Ricardo Reis já dormia, soube-o quando acordou,
sobressaltado, alguém lhe tinha batido à porta, Será Lídia, que teve artes de
sair do hotel e vir, por esta chuva, passar comigo a noite, imprudente mulher,
depois pensou; Estava a sonhar, e assim parecia, que outro rumor não se ouviu
durante um minuto, Talvez haja fantasmas na casa, por isso a não tinham
conseguido alugar, tão central, tão ampla, outra vez bateram, truz, truz, truz,
segredadamente, para não assustar. Levantou-se Ricardo Reis, enfiou os pés nos
chinelos, envolveu-se no roupão, atravessou pé ante pé o quarto, saiu ao
corredor a tiritar, e perguntou olhando a porta como se ela o ameaçasse, Quem
é, a voz saiu-lhe rouca e trémula, pigarreou, tornou a perguntar, a resposta
veio num murmúrio, Sou eu, não era nenhum fantasma, era Fernando Pessoa, logo
hoje se havia de ter lembrado. Abriu, e era mesmo ele, com o seu fatinho preto,
em cabelo, sem capa nem chapéu, improvável da cabeça aos pés, mais ainda
porque, chegado da rua, nem um pingo de água o molhava, Posso entrar,
perguntou, Até agora nunca me pediu licença, não sei que escrúpulo lhe deu de
repente, A situação é nova, você já está na sua casa, e, como dizem os ingleses
que me educaram, a casa de um homem é o seu castelo, Entre, mas olhe que eu
estava deitado, Dormia, Julgo que tinha adormecido, Comigo não tem de fazer
cerimónia, na cama estava, para a cama volta, eu fico só uns minutos. Ricardo
Reis enfiou-se nos lençóis rapidamente, a bater o queixo de frio, mas também do
temor remanescente, nem despiu o roupão. Fernando Pessoa sentou-se numa
cadeira, traçou a perna, cruzou as mãos sobre os joelhos, depois olhou em redor
com ar crítico, Então foi para aqui que você veio morar, Parece que sim, Acho
um bocado triste, As casas que estiveram muito tempo desocupadas têm todas este
ar, E vai viver aqui sozinho, uma pessoa só, Pelos vistos, não, ainda hoje me
mudei, e já tenho a sua visita, Eu não conto, não sou companhia, Contou o
suficiente para me ter obrigado a sair da cama, com um frio destes, só para lhe
abrir a porta, ainda acabo por ter de lhe dar uma chave, Não saberia servir-me
dela, se eu pudesse atravessar as paredes evitava-se este incómodo, Deixe lá,
não tome as minhas palavras como uma censura, deu-me até muito gosto que
tivesse aparecido, esta primeira noite, provavelmente, não ia ser fácil, Medo,
Assustei-me um pouco quando ouvi bater, não me lembrei que pudesse ser você,
mas não estava com medo, era apenas a solidão, Ora, a solidão, ainda vai ter de
aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a
solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a
alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no
meio duma planície onde ^ só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e
a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona
está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para
dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a
gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos, Está
hoje de péssimo humor, Tenho os meus dias, Não era dessa solidão que eu falava,
mas doutra, esta de andar connosco, a suportável, a que nos faz companhia, Até
essa tem que se lhe diga, às vezes não conseguimos aguentá-la, suplicamos uma
presença, uma voz, outras vezes essa mesma voz e essa mesma presença só servem
para a tornar intolerável,
José Saramago em
O Ano da Morte de Ricardo Reis
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