segunda-feira, 27 de agosto de 2018

OLHAR AS CAPAS


As Moscas

Jean-Paul Sartre
Tradução: Nuno Valadas
Capa: F.C.
Colecção Presença/Nova Série nº 6
Editorial Presença, Lisboa s/d

Mas, ó meu povo, amo-vos e foi por vós que matei. Por vós. Vim para reclamar o meu reino e vós repelistes-me por não ser dos vossos. Mas agora já sou dos vossos, estamos unidos pelo sangue e já mereço ser o vosso rei. Os vossos pecados e remorsos, as vossas angústias nocturnas, o crime de Egisto, tudo isso é meu, tudo isso eu tomo sobre mim. Que vos não assustem mais os vossos mortos, pois agora são os meus mortos. E olhai: até as vossas fiéis moscas vos trocaram por mim. Mas não temais, ó povo de Argos, que me vá sentar, ensanguentado, no trono da minha vítima; um Deus mo ofereceu e eu recusei-o. Quero ser um rei sem reino nem súbditos. Adeus, meu povo, tentai viver; agora tudo é novo por aqui, tudo vai começar. Uma vida estranha. Escutai só isto: um Verão, Ciro foi invadido pelas ratazanas. Era uma praga horrível que tudo roía e os habitantes chegaram a pensar que por causa dela acabariam por morrer. Porém, um dia, chegou um tocador de flauta e todas as ratazanas se reuniram à sua volta. Pôs-se então o flautista em marcha em grandes passadas, assim gritando aos habitantes de Ciro: «Afastai-vos»! E as ratazanas levantaram a cabeça hesitantes – como as moscas. Olhai! Olhai as moscas! E depois, de repente, precipitaram-se no seu encalço. E o tocador de flauta, com as suas ratazanas, desapareceram para sempre. Assim.

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