sábado, 4 de agosto de 2018

DEPOIS CÁ ESTÁ A ESCRAVA PARA TRATAR DO SENHOR


Alheado pelas arrumações, não se apercebeu logo de que começara a chover, mas um golpe brusco de vento atirou contra as vidraças um rufo de água, Que tempo este, aproximou-se da janela para olhar a rua, lá estavam os velhos no passeio fronteiro, como insectos atraídos pela luz, e ambos eram soturnos como insectos, um alto, outro baixo, cada qual com o seu guardachuva, de cabeça levantada como o louva-a-deus, desta vez não se intimidaram com o vulto que aparecera e os observara, foi preciso aumentar a chuva para que se decidissem a descer a rua, a fugir à água que escorria dos beirais, chegando a casa os repreenderão as mulheres, se as têm, Todo molhado. homem, capaz de me apanhares uma pneumonia, depois cá está a escrava para tratar do senhor, e eles dirão, A casa da D. Luísa já tem gente, é um senhor sozinho, não se vê mais ninguém, Imaginem, uma casa tão grande para um homem só, mal empregada, pergunte-se como saberão elas que a casa é grande, resposta certa não há, pode ser que no tempo da D. Luísa lá tenham trabalhado a dias, as mulheres desta classe deitam mão ao que calha quando os ganhos do homem são poucos ou ele os sonega para gastar em vinho e amantes, e então lá vão as infelizes esfregar escadas e lavar roupas, algumas especializam-se, lavam só roupa ou esfregam só escadas, e assim se tornam mestras no ofício, têm preceitos, brio na brancura dos lençóis e no amarelinho dos degraus, daqueles se dirá que a toalhas de altar poderiam servir, destes que sem nojo se comeria a marmelada que neles caísse, aonde já nos leva a digressão oratória. Agora, com o céu coberto, a noite não tarda. Quando os velhos estavam no passeio, a olhar para cima, parecia que tinham a cara à luz clara do dia, efeito só da branca barba de oito dias, nem por ser hoje sábado foram sentar-se na cadeira do barbeiro, se lá vão, provavelmente usam navalha, e amanhã, estando levantado o tempo, aparecem aí com as faces escanhoadas, crespas de rugas e pedra-ume, brancos só de cabelo, do mais baixo falamos, que o alto não tem senão ! umas desanimadas farripas por cima das orelhas, enfim, tornando ao ponto de partida, quando lá estavam, no passeio, era ainda dia, se bem que em despedida, então, tendo mirado com algum descanso o inquilino do segundo andar e apertando a chuva, puseram-se a descer a rua, andando foram e o dia escurecendo, chegados àquela esquina era já noite cerrada. Valeu terem-se acendido os candeeiros, cobriram-se de pérolas as vidraças, mas destes lampiões há que dizer que não foi como certamente há-de ser um dia, sem mão visível de homem, quando a fada electricidade, com sua varinha de condão, chegar ao Alto de Santa Catarina e adjacências, todos gloriosamente acendidos ao mesmo tempo, hoje temos de esperar que venham acendê-los, um a um, com a ponta da vara ateada abre o homem n postigo do candeeiro, com o gancho roda a torneira do gás, enfim este fogo-de-santelmo vai deixando gelas ruas da cidade sinais de ter passado, um homem leva consigo a luz, é o cometa Halley com seu rasto sideral, assim estariam os deuses olhando lá de cima a Prometeu, porém chama-se António este caga-lume.

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