quarta-feira, 19 de abril de 2017

DE QUEM LHE ROUBARAM O QUE NÃO TINHA


Nos começos de Maio de 1963, desde Nova York, José Rodrigues Miguèis escreve a José Saramago:

Posso dizer que esta é a 1ª carta que escrevo desde que aqui cheguei (a 5 de Abril): ao devolver provas à Seara, mandei uma curta nota ao Dr. Rogério Fernandes. Nem as condições em que parti, nem aquelas em que me encontro – sem apartamento até Julho,  possivelmente sem perspectiva de trabalho remunerado, e sobretudo num estado de espírito de quem lhe roubaram o que não tinha! – são de molde a consentir que a mão cumpra o dever de escrever – seja o que for! Mas basta de divagações…
«Há sempre outros céus!» - escrevi eu em 1935; e o José Régio diz que «há mais mundos»… (que ele não descobre, mas enfim!)
Das minhas janelas (um 9º andar desafogado, em Brooklyn) vejo todo o perfil da parte baixa e média de Manhattan, com os seus arranha-céus, e as duas pontes inferiores por onde corre dia e noite o rio do tráfego: mas, não sei porquê, N. York perdeu para mim todo o glamour e mistério que tinha. Tem chovido quase sempre. E apesar do cinema, do ballet, dos teatros e concertos (quem tivesse dinheiro para gozar tanta riqueza!...) sinto-me longe de tudo, inútil e estéril. Aos 62 anos não é fácil viver sem perspectiva de vida pessoal.

Saramago responde a 1 de Junho e diz-lhe:

Não me surpreende o seu estado de espírito. Este nosso Portugal é afinal tudo quanto temos. Por mim, sei bem que não poderia viver fora desta «desgraça». Talvez masoquismo (vai com z, como quer o nosso Severiano), gosto de sofrer, o diabo!

José Rodrigues Miguéis/José Saramago em Correspondência

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