quarta-feira, 8 de agosto de 2018

SEMPRE PREFERI O MORRER


Como é vulgar dizer-se , li as Memórias de Rómulo de Carvalho enquanto o diabo esfrega um olho.
Comprei-o na Feira do Livro no dia 17 de Maio de 2011 e logo nesse noite dei-lhe um bom supetão.
Para estas Leituras, voltei a pegar no livro, mas antes já o fazia.
Pego-lhe como os crentes se debruçam sobre A Bíblia para, em cada hora, em cada dia, em cada semana, em cada mês, lerem passagens.
Ficaram por aqui, começaram em 20 de Abril de 2017, alguns excertos das Memórias de Rómulo/Gedeão, pálida imagem da riqueza que este livro possui, escrito por um poeta, um cientista, um homem extraordinário, um príncipe.
Rómulo de Carvalho escreve o seu adeus.
A 1 de Fevereiro de 1997 escreve aos tetranetos que se aproxima o fim, a vida tornou-se um martírio.
Morreu a 19 de Fevereiro desse mesmo ano.

«Muitas dores. Muitas dores. E que tenho, afinal? Não se sabe. As radiografias que tirei dizem que está tudo bem. E eu a sofrer, a sofrer, a sofrer. Um martírio.
Por tudo isto me decidi a terminar a escrita destas memórias. Ficareis a saber de mim tudo quanto era facilmente comunicável. Morro tranquilo porque nunca fiz mal a ninguém e sempre ajudei o próximo em tudo quanto pude. Nunca me zanguei com ninguém, como já vos disse, e de boa vontade pediria desculpa a quem tivesse tido de mim qualquer impressão de que o ofendera ou magoara, Cumpri sempre os meus deveres para com o próximo e o distante. Trabalhei a vida inteira e, embora mal remunerado sempre o fiz com todo o esmero possível.
A vida nunca me seduziu. Entre o viver e o morrer sempre preferi o morrer. Se não tivesse nascido, ninguém daria pela minha falta. Reconheço que estou a ser indelicado com todos aqueles que gostam de mim, mas peço-lhes que me desculpem. É preciso ter vocação para viver e é por isso que alguns se suicidam, o que é digno de todo o respeito. Nunca pensei nisso e só em consequência de um sofrimento excessivo o faria.
O mundo é repugnante e a vida não tem sentido. É uma luta permanente e feroz em que cada um busca a satisfação dos seus interesses exactamente como outros quaisquer seres vivos, animais ou plantas, que se espreitam e se atacam. Em nós, humanos, que somos o ponto mais elevado do desenvolvimento das espécies, o modo de proceder é diferente e as manhas são outras. Mas o homem que está comodamente sentado à secretária do seu gabinete, com a esferográfica na mão e o papel defronte, ruminando em qual será a melhor maneira de atacar o próximo, de o explorar, de o dominar e de encher os seus próprios bolsos, em nada difere, nas intenções, de um quadrúpede qualquer, de um insecto, de um peixe, do que for, que está muito quieto no seu reduto, espreitando o outro que anda ali próximo, para dar o salto no momento próprio. Ele vigia, o insecto, o peixe, o quadrúpede, pensa, faz cálculos, analisa, decide e, num relâmpago, atira a sua arma sobre o irmão distraído, pisa-o, esmaga-o, massacra-o e descansa, olhando em redor, não venha outro como ele fazer-lhe o que agora tanto o satisfaz. E nós a julgarmos que somos os únicos e privilegiados animais presentes. Não é sem pensar que o pobre cão perdido a longa distância da sua casa, a dos seus donos, consegue reencontrá-la e de novo repousar no seu habitual aconchego. E assim já tem sucedido. Ou a gaivota que levanta voo do rochedo para ir examinar o mar e regressa para comunicar às companheiras que a aguardam como as coisas decorrem. Ou as formigas que vão e vêm, numa carreirinha, segredando umas às outras o que se vai passando.
As minhas dores no estômago e nos intestinos continuam sem descanso e os médicos não descobrem o que tenho apesar de todo o seu saber, simpatia e generosidade. É preferível morrer. É neste estado que vos escrevo embora a minha letra, que aqui vêdes, não dê sinal de tantos males e de tão profundo abatimento. Fui sempre pessoa de grande coragem e espero conservá-la até o último momento.»

Rómulo de Carvalho em Memórias

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