Deixei de me entender com os livros do António Lobo Antunes.
Já não os leio.
Aguardo, apenas,
a chegada da reunião, em livro, das suas crónicas na Visão.
O último volume
é o Quinto, publicado em Outubro de 2013.
Não percebo
porque a Leya tarda em publicar outro volume.
Talvez perceba:
não gostam de livros, não estimam os seus autores.
Não vislumbro
qualquer outra justificação.
Sim, leio as
crónicas do Lobo Antunes na Visão, mas não é a mesma coisa.
A crónica
publicada em 30 de Março de 2017, leva-me a servir do site da revista e
transcrevê-la aqui.
Quando a
acabarem de ler, se é que já não a leram, perceberão o porquê:
E uma, duas vezes por mês é isto. Aconteceu a noite
passada, por exemplo, em que estava no Ninda, nas Terras do Fim do Mundo,
sentado numa cadeira de tábuas de barrica, ao lado do Ernesto Melo Antunes,
ambos a olharmos a chana ao longe enquanto um pelotão chegava da mata, desfeito
de cansaço, com o alferes à frente, quase a arrastar espingarda. Pegada à
antiga casa do chefe de posto, agora em ruínas, onde eu dormia, um milheiral
seco a restolhar até ao arame farpado. Se o MPLA quisesse podia apanhar-me à
mão. Dormia sozinho, nessa casa, e uma ocasião pedi ao Ernesto que me deixasse
ter lá comigo o meu furriel enfermeiro. Duas espingardas defendem-se melhor que
uma. Disse-me que um oficial não podia estar na companhia de um sargento.
Limitei-me a responder-lhe que, se me caçassem, ele iria aguentar-se com essa
culpabilidade para toda a vida. Ficou calado, a lutar consigo mesmo, mas não me
respondeu, e eu meti-me sozinho na casa do chefe de posto. Colocou-me uma
sentinela mais perto, mandou abater parte do milho, de tempos a tempos dava com
ele a rondar a casa. Os caniços murmuravam a noite inteira e eu de arma
destravada ao lado. Sabia que o MPLA vigiava de muito perto o Ninda e mais
tarde o escritor Pepetela, também Prémio Camões, também meu amigo, ganho depois
da guerra, contou-me mais de ocasião que pensaram várias vezes caçar--me ali
mas que aparecia sempre um problema logístico qualquer a impedir a manobra, até
que me transferiram para o Chiúme, o mais horrível buraco onde estive na vida.
Só de lá saí para a Baixa do Cassanje, quase no outro extremo de Angola, onde
não havia guerra, apenas ameaças de minas, um lugar de beleza imensa com um
rio, o Cambo, cheio de crocodilos. De regresso a Portugal, em 73, durante a
preparação do 25 de Abril, a minha amizade com o Ernesto estreitou-se ainda mais,
tornando-se uma relação de irmãos. Nunca me zanguei com a sua resposta de que
um oficial não dorme com um sargento. A companhia do Ernesto foi a que sofreu
menos baixas porque a disciplina era férrea. Quando perdemos o primeiro rapaz
foi o único momento em que os seus olhos mudaram. Disse-me uma só frase
– Tinha jurado que os levava a todos
e de facto quase levaste, Ernesto, quase levaste. E da
mesma forma que aceitei que um oficial não dorme com um sargento tenho a
certeza que entenderias se te despejasse uma rajada no pêlo. A guerra é
realmente uma coisa muito estranha. Depois morreste com a mesma serena coragem
com que viveste sempre. Um ou dois dias antes disseste-me:
– Esta manhã acordei todo molhado. Não me deixes
morrer sem dignidade
quando a única coisa que eu podia fazer era estar ao
teu lado: como éramos ambos oficiais era permitido.
E, enquanto agonizavas,
pensava no milho do Ninda. Claro que se fosses sargento seria impossível
estarmos ao pé um do outro. Mas eras um tenente-coronel e não cessavas de
olhar-me, não pedindo nada, ambos à paisana, os dois quase civis, os dois
separando--nos para sempre um do outro, com uma parte de nós em Ninda, nas
Terras do Fim do Mundo. A guerra acabara há anos. Nenhum de nós se achava de
camuflado, nenhum de nós viu chegar um pelotão da mata, com o alferes à frente,
esbodegado de cansaço. Agora temo-nos encontrado nos meus sonhos, onde o milho
restolha e onde, de vez em quando, umas explosões. Mas não faz mal. Daqui a
pouco colocamos um tabuleiro numa mesita, dispomos as peças de xadrez por ordem
e, como em cada dez vezes, tu ganhas nove, enquanto o milho da antiga casa do
chefe de posto vai cantando, cantando. Afinal foi a ti que o MPLA levou. Daqui
a nada é a minha vez e se tiver tempo construo uma defesa indiana do rei que te
vais ver grego para dar cabo dela. A seguir, vamos espreitar os crocodilos ao
rio e falar de poesia. Lembras-te do Victor Hugo que me deste quando te
despacharam para São Salvador do Congo? Há por ali umas passagens que te queria
ler alto.
Legenda:
ilustração de Susa Monteiro, Visão.
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