Cântico Final
Vergilio
Ferreira
Colecção Livro
de Bolso nº 1
Portugália
editora, Lisboa s/d
Por uma manhã breve de Dezembro, um homem subia de
automóvel uma estrada de montanha. Manhã fina, linear. O homem parou um pouco,
enquanto o motor arrefecia, e olhou em volta, fatigado. Aqui estou. Regressado
de tudo. Pelo vale extenso até a um limite de neblina, viam-se aqui e além
indícios brancos de aldeias, brilhando ao sol. Que dia é hoje?
Pelos campos perpassava uma alegria estranha, talvez
do sol e daquele fundo silêncio a toda a volta, sem uma voz repentina das que
sobem e vibram nas manhãs de trabalho. E de súbito lembrou-se: para o fundo do
vale, ouviu o dobre dos sinos do Freixo. Manhã de domingo, manhã de infância,
sinos de outrora. Correntes misteriosas de vento traziam as suas vozes, enchiam
delas o espaço, diluíam-nas em distãncia. Outras vezes atiravam-nas contra a
massa da montanha, traziam-lhes o eco de longe, e todo o ar estremecia de
memória. Vozes de sinos antigos, vozes do tempo, súbito alarme de que
fascinação?
- Salve-o Deus.
O homem despertou. Pôs o carro em andamento e em
breve, numa curva de pinheiros, toda a aldeia se lhe ergueu em frente. Velha
aldeia, boa aldeia. Reconfortava olhá-la de novo, na resignação do silêncio,
fascinava-o reaprender a vertigem das eras naquelas casas negras, na gente
espectral escurecida dos séculos. Morava na proeminência de um cerro, suspenso
do abismo, num extremo da povoação. Lá estava ao pé a capela abandonada da Senhora da Noite. Estranho nome. Era uma
vulgar Imaculada com meia lua e estrelas, pintada grosseiramente no tecto,
e agora quase pagada da humidade e do carancho. Mas o opovo chamava-lhe a
«Senhora da Noite». Talvez pela lua e pelas estrelas ou apenas porque a
invocavam outrora nos caminhos da montanha, aos quais, ali no topo do cerro,
parecia presidir.
Frente à velha casa, no automóvel parado, o homem
recordava. Há quantos anos?
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