Esta é a reprodução do
Relatório da Censura nº 8.665, de 3 de Fevereiro de 1970, que determinou a
proibição da venda de O Encoberto,
peça de teatro de Natália Correia.
Um livro interessantíssimo
que ainda é possível encontrar em alfarrabistas e também na colecção de alguns
livros proibidos pela ditadura que o Público publicou e ainda tem à venda.
O analfabeto-coronel-censor tirou a conclusão que o livro deveria ser proibido por «inconveniência política» e por ser «pornográfico».
Assim (sobre)vivíamos!
O analfabeto-coronel-censor tirou a conclusão que o livro deveria ser proibido por «inconveniência política» e por ser «pornográfico».
Assim (sobre)vivíamos!
«O Encoberto conta a história de Bonami-rei que se faz passar pelo rei
D. Sebastião, com o cognome de O Encoberto ou O Desejado. A história
depreende-se em várias críticas a um povo crente, iludido, que não quer ver a
realidade e, ao mesmo tempo, a uma falsa nobreza, interesseira, que só pensa em
dinheiro. Mas mais. Segundo o relatório da censura, de 1970, “trata-se do
desenvolvimento em estilo ‘paródia’ de assunto histórico, com não poucas
pinceladas pornográficas, à maneira de ‘Natália Correia’, com alusões ao povo
português ou a figuras históricas com expressões de chacota e uma clara
intenção de ridicularizar»
«Entre 1584 e 1598, a
história regista o surgimento de quatro falsos D. Sebastião, que tentaram, com
pouca verosimilhança e nenhuma sorte, fazer-se passar pelo Rei Desejado.
Alimentaram o mito e foram objeto, pelo menos três deles, de tentativas de
dramatização com resultados muito desiguais, no ponto de vista teatral.
Essas peças estão quase todas tão esquecidas como os aventureiros que lhes
deram o tema...
Com a exceção de "O Encoberto" (1969) de Natália Correia, texto oscilante entre um simbolismo barroco e algo próximo do teatro narrativo, mas de indiscutível força poética, não obstante a exuberância, violência, por vezes a tocar o blasfemo, da estrutura e da linguagem. Reconstitui, com total liberdade criativa, as aventuras, essas sim, amplamente documentadas, do calabrês Marco Tulio Catizone. Como dissemos, de nada lhe valeu a aventura.»
Com a exceção de "O Encoberto" (1969) de Natália Correia, texto oscilante entre um simbolismo barroco e algo próximo do teatro narrativo, mas de indiscutível força poética, não obstante a exuberância, violência, por vezes a tocar o blasfemo, da estrutura e da linguagem. Reconstitui, com total liberdade criativa, as aventuras, essas sim, amplamente documentadas, do calabrês Marco Tulio Catizone. Como dissemos, de nada lhe valeu a aventura.»
Algures em O
Encoberto, um personagem exclama:
«Para se verem livres dos espanhóis os portugueses são capazes de
reconhecer D. Sebastião no cu de um gorila.»
«O Encoberto tem a condicionante de um tempo mas dele se descondiciona
na intemporalidade do próprio tema. O seu enquadramento é histórico. Situa-nos
no período paradigmático da monarquia filipina. Paradigmático porque em “ocupação
estrangeira” se traduz o poder sempre que exercido despoticamente. Na altura em
que a peça foi escrita, essa conotação com o regime que então vigorava em
Portugal foi-me recurso para focar uma situação presente que o rigor censório
não permitia abordar às claras. Mesmo assim não conseguiu a peça passar às
malhas da severíssima censura que nela só descortinou um manifesto contra o
fascismo exótico à vontade dos portugueses e por isso identificável com o
reinado filipino. Dentro da moldura histórica adensavam-se contudo os valores
mais importantes de O Encoberto. No negativo da alienação dos povos e dos
indivíduos germina o sonho que liberta. A irracionalidade do poder que
escraviza só pode ser destruída, no sentir dos que impotentemente a sofrem, por
outra irracionalidade: a do libertador impossível, o Monarca da Bruma. O
Encoberto é a confrontação surda destas duas irracionalidades. A insolução é,
consequentemente, a poética e o humor lírico que se dão lide na peça.»
Sem comentários:
Enviar um comentário