As Moscas
Jean-Paul Sartre
Tradução: Nuno
Valadas
Capa: F.C.
Colecção
Presença/Nova Série nº 6
Editorial Presença,
Lisboa s/d
Mas, ó meu povo, amo-vos e foi por vós que matei. Por vós. Vim para
reclamar o meu reino e vós repelistes-me por não ser dos vossos. Mas agora já
sou dos vossos, estamos unidos pelo sangue e já mereço ser o vosso rei. Os
vossos pecados e remorsos, as vossas angústias nocturnas, o crime de Egisto,
tudo isso é meu, tudo isso eu tomo sobre mim. Que vos não assustem mais os
vossos mortos, pois agora são os meus mortos. E olhai: até as vossas fiéis
moscas vos trocaram por mim. Mas não temais, ó povo de Argos, que me vá sentar,
ensanguentado, no trono da minha vítima; um Deus mo ofereceu e eu recusei-o.
Quero ser um rei sem reino nem súbditos. Adeus, meu povo, tentai viver; agora
tudo é novo por aqui, tudo vai começar. Uma vida estranha. Escutai só isto: um
Verão, Ciro foi invadido pelas ratazanas. Era uma praga horrível que tudo roía
e os habitantes chegaram a pensar que por causa dela acabariam por morrer. Porém,
um dia, chegou um tocador de flauta e todas as ratazanas se reuniram à sua
volta. Pôs-se então o flautista em marcha em grandes passadas, assim gritando
aos habitantes de Ciro: «Afastai-vos»! E as ratazanas levantaram a cabeça
hesitantes – como as moscas. Olhai! Olhai as moscas! E depois, de repente,
precipitaram-se no seu encalço. E o tocador de flauta, com as suas ratazanas,
desapareceram para sempre. Assim.
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