente que a permanência do escritor num ambiente de
responsabilidade (perante a consciência, o público, a opinião, os leitores,
etc) o purifica e lhe impõe certos padrões. Eu considero-me um bom escritor de…
segunda ordem.) A Escola não é
um livro de saudade ou nostalgia, como teima o Gasparèsse (João Gaspar
Simões), nem o era Dona Genciana: mas a tentativa de reconstituição dum
ambiente e personalidades, impregnada do estado de espírito, ou do assombro, do
pequeno Gabriel (e outras personagens) independentemente dos sentimentos do
autor, sejam estes quais forem. Um friso, um mural, indispensável à execução
dos panneaux subseguintes. O papel do escritor é evocar as coisas. pessoas, torna-las
«presentes», actuais, embebendo-as de um certo «pathos» ou estado de alma, que
é o de dá carácter à obra – Quanto ao Passageiro do Expresso, que
continua «abafado», e a que ninguém
ousaria dar o tal prémio, ainda ninguém viu ou tentou penetrar-lhe o sentido:
guardo-me para a nota da Terceira Classe. O Óscar Lopes (único que,
antes de V. Se lhe referiu) disse que eu ainda não solucionei os conflitos,
etc. Quando a gente não entende um problema, chama-lhe «conflito» e di-lo
insolúvel!!... Ninguém teve um comentário sobre a cena principal da Cabine:
como se em Portugal este género de diálogo existisse, ou abundasse, passou
despercebido: Deus, a psicanálise, o Além, a alma, a ideia de rebelião
necessária, etc. etc. - Até a crítica a um racionalismo cínico, desumanizado:
ninguém o notou. Pérolas a… bois desembolados? Em Portugal falta-nos a
sensibilidade não só moral, mas intelectual. A subtileza escapa-nos. Tudo tem
de ser rude, talhado a enxó, contundente, óbvio, elementar – Guignol! –
pedregulhos atirados às consciências anestesiadas e embrutecidas . E querem uma
literatura universal!... querem reconhecimento!... Chego a crer que sou
apreciado pelas coisas piores que tenho escrito.
Carta de José
Rodrigues Miguéis, datada de 1 de Março de 1962, para José Saramago em Correspondência.
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