Ao contrário do que sucedeu no último texto que vos
enviei, em que a interrogação não era de minha responsabilidade, aqui é-o,
inteiramente.
Por uma questão de coerência, não poderia deixar de a
fazer…
Se gastei o meu latim a explicar-vos que a origem do
Blues era impossível de determinar, como é que poderia vir agora aqui
apresentar-vos alguém como sendo o seu Pai…? Se não se pode garantir com toda a
certeza nem onde, nem quando, nem como nasceu o “filho”, que legitimidade teria
eu para vos apresentar o pai…?
No entanto, nada disso impediu W. C. Handy, como ficou
conhecido na gíria, de publicar em 1941 uma autobiografia, à qual deu,
precisamente, esse nome: “Father of the Blues”.
Este autoproclamado título deverá ser interpretado em
sentido figurado, mais numa ótica de “divulgador” do Blues e não de seu
“criador”.
Mas já lá iremos…
William Handy nasceu
em Florence, no Alabama, em 1873, filho de um fanático pregador Metodista que
considerava como “música do diabo” todo e qualquer tipo de música que não
tivesse uma natureza religiosa.
Mal imaginaria ele o
filho que iria ter…
Desde muito cedo que
o jovem Handy mostrou apetência por música, mas não propriamente a religiosa.
Começou por aprender
violino, depois órgão e, mais tarde, fixar-se-ia no trompete.
Também desde muito
cedo, às escondidas de seu pai, começou a tocar em agrupamentos musicais e a
atuar em variados tipos de eventos, quase todos de duvidosa natureza
religiosa...
Em 1892, com apenas
19 anos de idade, concorreu a um lugar de professor de música em Birmingham, na
futura Universidade de Alabama. Ganhou-o com facilidade, mas acabou por recusar
o lugar devido à parca remuneração que lhe propuseram. Viria a aceitar o mesmo
lugar dez anos mais tarde, com melhor pagamento, mas a experiência não duraria
mais de dois anos por Handy se recusar a ministrar o ensino musical demasiado
“clássico” que lhe era imposto.
Em 1893 estava em
Indiana, onde formou um quarteto de metais chamado “Lauzeta Quartet”, com o
qual tocou por ocasião da Exposição Universal de Chicago
Em 1896, com 23 anos,
torna-se líder de uma nova banda, os “Mahara’s Colored Minstrels”, com a qual,
durante os sete anos que se seguiram, percorreu por diversas vezes todos os
Estados Unidos e atuou também no Canadá, no México e em Cuba.
Em 1903, procurando
para si e para a sua Família uma vida mais pacata, estabeleceu-se durante seis
anos em Clarksdale, no Mississippi, num local que é hoje recordado através
desta placa que vos mostro. Aí formou uma banda de “Ragtime” chamada “The
Kinights of Pythias”, com a qual percorreu toda a região.
Foi nesse período de
seis anos que passou no Mississippi que Handy, deslocando-se frequentemente
pelas grandes plantações do Delta, se familiarizou com o tipo de música que aí
estava a nascer e que viria a ser, mais tarde, apelidada de Blues. E foi numa
pequena estação ferroviária de Tutwiler, nos arredores de Clarksdale, que Handy
ouviria uma coisa que nunca mais esqueceu e à qual se refere expressamente nas
suas memórias: um jovem negro a tocar guitarra com uma navalha, extraindo dela
uma sonoridade que nunca antes tinha ouvido em lado nenhum.
Parece que Handy
tinha uma capacidade muito particular que era a de captar e memorizar todos os
sons que ouvia à sua volta, para deles extrair música. Desde os sons
provenientes da própria natureza , como o chilrear dos pássaros, o som do vento
a varrer a copa das árvores ou o barulho dos rios cavalgando entre seus leitos,
até à voz humana nos seus diferentes tipos de canções de trabalho e de lazer,
tudo lhe servia… Por exemplo, o tal som ouvido naquela estação de comboios
perdida no meio de nenhures viria a estar na origem de uma canção, “Yellow Dog
Blues”, publicada em 1915.
Em 1908 Handy e a sua
Família abandonaram Clarksdale e fixaram-se em Memphis, onde uma nova e
decisiva faceta da sua carreira musical se iria desenrolar.
Em 1909, em conjunto
com um amigo, Harry Pace, forma uma editora destinada a publicar em forma de
papel as suas músicas, bem como as de outros compositores, a qual se veio a
revelar particularmente rentável.
Nesse mesmo ano de
1909, com o título de “Mr. Crumb”, compôs a música oficial da campanha
eleitoral para “Mayor” local de um candidato democrata, Edward H, Crumb, que a
viria a ganhar e a assumir grande notoriedade política, da qual também Handy
viria a beneficiar bastante.
Mas para que se compreenda os “valores” de Handy e a sua apetência pelo dinheiro, no prefácio que escreveu para a autobiografia do músico , Abbe Niles, um seu amigo que com ele se correspondera durante décadas, conta-nos que ele lhe terá um dia confessado que, nas tais eleições que deram a vitória a Mr. Crumb, ele também havia composto a música para um candidato rival…!
Em 1912 Handy mudou o
nome de “Mr. Crumb” para “Memphis Blues” e publicou-a com enorme sucesso, tendo
sido essa a primeira música a ser publicada com a palavra “Blues” no seu
título. Outras se seguiriam nesse mesmo ano de 1912, como “Dallas Blues” e
“Baby Seals Blues”.
“Memphis Blues” foi
gravada em 1914 pela “Victor Military Band” e, por curiosidade, aqui vos deixo
essa gravação.
Mesmo sabendo-se que, nos seus primórdios, o Blues coeçou por ser uma música instrumental e de dança, para os nossos ouvidos de hoje é difícil aceitar esta música como sendo “Blues”, já que nos parece muito mais uma marcha “Ragtime” do que qualquer outra coisa. Não é, de facto, esta a música a que hoje chamamos “Blues”, e também não seria esta, certamente, a música que Charlie Patton e os seus amigos tocavam na Plantação de Dockery, a que fiz referência no último texto. Mas foi assim que ficou para a História e não me compete a mim, simples leigo, adulterar a História…
Em 1914 Handy viria a publicar “St. Louis Blues”, uma das músicas mais famosas da História do Jazz que daria o seu nome ao filme que, quarenta e quatro anos mais tarde, iria retratar a sua vida.
No que respeita à sua ligação ao dito “Blues”, esta foi a fase mais importante da carreira de Handy, pelo que não me irei alongar muito mais, dizendo-vos, apenas, que em 1917 Handy se instalou no “Tin Pan Alley” de Nova Iorque, aí continuando a compor e a publicar músicas para filmes e peças de teatro, embora nunca tenha deixado de atuar, a solo ou acompanhado.
Em 1941 publicaria as
suas célebres “memórias” com o tal muito polémico título de “Father of the
Blues”, e dois anos mais tarde viria a sofrer uma grave queda que o deixou
parcialmente paralisado e quase cego, embora nunca tivesse deixado de
trabalhar.
Viria a falecer em 28
de Março de 1958, com 85 anos.
Como vos disse, o
facto de Handy se ter autoproclamado “Father of the Blues” e até também,
noutras circunstâncias, “The Inventor of the Jazz”, não foi isento de polémica.
Uma das principais ocorreu nas páginas da revista “Downbeat”, à qual Jelly Roll
Morton, um músico de New Orleans dos primórdios do Jazz, endereçou uma
“aberta-aberta” afirmando que “it is generally known and beyond contradiction,
that the cradle of jazz is New Orleans and that I personally created jazz
en 1902”…
A polémica
prolongou-se no tempo, mas a verdade é que parece que nem William Hardy nem
Jelly Morton foram os verdadeiros “inventores do Jazz”, tal como vos contarei
numa próxima oportunidade…
Polémicas à parte, W.
C. Handy é hoje considerado um dos mais importantes compositores americanos do
Séc. XX. O que dizem os musicólogos é que a sua Obra foi beber a tudo, ao
Blues, ao Jazz, à Clássica e que até revela acordes do tango argentino e das “vihuelas”
e “mariachis” mexicanas que Handy terá, certamente, ouvido quando por lá andou
em digressão, nos seus tempos de juventude.
Quanto à sua
designação como “Pai do Blues”, ela não deverá ser interpretada em sentido
literal: como vos disse, foi Handy quem publicou a primeira música com a
palavra “Blues” no seu título e foi Handy o responsável pelos primeiros grandes
sucessos de vendas dessa música, sobretudo a partir de “St. Louis Blues”.
Poderá afirmar-se, de facto e sem grande margem de erro, que terá sido Handy
quem levou o Blues do relativo “ghetto” onde se encontrava nas primeiras
décadas do Séc XX para o “mainstream”, possibilitando-lhe uma mais ampla
divulgação.
Como não
podia deixar de ser na América, a sua vida deu um filme: “St. Louis Blues”,
realizado em 1958 por Allen Reisner e estreado poucos dias após a sua morte.
Não obstante o filme
estar carregado de vedetas do mundo do Jazz e do Gospel (Nat King Cole,
no papel de Handy, mas também Mahalia Jackson, Ella Fitzgerald, Ertha Kitt e
Cab Calloway) e de ter o “arranjo musical” do grande Nelson Riddle, talvez
Handy merecesse melhor, porque se trata de um mau filme, no qual a sua vida é
romanceada e adulterada à moda de Hollywood. Não só poucas coisas batem certo
com a sua biografia, como também se chega ao ponto de, numa cena passada na
transição do Séc. XIX para o Séc. XX, se anunciar em grandes letras num cartaz
de espetáculo a presença da “Grande Ella Fitzgerald”, que só viria a nascer ….
em 1918!
Por mera
curiosidade deixo-vos o “trailer” desse filme, com uma correta frase que resume
a obra de Handy desta forma: “He took the music from the heartbeat of
America, and created a new rhythm that swept the World”…
E despeço-me dando
corpo e voz ao próprio Handy, já nos seus 75 anos, a interpretar “St. Louis
Blues” num dos primeiros episódios do Ed Sullivan Show, em Fevereiro de 1949.
Texto e Fotografias de Luís Miguel Mira
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