domingo, 9 de abril de 2017

A SUBTILEZA ESCAPA-NOS


Na minha carta de 24 de Janeiro (tenho só rascunho) agradeci-lhe o envio do Boletim, com a sua nota a meu respeito: se não fiz então comentários, ou foi porque estava de corrida, ou porque sempre me é difícil comentar o que me diga respeito: mas gostei a valer dela, e acho excelente a sua maneira de tratar o problema da expatriação – que tem pano para mangas: Aldous Huxley, Christopher Isherwood, S. Maugham, O’ Connor, - dezenas de ingleses e irlandeses (dos Grandes) vivem ou têm vivido expatriados, ou temporariamente exilados: (J.M. Foster, o D.H. Lawrence… etc.) e no entanto são profundamente britânicos! (O T.S. Eliot e o H. James americanos, fizeram-se em Inglaterra…) O J. Joyce, e o O. Wilde, o Shean O’ Casey e outros irlandeses viveram ou vivem fora da Irlanda… Eu vivo em Portugal (por dentro) e a sofrer!... É evidente que a permanência do escritor num ambiente de responsabilidade (perante a consciência, o público, a opinião, os leitores, etc) o purifica e lhe impõe certos padrões. Eu considero-me um bom escritor de… segunda ordem.) A Escola não é um livro de saudade ou nostalgia, como teima o Gasparèsse (João Gaspar Simões), nem o era Dona Genciana: mas a tentativa de reconstituição dum ambiente e personalidades, impregnada do estado de espírito, ou do assombro, do pequeno Gabriel (e outras personagens) independentemente dos sentimentos do autor, sejam estes quais forem. Um friso, um mural, indispensável à execução dos panneaux subseguintes. O papel do escritor é evocar as coisas. pessoas, torna-las «presentes», actuais, embebendo-as de um certo «pathos» ou estado de alma, que é o de dá carácter à obra – Quanto ao Passageiro do Expresso, que continua  «abafado», e a que ninguém ousaria dar o tal prémio, ainda ninguém viu ou tentou penetrar-lhe o sentido: guardo-me para a nota da Terceira Classe. O Óscar Lopes (único que, antes de V. Se lhe referiu) disse que eu ainda não solucionei os conflitos, etc. Quando a gente não entende um problema, chama-lhe «conflito» e di-lo insolúvel!!... Ninguém teve um comentário sobre a cena principal da Cabine: como se em Portugal este género de diálogo existisse, ou abundasse, passou despercebido: Deus, a psicanálise, o Além, a alma, a ideia de rebelião necessária, etc. etc. - Até a crítica a um racionalismo cínico, desumanizado: ninguém o notou. Pérolas a… bois desembolados? Em Portugal falta-nos a sensibilidade não só moral, mas intelectual. A subtileza escapa-nos. Tudo tem de ser rude, talhado a enxó, contundente, óbvio, elementar – Guignol! – pedregulhos atirados às consciências anestesiadas e embrutecidas . E querem uma literatura universal!... querem reconhecimento!... Chego a crer que sou apreciado pelas coisas piores que tenho escrito.

Carta de José Rodrigues Miguéis, datada de 1 de Março de 1962, para José Saramago em Correspondência.

Legenda; José Rodrigues Miguéis a comprar jornais num quiosque em Nova Iorque.

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