Embora
faça todo o sentido, a interrogação não é minha, mas sim da própria
“Mississippi Blues Commission”, numa daquelas placas azuis que, nesse Estado,
assinalam tudo quanto é lugar importante na História do Blues.
Tal como
nos alerta David Evans logo no início do capítulo dedicado ao Blues do livro
“American Roots Music” (pág.34), “although you can trace the probable roots
of the blues, its actual birth remains shrouded in mystery. No one knows
precisely who performed the first blues song, or where”.
É por isso que garantir, nos dias de hoje, o preciso local e data onde nasceu o Blues é uma tarefa quase tão difícil como …. (iria surgir aqui uma bicada anti-benfiquista mas, felizmente, a censura interveio a tempo…).
Entre os
finais do séc. XIX e o início do séc. XX há notícia do aparecimento de
músicas muito semelhantes ao Blues em, para além da Louisiana e do Mississippi,
locais tão diferentes como o Arkansas, o Texas, o Tennessee, a Geórgia e até lá
mais acima, na Virgínia, no Kentucky e no Missouri.
Se nos
atendermos aos acontecimentos mais relevantes nos primórdios do Blues,
chama-nos a atenção o facto de eles terem ocorrido em locais muito distintos.
Curiosamente,
tal como o Fado nos seus primórdios no Brasil, os primeiros Blues eram uma
música de dança, instrumentais com uma grande influência do “ragtime”. A
primeira música conhecida a utilizar a palavra “blues” no seu título data de
1908, chamou-se “I Got the Blues”e era um instrumental de um violinista de New
Orleans de nome Antonio Maggio.
Blind
Lemon Jefferson, uma das grandes figuras dos primórdios do Blues e o primeiro
“bluesman” a ser alvo de uma gravação, era natural do Texas e começou a cantar
em público na segunda década do séc. passado nos bordeis de Elm Street, em
Dallas
W. C.
Hardy, o autor dos primeiros êxitos de um blues instrumental, primeiro com
“Memphis Blues” e depois, mais tarde e ainda com maior sucesso, com o
celebérrimo “St. Louis Blues”, era natural de Florence, no Alabama, e desde
muito cedo começou a viajar por todos os Estados Unidos, primeiro sozinho e,
mais tarde, levando consigo a sua banda e a sua Música. Na sua autobiografia
conta que desde os finais do séc. XIX se recorda de ter ouvido canções que se
assemelhavam muito ao Blues não só no Mississippi, mas também no Indiana e no
Kentucky
Um dos
primeiros grandes sucessos do blues a nível nacional, que terá vendido um
milhão de cópias num curto espaço de tempo, foi “Crazy Blues”, que Mamie Smith
gravou para a “Okeh Records” em Agosto de 1920. Ora essa gravação foi feita em
New York e Mamie Smith era uma veterana cantora de “vaudeville” que trabalhava
nos clubes noturnos de Harlem, era natural de Cincinnati e nunca antes tivera
qualquer ligação pessoal ao Sul profundo. Foi a primeira gravação de uma
cantora afro-americana a ser especificamente rotulada como Blues.
Nos
Apalaches da Virginia surgiu um tipo específico de Blues a que se chamou
“Piedmont Blues”, ao qual ficaram ligados, logo a partir dos anos 20 do séc.
passado, nomes como Blind Gary Davis e Blind Boy Fuller e, mais tarde, Sonny Terry,
Etta Baker e Elizabeth Cotten. A título de curiosidade, o nome dos Pink Floyd
ficou a dever-se à junção dos nomes de dois interpretes deste tipo de Blues, o
vocalista Pink Anderson e o guitarrista Floyd Council, que tocaram juntos num
disco que os membros da banda costumavam ouvir em casa de Syd
Barrett.
Melhor
será reconhecer, então, que não existiu apenas um tipo de Blues, mas vários, e
que a mera distinção entre “blues rural” e “blues urbano”, que tantas vezes se
fez, não é suficiente para englobar toda a multiplicidade de variantes que essa
música pode assumir.
O que
terá existido, então, de particular em toda essa grande região, que se estende
desde Vicksburg, no Mississipi, às proximidades de Memphis, no Tennessee, para
ter possibilitado o surgimento desse tipo de música?
Na
“Enciclopédia Ilustrada do Jazz & Blues” (pág 14) afirma-se que “o
sistema de plantações de algodão do Delta do Mississippi gerou uma cultura do
blues particularmente concentrada e prolifica, pois ao fim de semana os
trabalhadores procuravam alivio para os seus males em festas domésticas, em
“juke joints”, em jantares rurais, nos churrascos de peixe e nos piqueniques,
ou nos cafés, saloons, barrelhouses, clubes noturnos e bordeis da cidade mais
próxima”.
E depois
acrescenta o que já atrás vos disse, ou seja, que o Blues “servia
principalmente como música de dança, tocada por tocadores de banjo,
bandolim e guitarras, grupos de cordas com violinos, tocadores de
harmónica e washboard, pífaro e tambor, e jug bands”, e que “no
topo da escala dos artistas estavam os pianistas”, sendo o piano “o mais
importante instrumento do blues ao longo de várias décadas”.
Na
citação atrás mencionada existe uma frase-chave que é “os trabalhadores
procuravam alivio para os seus males”…
Num dos
documentários realizados sob a égide de Martin Scorsese alguém diz (penso
que Son House, mas não garanto…) que para se ter voz e alma para cantar o blues
era preciso saber o que era estar de sol a sol a lavrar a terra com um arado e
a berrar com a mula que o puxava…!
Assim sendo, não se podendo afirmar, ou negar, com absoluta certeza, que o Blues nasceu no Delta do Mississippi, já se torna possível garantir que foi aí, na dura vida das suas plantações e na extrema exploração e segregação a que estavam sujeitos os seus trabalhadores que nasceu o Blues rural mais cru, mais pungente e mais sofrido que nos ficou na memória. E também o mais resistente já que, quando a voz humana começou, progressivamente, a acompanhar o som instrumental, por vezes ao se cantar acerca de uma mulher amada que não nos merecia, que nos fazia sofrer e que nos tratava mal, bem lá no fundo era do capataz e/ou do patrão que se estava a falar.
De todas
as plantações que existiram no Delta do Mississippi, duas houve que tiveram uma
importância fulcral no desenvolvimento do Blues em toda essa região: Stovall
Plantation, onde viveu e trabalhou Muddy Waters e, acima de tudo, Dockery
Plantation, por onde passaram um número muito significativo dos clássicos
intérpretes do Blues, como trabalhadores a tempo inteiro, a tempo parcial,
simples biscateiros ou músicos semi-profissionais que por lá passavam para
animar as festas de que atrás se falou.
Dockery
Plantation foi estabelecida nos finais do séc. XIX e prosperou nas
primeiras décadas do séc. XX, sobretudo com o cultivo do algodão, mas não só.
Chegou a
empregar 2.000 trabalhadores e era de uma extensão tão grande (104 km2) que no
seu interior disponha de um apeadeiro de comboio, uma estação de correios, uma
bomba de gasolina, diversos armazéns de venda de produtos e uma grande Igreja,
para além de várias capelas mais pequenas.
Como se
se tratasse de um estado dentro do próprio Estado, Dockery tinha a
particularidade de cunhar a sua própria moeda e com ela pagar à maior parte dos
seus trabalhadores, que com esse dinheiro se podiam abastecer do que
necessitassem para a sua sobrevivência nos grandes armazéns da Plantação.
Esta era
uma maneira extremamente hábil de manter toda uma população de trabalhadores
ditos “livres” amarrados à terra, sobretudo quando as primeiras grandes
indústrias do Norte se apresentavam já como um grande polo de atração à
imigração interna.
Por muito
dinheiro que os trabalhadores de Dockery conseguissem juntar (e, geralmente,
não o conseguiam…), isso de nada lhes serviria fora dos portões da
Plantação.
E como havia sempre um grande incentivo à compra a crédito nos armazéns da Plantação, esta subtil forma de manutenção do trabalhador na permanente dependência do seu patrão era ainda mais acentuada, tal como nos lembra a célebre canção “Sixty Tons”.
“You
load 16 tons, what do you get?
Another
day older and deeper in debt
St.
Peter, don’t call me ‘cause I can’t go
I owe my soul to the company store”
Charlie
Patton, um dos precursores do Blues, foi, ainda rapazinho e na companhia da sua
família, um dos primeiros futuros músicos a ir trabalhar para Dockery. Mas não
foi o primeiro porque ele próprio terá aprendido a tocar com Henry Sloan, um
músico mais velho que já lá se encontrava.
Mas a
fama de Patton como músico não só virtuoso, mas também explosivo e exuberante
nas suas atuações, começou a alastrar.
No geral,
todos queriam ir trabalhar para Dockery, porque parece que, em comparação com
outras plantações da região, os seus trabalhadores não eram muito maltratados.
Mas no que se refere aos músicos ou candidatos a músicos, todos queriam, acima
de tudo, ver, ouvir e aprender com Charlie Patton.
De forma
intermitente, Charlie Patton terá vivido em Dockery durante as primeiras três
décadas do séc. XX e, a exemplo dele, outros músicos tão importantes como
Willie Brown, Son House, Howlin’ Wolf, Robert Johnson, Willie Dixon, Tommy
Johhson e Pops Staples, o futuro pai dos “Staple Singers”, por lá passaram, o
que deu a essa Plantação a fama de ter sido, de facto, o local onde o Delta
Blues nasceu e se desenvolveu.
Com o
passar dos anos e o progresso da mecanização agrícola, a Plantação foi perdendo
relevância em número de trabalhadores e diversificando a sua produção.
Quanto
aos músicos do Delta, a maior parte deles abandonou as respetivas plantações e
seguiu em direção ao Norte para Memphis, St. Louis e, sobretudo, Chicago, onde
na década de 50 nomes como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Sonny Boy Williamson
viriam a dar origem a um novo tipo de Blues urbano, o chamado “Chicago
Blues”.
Hoje Dockery Plantation pouco mais é do que um enorme museu ao ar livre dedicado à História do Blues e do trabalho rural.
Ao
contrário do que sucede com outros lugares célebres do Mississippi profundo, chegar
a Dockery é a coisa mais fácil deste Mundo. Apanha-se a Estrada 49 que sai de
Clarksdale e em menos de uma hora ela surge-nos bem visível, à esquerda, mesmo
à beira da estrada.
Aqui vos
deixo algumas fotografias, incluindo a bomba de gasolina e a bonita igreja
principal.
PS:
Já vos
dei essa informação noutra ocasião mas, tendo já passado algum tempo, nunca
será demais relembrar… Não sendo eu um especialista do Blues, nem pretendendo
fingir que o sou, a maior parte das informações fatuais constantes deste texto
foram obtidas nas seguintes três obras: “Enciclopédia Ilustrada do Jazz &
Blues” (2005), organizada por Howard Mandel, de que existe tradução portuguesa
nas Edições Afrontamento; “American Roots Music” (2001), cujo principal
Coordenador foi Robert Santelli; “The Land Where The Blues Was Born” (1993), de
Alan Lomax, do qual utilizei uma edição francesa da Editora Les Fondeurs de
Briques.
Depois de
duas ou três visões nos últimos anos, é natural que também qualquer coisa me
tenha ficado na memória da séria “Martin Scorsese Presents: The Blues”,
composta de sete documentários realizados por diversos
realizadores
Texto e
fotografias de Luís Miguel Mira
Sem comentários:
Enviar um comentário