sexta-feira, 3 de agosto de 2018

NÃO É CIÚME O QUE EU TENHO


Não é ciúme o que eu tenho,
É pena;
Uma pena
Que me rasga o coração.

Essa mulher
Nunca pode merecer-te;
Não vive da tua vida,
Nem cabe na ilusão
Da tua sensibilidade,
- Mas é bela! Tu afirmas;
E eu respondo que te enganas.

A beleza -
Sempre foi
Um motivo secundário
No corpo que nós amamos;
A beleza não existe
E quando existe não dura.
A beleza -
Não é mais do que o desejo
Fremente que nos sacode...
- O resto é literatura.

Conheço bem os teus nervos;
Deixaram nódoas de lume
Na minha carne trigueira;
- Esta carne que lembrava
Laivos de luz outonal,
Doirada, sem consistência,
A aproximar-se do fim...

Eu já conheço o teu sexo,
Tu já gostaste de mim.

A frescura do teu beijo
E o poder do teu abraço,
- Tudo isso eu devassei...

Não é ciúme o que eu tenho;
Mas quando te vi com ela
- Sem que me vissem, chorei...

António Botto em As Canções deAntónio Botto

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