sábado, 4 de agosto de 2018

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?


Stromboli é o primeiro de seis filmes que Roberto Rossellini realizou com Ingrid Bergman,  «a história de uma pecadora tocada pela graça, do dizer de Eric Rohmer:

«Deus! Oh! Meu Deus! Ajuda-me! Dá-me força, a compreensão e a coragem».

Conta-se que fez o filme sem ter um guião e apenas um bloco-notas com algumas ideias. Aconteceu um dos mais extraordinários filmes da história do cinema.

Robert Altman também era avesso a guiões. Quando lhe perguntaram para que é que serve um guião ele respondeu: «para saber se há cavalos ou não».

Em Novembro de 1973 a Fundação Calouste Gulbenkian organizou uma retrospectiva da obra de Roberto Rossellini. A ditadura marcelista estava já no seu estertor e o acontecimento faz parte da memória de cinéfilos e anti-fascistas.

O ciclo começou no Grande Auditório, às 21,30 Horas, com «Roma Cidade Aberta».
Diz quem viu que foi das manifestações mais extraordinárias que por aqui aconteceram.


Estou neste momento a olhar para a página de publicidade paga da retrospectiva, publicada em «O Cinéfilo» de 15 de Novembro de 1973 o onde se pode ler, para além dos filmes a exibir, indicações como programas sujeitos a alteração, o calendário da Bilheteira: Assinantes dia 13, Início da venda avulso dia 15, assinaturas para os 27 espectáculos 200$00, bilhetes para cada espectáculo 10$00» e ainda a classificação determinada pela censura: Grupo D (Maiores de 18 anos).

Os bilhetes, as assinaturas, tudo, voaram em escassas horas.

Antes de cada sessão, à porta da Gulbenkian, aglomeravam-se dezenas e dezenas de espectadores na vã esperança de um qualquer milagre de alguém que aparecesse a vender um bilhete.

Foi depois de ter visto dois filmes de Rossellini, que Ingrid se determinou que tinha de fazer um filme com o realizador, e escreveu-lhe:

«Vi os seus filmes “Roma Cittá Aperta” e “Paisá”, de que gostei muito. Caso precise de uma actriz sueca que fala muito bem inglês, que não esqueceu a língua alemã, que não é fluente em francês e que em italiano só sabe dizer “Ti amo” estou pronta a fazer um filme consigo.»

Rossellini nunca tinha ouvido falar de Ingrid Bergman mas escreveu-lhe a dizer que quando entendesse poderia aparecer por Itália.

A actriz logo que ficou livre dos compromissos que tinha entre mãos, voou para Itália e apalavraram fazer um filme em tempo oportuno.

Na altura Roberto Rossellini vivia com Anna Magnani.

Conta a lenda que quando Magnani soube, num restaurante, que Ingrid iria chegar para fazer um filme com Rossellini, perguntou-lhe como era. Rossellini começou a entaramelar a língua e Anna Magnani não pensou duas vezes e espetou-lhe com uma travessa de esparguete na cara.
O cinema tem alguns casos de paixões entre realizadores e actrizes, entre actores e actrizes e que deram momentos inolvidáveis e únicos de grande cinema. São os chamados estados de graça. Para além deste que tenho vindo a falar, lembro-me de Vincente Minnelli e Judy Garland em «Meet me  in St. Louis» e Lauren Bacall e Humphrey Bogart em «Ter e Não Ter», quando Bacall aparece a Bogart e lhe diz, «se quiser alguma coisa, basta assobiar», explicando-lhe depois como o fazer e deixando, para a posteridade uma das sequências mais sensuais da história do cinema.

Também os casos de Antonioni e Minica Vitti, Jean-Luc Godard e Anna Karina, Ingmar Bergamnn e Liv Ulmann ou Bibi Anderson.

Com outros contornos e fora da esfera do cinema, em português temos algo parecido.

Depois de ler «Memorial do Convento» e «O Ano da Morte de Ricardo Reis», a jornalista espanhola Maria del Pilar ficou como que encantada.

«Senti que tinha de agradecer ao autor os livros que me tinha dado a ler. E sobretudo dizer que tinha tratado os seus leitores como seres inteligentes. Tinha-me sentido respeitada como leitora e quis agradecer-lhe.»

Tal como na sinfonia de Beethoven, Pilar terá sentido o destino a bater-lhe à porta.

Veio até Lisboa e conseguiu uma conversa com Saramago.

Sabe-se o que veio a acontecer.

Desde então os livros de José Saramago deixaram de ser dedicados à Isabel para passarem a ser dedicados a Pilar.

Como se lê em «As Pequenas Memórias»:

 «A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.»

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