segunda-feira, 20 de agosto de 2018

SÃO MUITAS AS CONTRARIEDADES DA VIDA


Como igualmente se tem visto em outros tempos e lugares, são muitas as contrariedades da vida. Quando Ricardo Reis acordou, manhã alta, sentiu na casa uma presença, talvez não fosse ainda a solidão, era o silêncio, meio-irmão dela. Durante alguns minutos viu fugir-lhe o ânimo como se assistisse ao correr da areia numa ampulheta, fatigadíssima comparação que, apesar de o ser, sempre regressa, um dia a dispensaremos, quando, por termos uma longa vida de duzentos anos, formos nós próprios a ampulheta, atentos à areia que em nós corre, hoje não, que a vida, curta sendo, não dá para contemplações. Mas era de contrariedades que falávamos. Quando Ricardo Reis se levantou e foi à cozinha para acender o esquentador e o bico do gás, descobriu que estava sem fósforos, esquecera-se de os comprar. E como um esquecimento nunca vem só, viu que lhe faltava também o saco de fazer o café, é bem verdade que um homem sozinho não vale nada. A solução mais fácil, por mais próxima, seria ir bater à porta dos vizinhos, o de baixo ou o de cima, Queira desculpar, minha senhora, sou o novo inquilino do segundo andar, mudei-me para cá ontem, agora queria fazer o café, tomar banho, fazer a barba, e estou sem fósforos, também me falta o saco do café, mas isso ainda é o menos, passo sem ele, tenho um pacote de chá, disso não me esqueci, o pior é o banho, se me emprestasse um fósforo, muito obrigado, desculpe ter vindo incomodá-la. Sendo os homens irmãos uns dos outros, ainda que meios, nada mais natural, e nem deveria ter de sair para o frio da escada, vinham aí perguntar-lhe, Precisa de alguma coisa, dei por que se mudou ontem, já se sabe que nas mudanças é assim, se não faltam os fósforos, esqueceu o sal, se veio o sabão, perdeu-se o esfregão para ele, os vizinhos são para as ocasiões. Ricardo Reis não foi pedir socorro, ninguém desceu ou subiu a oferecer préstimos, então não teve mais remédio que vestir-se, calçar-se, pôs um cachecol a esconder a barba crescida, enterrou o chapéu pela cabeça abaixo, irritado por se ter esquecido, ainda mais por ter de sair à rua neste preparo, à procura de fósforos. Foi primeiro à janela, a ver que tempo estava, céu coberto, chuva nenhuma, o Adamastor sozinho, ainda é cedo para virem os velhos a ver os navios, a esta hora estarão em casa a fazer a
barba, com água fria, e daí talvez não, talvez as cansadas mulheres lhes aqueçam um pucarinho de água, quebrada só da friura, que a virilidade dos homens portugueses, no geral máxima entre todas, não tolera deliquescências, basta lembrar que descendemos em linha recta daqueles lusitanos que tomavam banho nas lagoas geladas dos Montes Hermínios e iam logo a seguir fazer um filho à lusitana. Numa carvoaria e taberna da parte baixa do bairro comprou Ricardo Reis os fósforos, meia dúzia de caixas para que o carvoeiro não achasse mesquinho o matinal negócio, pois muito se enganava, que venda assim, por atacado, não se lembrava o homem de ter feito desde que o mundo é mundo, aqui ainda se usa ir pedir lume à vizinha.

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