Alheado pelas arrumações, não se apercebeu logo de que começara a
chover, mas um golpe brusco de vento atirou contra as vidraças um rufo de água,
Que tempo este, aproximou-se da janela para olhar a rua, lá estavam os velhos
no passeio fronteiro, como insectos atraídos pela luz, e ambos eram soturnos
como insectos, um alto, outro baixo, cada qual com o seu guardachuva, de cabeça
levantada como o louva-a-deus, desta vez não se intimidaram com o vulto que
aparecera e os observara, foi preciso aumentar a chuva para que se decidissem a
descer a rua, a fugir à água que escorria dos beirais, chegando a casa os
repreenderão as mulheres, se as têm, Todo molhado. homem, capaz de me apanhares
uma pneumonia, depois cá está a escrava para tratar do senhor, e eles dirão, A
casa da D. Luísa já tem gente, é um senhor sozinho, não se vê mais ninguém,
Imaginem, uma casa tão grande para um homem só, mal empregada, pergunte-se como
saberão elas que a casa é grande, resposta certa não há, pode ser que no tempo
da D. Luísa lá tenham trabalhado a dias, as mulheres desta classe deitam mão ao
que calha quando os ganhos do homem são poucos ou ele os sonega para gastar em
vinho e amantes, e então lá vão as infelizes esfregar escadas e lavar roupas,
algumas especializam-se, lavam só roupa ou esfregam só escadas, e assim se
tornam mestras no ofício, têm preceitos, brio na brancura dos lençóis e no
amarelinho dos degraus, daqueles se dirá que a toalhas de altar poderiam
servir, destes que sem nojo se comeria a marmelada que neles caísse, aonde já
nos leva a digressão oratória. Agora, com o céu coberto, a noite não tarda.
Quando os velhos estavam no passeio, a olhar para cima, parecia que tinham a
cara à luz clara do dia, efeito só da branca barba de oito dias, nem por ser
hoje sábado foram sentar-se na cadeira do barbeiro, se lá vão, provavelmente
usam navalha, e amanhã, estando levantado o tempo, aparecem aí com as faces
escanhoadas, crespas de rugas e pedra-ume, brancos só de cabelo, do mais baixo
falamos, que o alto não tem senão ! umas desanimadas farripas por cima das
orelhas, enfim, tornando ao ponto de partida, quando lá estavam, no passeio,
era ainda dia, se bem que em despedida, então, tendo mirado com algum descanso
o inquilino do segundo andar e apertando a chuva, puseram-se a descer a rua,
andando foram e o dia escurecendo, chegados àquela esquina era já noite
cerrada. Valeu terem-se acendido os candeeiros, cobriram-se de pérolas as
vidraças, mas destes lampiões há que dizer que não foi como certamente há-de
ser um dia, sem mão visível de homem, quando a fada electricidade, com sua
varinha de condão, chegar ao Alto de Santa Catarina e adjacências, todos
gloriosamente acendidos ao mesmo tempo, hoje temos de esperar que venham
acendê-los, um a um, com a ponta da vara ateada abre o homem n postigo do
candeeiro, com o gancho roda a torneira do gás, enfim este fogo-de-santelmo vai
deixando gelas ruas da cidade sinais de ter passado, um homem leva consigo a
luz, é o cometa Halley com seu rasto sideral, assim estariam os deuses olhando
lá de cima a Prometeu, porém chama-se António este caga-lume.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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