sábado, 29 de outubro de 2022

WILLIAM CHRISTOPHER HANDY (FATHER OF THE BLUES…?)


Ao contrário do que sucedeu no último texto que vos enviei, em que a interrogação não era de minha responsabilidade, aqui é-o, inteiramente.

Por uma questão de coerência, não poderia deixar de a fazer…

Se gastei o meu latim a explicar-vos que a origem do Blues era impossível de determinar, como é que poderia vir agora aqui  apresentar-vos alguém como sendo o seu Pai…? Se não se pode garantir com toda a certeza nem onde, nem quando, nem como nasceu o “filho”, que legitimidade teria eu para vos apresentar o pai…?

No entanto, nada disso impediu W. C. Handy, como ficou conhecido na gíria, de publicar em 1941 uma autobiografia, à qual deu, precisamente, esse nome: “Father of the Blues”.

Este autoproclamado título deverá ser interpretado em sentido figurado, mais numa ótica de “divulgador” do Blues e não de seu “criador”.

Mas já lá iremos…


William Handy nasceu em Florence, no Alabama, em 1873, filho de um fanático pregador Metodista que considerava como “música do diabo” todo e qualquer tipo de música que não tivesse uma natureza religiosa.

Mal imaginaria ele o filho que iria ter…

Desde muito cedo que o jovem Handy mostrou apetência por música, mas não propriamente a religiosa.

Começou por aprender violino, depois órgão e, mais tarde, fixar-se-ia no trompete.

Também desde muito cedo, às escondidas de seu pai, começou a tocar em agrupamentos musicais e a atuar em variados tipos de eventos, quase todos de duvidosa natureza religiosa...

Em 1892, com apenas 19 anos de idade, concorreu a um lugar de professor de música em Birmingham, na futura Universidade de Alabama. Ganhou-o com facilidade, mas acabou por recusar o lugar devido à parca remuneração que lhe propuseram. Viria a aceitar o mesmo lugar dez anos mais tarde, com melhor pagamento, mas a experiência não duraria mais de dois anos por Handy se recusar a ministrar o ensino musical demasiado “clássico” que lhe era imposto.

Em 1893 estava em Indiana, onde formou um quarteto de metais chamado “Lauzeta Quartet”, com o qual tocou por ocasião da Exposição Universal de Chicago

Em 1896, com 23 anos, torna-se líder de uma nova banda, os “Mahara’s Colored Minstrels”, com a qual, durante os sete anos que se seguiram, percorreu por diversas vezes todos os Estados Unidos e atuou também no Canadá, no México e em Cuba.

Em 1903, procurando para si e para a sua Família uma vida mais pacata, estabeleceu-se durante seis anos em Clarksdale, no Mississippi, num local que é hoje recordado através desta placa que vos mostro. Aí formou uma banda de “Ragtime” chamada “The Kinights of Pythias”, com a qual percorreu toda a região.

Foi nesse período de seis anos que passou no Mississippi que Handy, deslocando-se frequentemente pelas grandes plantações do Delta, se familiarizou com o tipo de música que aí estava a nascer e que viria a ser, mais tarde, apelidada de Blues. E foi numa pequena estação ferroviária de Tutwiler, nos arredores de Clarksdale, que Handy ouviria uma coisa que nunca mais esqueceu e à qual se refere expressamente nas suas memórias: um jovem negro a tocar guitarra com uma navalha, extraindo dela uma sonoridade que nunca antes tinha ouvido em lado nenhum.

Parece que Handy tinha uma capacidade muito particular que era a de captar e memorizar todos os sons que ouvia à sua volta, para deles extrair música. Desde os sons provenientes da própria natureza , como o chilrear dos pássaros, o som do vento a varrer a copa das árvores ou o barulho dos rios cavalgando entre seus leitos, até à voz humana nos seus diferentes tipos de canções de trabalho e de lazer, tudo lhe servia… Por exemplo, o tal som ouvido naquela estação de comboios perdida no meio de nenhures viria a estar na origem de uma canção, “Yellow Dog Blues”, publicada em 1915.

Em 1908 Handy e a sua Família abandonaram Clarksdale e fixaram-se em Memphis, onde uma nova e decisiva faceta da sua carreira musical se iria desenrolar.

Em 1909, em conjunto com um amigo, Harry Pace, forma uma editora destinada a publicar em forma de papel as suas músicas, bem como as de outros compositores, a qual se veio a revelar particularmente rentável.

Nesse mesmo ano de 1909, com o título de “Mr. Crumb”, compôs a música oficial da campanha eleitoral para “Mayor” local de um candidato democrata, Edward H, Crumb, que a viria a ganhar e a assumir grande notoriedade política, da qual também Handy viria a beneficiar bastante.

Mas para que se compreenda os “valores” de Handy e a sua apetência pelo dinheiro, no prefácio que escreveu para a  autobiografia do músico ,  Abbe Niles, um seu amigo que com ele se correspondera durante décadas, conta-nos que ele lhe terá um dia confessado que, nas tais eleições que deram a vitória a Mr. Crumb,  ele também havia composto a música para um candidato rival…!

Em 1912 Handy mudou o nome de “Mr. Crumb” para “Memphis Blues” e publicou-a com enorme sucesso, tendo sido essa a primeira música a ser publicada com a palavra “Blues” no seu título. Outras se seguiriam nesse mesmo ano de 1912, como “Dallas Blues” e “Baby Seals Blues”.

“Memphis Blues” foi gravada em 1914 pela “Victor Military Band” e, por curiosidade, aqui vos deixo essa gravação.

Mesmo sabendo-se que, nos seus primórdios, o Blues coeçou por ser uma música instrumental e de dança, para os nossos ouvidos de hoje é difícil aceitar esta música como sendo “Blues”, já que nos parece muito mais uma marcha “Ragtime” do que qualquer outra coisa. Não é, de facto, esta a música a que hoje chamamos “Blues”, e também não seria esta, certamente, a música que Charlie Patton e os seus amigos tocavam na Plantação de Dockery, a que fiz referência no último texto. Mas foi assim que ficou para a História e não me compete a mim, simples leigo, adulterar a História…  

Em 1914 Handy viria a publicar “St. Louis Blues”, uma das músicas mais famosas da História do Jazz que daria o seu nome ao filme que, quarenta e quatro anos mais tarde, iria retratar a sua vida.

No que respeita à sua ligação ao dito “Blues”, esta foi a fase mais importante da carreira de Handy, pelo que não me irei alongar muito mais, dizendo-vos, apenas, que em 1917 Handy se instalou no “Tin Pan Alley” de Nova Iorque, aí continuando a compor e a publicar músicas para filmes e peças de teatro, embora nunca tenha deixado de atuar, a solo ou acompanhado. 

Em 1941 publicaria as suas célebres “memórias” com o tal muito polémico título de “Father of the Blues”, e dois anos mais tarde viria a sofrer uma grave queda que o deixou parcialmente paralisado e quase cego, embora nunca tivesse deixado de trabalhar. 

Viria a falecer em 28 de Março de 1958, com 85 anos.

Como vos disse, o facto de Handy se ter autoproclamado “Father of the Blues” e até também, noutras circunstâncias, “The Inventor of the Jazz”, não foi isento de polémica. Uma das principais ocorreu nas páginas da revista “Downbeat”, à qual Jelly Roll Morton, um músico de New Orleans dos primórdios do Jazz, endereçou uma “aberta-aberta” afirmando que “it is generally known and beyond contradiction, that the cradle of jazz is New Orleans  and that I personally created jazz en 1902”…

A polémica prolongou-se no tempo, mas a verdade é que parece que nem William Hardy nem Jelly Morton foram os verdadeiros “inventores do Jazz”, tal como vos contarei numa próxima oportunidade…

Polémicas à parte, W. C. Handy é hoje considerado um dos mais importantes compositores americanos do Séc. XX. O que dizem os musicólogos é que a sua Obra foi beber a tudo, ao Blues, ao Jazz, à Clássica e que até revela acordes do tango argentino e das “vihuelas”  e “mariachis” mexicanas que Handy terá, certamente, ouvido quando por lá andou em digressão, nos seus tempos de juventude.

Quanto à sua designação como “Pai do Blues”, ela não deverá ser interpretada em sentido literal: como vos disse, foi Handy quem publicou a primeira música com a palavra “Blues” no seu título e foi Handy o responsável pelos primeiros grandes sucessos de vendas dessa música, sobretudo a partir de “St. Louis Blues”. Poderá afirmar-se, de facto e sem grande margem de erro, que terá sido Handy quem levou o Blues do relativo “ghetto” onde se encontrava nas primeiras décadas do Séc XX para o “mainstream”, possibilitando-lhe uma mais ampla divulgação.   

 Como  não podia deixar de ser na América, a sua vida deu um filme: “St. Louis Blues”, realizado em 1958 por Allen Reisner e estreado poucos dias após a sua morte.


Não obstante o filme estar carregado de vedetas do mundo do Jazz  e do Gospel (Nat King Cole, no papel de Handy, mas também Mahalia Jackson, Ella Fitzgerald, Ertha Kitt e Cab Calloway) e de ter o “arranjo musical” do grande Nelson Riddle, talvez Handy merecesse melhor, porque se trata de um mau filme, no qual a sua vida é romanceada e adulterada à moda de Hollywood. Não só poucas coisas batem certo com a sua biografia, como também se chega ao ponto de, numa cena passada na transição do Séc. XIX para o Séc. XX, se anunciar em grandes letras num cartaz de espetáculo a presença da “Grande Ella Fitzgerald”, que só viria a nascer …. em 1918!    

 Por mera curiosidade deixo-vos o “trailer” desse filme, com uma correta frase que resume a obra de Handy desta forma: “He took the music from the heartbeat of America, and created a new rhythm that swept the World”…


E despeço-me dando corpo e voz ao próprio Handy, já nos seus 75 anos, a interpretar “St. Louis Blues” num dos primeiros episódios do Ed Sullivan Show, em Fevereiro de 1949.


Texto e Fotografias de Luís Miguel Mira

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