quarta-feira, 19 de outubro de 2022

DOCKERY PLANTATION (BIRTHPLACE OF THE BLUES?)


Embora faça todo o sentido, a interrogação não é minha, mas sim da própria “Mississippi Blues Commission”, numa daquelas placas azuis que, nesse Estado, assinalam tudo quanto é lugar importante na História do Blues. 

Tal como nos alerta David Evans logo no início do capítulo dedicado ao Blues do livro “American Roots Music” (pág.34), “although you can trace the probable roots of the blues, its actual birth remains shrouded in mystery. No one knows precisely who performed the first blues song, or where”. 

É por isso que garantir, nos dias de hoje, o preciso local e data onde nasceu o Blues é uma tarefa quase tão difícil como …. (iria surgir aqui uma bicada anti-benfiquista mas, felizmente, a censura interveio a tempo…). 

Entre os finais do séc. XIX  e o início do séc. XX há notícia do aparecimento de músicas muito semelhantes ao Blues em, para além da Louisiana e do Mississippi, locais tão diferentes como o Arkansas, o Texas, o Tennessee, a Geórgia e até lá mais acima, na Virgínia, no Kentucky e no Missouri.

Se nos atendermos aos acontecimentos mais relevantes nos primórdios do Blues, chama-nos a atenção o facto de eles terem ocorrido em locais muito distintos.

Curiosamente, tal como o Fado nos seus primórdios no Brasil, os primeiros Blues eram uma música de dança, instrumentais com uma grande influência do “ragtime”. A primeira música conhecida a utilizar a palavra “blues” no seu título data de 1908, chamou-se “I Got the Blues”e era um instrumental de um violinista de New Orleans de nome Antonio Maggio.

Blind Lemon Jefferson, uma das grandes figuras dos primórdios do Blues e o primeiro “bluesman” a ser alvo de uma gravação, era natural do Texas e começou a cantar em público na segunda década do séc. passado nos bordeis de Elm Street, em Dallas  

W. C. Hardy, o autor dos primeiros êxitos de um blues instrumental, primeiro com “Memphis Blues” e depois, mais tarde e ainda com maior sucesso, com o celebérrimo “St. Louis Blues”, era natural de Florence, no Alabama, e desde muito cedo começou a viajar por todos os Estados Unidos, primeiro sozinho e, mais tarde, levando consigo a sua banda e a sua Música. Na sua autobiografia conta que desde os finais do séc. XIX se recorda de ter ouvido canções que se assemelhavam muito ao Blues não só no Mississippi, mas também no Indiana e no Kentucky 

Um dos primeiros grandes sucessos do blues a nível nacional, que terá vendido um milhão de cópias num curto espaço de tempo, foi “Crazy Blues”, que Mamie Smith gravou para a “Okeh Records” em Agosto de 1920. Ora essa gravação foi feita em New York e Mamie Smith era uma veterana cantora de “vaudeville” que trabalhava nos clubes noturnos de Harlem, era natural de Cincinnati e nunca antes tivera qualquer ligação pessoal ao Sul profundo. Foi a primeira gravação de uma cantora afro-americana a ser especificamente rotulada como Blues.

Nos Apalaches da Virginia surgiu um tipo específico de Blues a que se chamou “Piedmont Blues”, ao qual ficaram ligados, logo a partir dos anos 20 do séc. passado, nomes como Blind Gary Davis e Blind Boy Fuller e, mais tarde, Sonny Terry, Etta Baker e Elizabeth Cotten. A título de curiosidade, o nome dos Pink Floyd ficou a dever-se à junção dos nomes de dois interpretes deste tipo de Blues, o vocalista Pink Anderson e o guitarrista Floyd Council, que tocaram juntos num disco que os membros da banda costumavam ouvir em casa de Syd Barrett.   

Melhor será reconhecer, então, que não existiu apenas um tipo de Blues, mas vários, e que a mera distinção entre “blues rural” e “blues urbano”, que tantas vezes se fez, não é suficiente para englobar toda a multiplicidade de variantes que essa música pode assumir. 


Sendo tudo isto verdade, uma coisa, porém, é certa: hoje, quando olhamos para trás e falamos do velho Blues, é de nomes como Blind Lemon Jefferson, Charlie Patton, Robert Johnson, Bessie Smith, Big Bill Bronzy, Big Joe Williams, Son House, Leadbelly, Howlin’ Wolf, Mississipi John Hurt, Sonny Boy Williamson, Willie Dixon, John Lee Hooker, Skip James, Bukka White, Muddy Waters (meu Deus, eles são tantos que tenho de parar…!) que falamos.  E, com exceção de Blind Lemon, Bessie Smith e Leadbelly, todos os restantes são oriundos do Delta do Mississippi.

O que terá existido, então, de particular em toda essa grande região, que se estende desde Vicksburg, no Mississipi, às proximidades de Memphis, no Tennessee, para ter possibilitado o surgimento desse tipo de música? 


Uma enorme pobreza, 80% de população negra e trabalho árduo no campo, direi eu.

Na “Enciclopédia Ilustrada do Jazz & Blues” (pág 14) afirma-se que “o sistema de plantações de algodão do Delta do Mississippi gerou uma cultura do blues particularmente concentrada e prolifica, pois ao fim de semana os trabalhadores procuravam alivio para os seus males em festas domésticas, em “juke joints”, em jantares rurais, nos churrascos de peixe e nos piqueniques, ou nos cafés, saloons, barrelhouses, clubes noturnos e bordeis da cidade mais próxima”.

E depois acrescenta o que já atrás vos disse, ou seja, que o Blues “servia principalmente como música de dança, tocada por tocadores de banjo, bandolim e guitarras, grupos de cordas com violinos, tocadores de harmónica e washboard, pífaro e tambor, e jug bands”, e que  “no topo da escala dos artistas estavam os pianistas”, sendo o piano “o mais importante instrumento do blues ao longo de várias décadas”.

Na citação atrás mencionada existe uma frase-chave que é “os trabalhadores procuravam alivio para os seus males”…

Num dos documentários realizados  sob a égide de Martin Scorsese alguém diz (penso que Son House, mas não garanto…) que para se ter voz e alma para cantar o blues era preciso saber o que era estar de sol a sol a lavrar a terra com um arado e a berrar com a mula que o puxava…!

Assim sendo, não se podendo afirmar, ou negar, com absoluta certeza, que o Blues nasceu no Delta do Mississippi, já se torna possível garantir que foi aí, na dura vida das suas plantações e na extrema exploração e segregação a que estavam sujeitos os seus trabalhadores que nasceu o Blues rural mais cru, mais pungente e mais sofrido que nos ficou na memória. E também o mais resistente já que, quando a voz humana começou, progressivamente, a acompanhar o som instrumental, por vezes ao se cantar acerca de uma mulher amada que não nos merecia, que nos fazia sofrer e que nos tratava mal, bem lá no fundo era do capataz e/ou do patrão que se estava a falar.  

De todas as plantações que existiram no Delta do Mississippi, duas houve que tiveram uma importância fulcral no desenvolvimento do Blues em toda essa região: Stovall Plantation, onde viveu e trabalhou Muddy Waters e, acima de tudo, Dockery Plantation, por onde passaram um número muito significativo dos clássicos intérpretes do Blues, como trabalhadores a tempo inteiro, a tempo parcial, simples biscateiros ou músicos semi-profissionais que por lá passavam para animar as festas de que atrás se falou.

 Dockery Plantation foi estabelecida nos finais do séc. XIX  e prosperou nas primeiras décadas do séc. XX, sobretudo com o cultivo do algodão, mas não só.

Chegou a empregar 2.000 trabalhadores e era de uma extensão tão grande (104 km2) que no seu interior disponha de um apeadeiro de comboio, uma estação de correios, uma bomba de gasolina, diversos armazéns de venda de produtos e uma grande Igreja, para além de várias capelas mais pequenas.

Como se se tratasse de um estado dentro do próprio Estado, Dockery tinha a particularidade de cunhar a sua própria moeda e com ela pagar à maior parte dos seus trabalhadores, que com esse dinheiro se podiam abastecer do que necessitassem para a sua sobrevivência nos grandes armazéns da Plantação. 

Esta era uma maneira extremamente hábil de manter toda uma população de trabalhadores ditos “livres” amarrados à terra, sobretudo quando as primeiras grandes indústrias do Norte se apresentavam já como um grande polo de atração à imigração interna.

Por muito dinheiro que os trabalhadores de Dockery conseguissem juntar (e, geralmente, não o conseguiam…), isso de nada lhes serviria fora dos portões da Plantação. 

E como havia sempre um grande incentivo à compra a crédito nos armazéns da Plantação, esta subtil forma de manutenção do trabalhador na permanente dependência do seu patrão era ainda mais acentuada, tal como nos lembra a célebre canção “Sixty Tons”.

“You load 16 tons, what do you get?

Another day older and deeper in debt

St. Peter, don’t call me ‘cause I can’t go

I owe my soul to the company store”

Charlie Patton, um dos precursores do Blues, foi, ainda rapazinho e na companhia da sua família, um dos primeiros futuros músicos a ir trabalhar para Dockery. Mas não foi o primeiro porque ele próprio terá aprendido a tocar com Henry Sloan, um músico mais velho que já lá se encontrava.

Mas a fama de Patton como músico não só virtuoso, mas também explosivo e exuberante nas suas atuações, começou a alastrar. 

No geral, todos queriam ir trabalhar para Dockery, porque parece que, em comparação com outras plantações da região, os seus trabalhadores não eram muito maltratados. Mas no que se refere aos músicos ou candidatos a músicos, todos queriam, acima de tudo, ver, ouvir e aprender com Charlie Patton.

De forma intermitente, Charlie Patton terá vivido em Dockery durante as primeiras três décadas do séc. XX e, a exemplo dele, outros músicos tão importantes como Willie Brown, Son House, Howlin’ Wolf, Robert Johnson, Willie Dixon, Tommy Johhson e Pops Staples, o futuro pai dos “Staple Singers”, por lá passaram, o que deu a essa Plantação a fama de ter sido, de facto, o local onde o Delta Blues nasceu e se desenvolveu.

Com o passar dos anos e o progresso da mecanização agrícola, a Plantação foi perdendo relevância em número de trabalhadores e diversificando a sua produção.

Quanto aos músicos do Delta, a maior parte deles abandonou as respetivas plantações e seguiu em direção ao Norte para Memphis, St. Louis e, sobretudo, Chicago, onde na década de 50 nomes como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Sonny Boy Williamson viriam a dar origem a um novo tipo de Blues urbano, o chamado “Chicago Blues”.     

Hoje Dockery Plantation pouco mais é do que um enorme museu ao ar livre dedicado à História do Blues e do trabalho rural.       

Ao contrário do que sucede com outros lugares célebres do Mississippi profundo, chegar a Dockery é a coisa mais fácil deste Mundo. Apanha-se a Estrada 49 que sai de Clarksdale e em menos de uma hora ela surge-nos bem visível, à esquerda, mesmo à beira da estrada.

Aqui vos deixo algumas fotografias, incluindo a bomba de gasolina e a bonita igreja principal.  

PS:

Já vos dei essa informação noutra ocasião mas, tendo já passado algum tempo, nunca será demais relembrar… Não sendo eu um especialista do Blues, nem pretendendo fingir que o sou, a maior parte das informações fatuais constantes deste texto foram obtidas nas seguintes três obras: “Enciclopédia Ilustrada do Jazz & Blues” (2005), organizada por Howard Mandel, de que existe tradução portuguesa nas Edições Afrontamento; “American Roots Music” (2001), cujo principal Coordenador foi Robert Santelli; “The Land Where The Blues Was Born” (1993), de Alan Lomax, do qual utilizei uma edição francesa da Editora Les Fondeurs de Briques.

Depois de duas ou três visões nos últimos anos, é natural que também qualquer coisa me tenha ficado na memória da séria “Martin Scorsese Presents: The Blues”, composta de sete documentários realizados por diversos realizadores    

 

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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