quarta-feira, 30 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Escrevi pouco e agradar-me-ia ter escrito menos.

Cristina Campo citada por João Bénard da Costa em Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, 3º Volume.

Legenda: Cristina Campo

V.S.T. & ETC



Pergunta ao Vitor em que rua ele mora e ele dá corda aos sapatos:

Rua das Madres. Toda a minha família estava ligada ao mar e ao rio. O meu bisavô materno, pescador, tinha o seu bote, o pai dele tinha vindo de Olhão, era gente lá dos Algarves. E com os outros homens – que tinham os botes e passavam o pessoal do trabalho de um lado para o outro do rio, isto quando não havia ainda cacilheiros – vai formar a Cooperativa dos Catraeiros, que em conjunto compra o primeiro cacilheiro. O meu tio-avô, filho dele, portanto, foi um dos primeiros mestres dos cacilheiros. Eu era puto.

Pr’aí nos princípios dos anos 40. Ele a guiar e eu ao lado, ainda nem sabia quem era o Vasco da Gama, mas se soubesse ia de certeza ao lado do Vasco da Gama.
Depois, a minha pobre mãe também trabalhava como carne para canhão do lado de lá, quer nas fábricas das anchovas, num sítio chamado Olho de Boi, quer nas chamadas fábricas dos gelos, estão ainda lá os armazéns. Muitas vezes eu fazia pressão para ir com ela. Nasci em condições de muita miséria naquela casa. Fui o décimo terceiro. Parece impossível como estavam lá 12 pessoas quando eu nasci, mas estavam. Gostei muito do Pacheco e da “Comunidade”, na “Crítica de Circunstância”, por haver certos paralelismos. Lá estava a filharada do Pacheco a dormir nas gavetas da cómoda, ou em cima do papel, porque o papel é um bom condutor do calor, quando eu também, no meio do chão, no linóleo, estava ali rodeado de mãe, avó e tias.

As condições em que nasci e cresci eram tão dramáticas que isso podia ter, e de que maneira, retorcido completamente a minha psique, a minha pessoa. Isso não se deu porque fui tão protegido, gostado, apalpado, acarinhado, tão com-todos, que a minha mãe deixava-me indistintamente em casa de A. e da mulher do sapateiro.
A minha avó ia comigo à sopa dos pobres, ali aquele edifício em frente ao Parlamento, buscar a sopa e o pão escuro que muitas vezes era a base da alimentação. E há um pormenor completamente surrealista. Na casa onde ainda hoje vivo só há um objecto do que era a casa velha. É um relógio de cavalinho. Está lá na parede. É um daqueles relógios que parecem uma pequena catedral que tem um cavalinho por cima. Uma peça muito bonita que faz um cagarim doido ao tocar. Toda a gente olha para ali e diz: “É um relógio.” E eu digo: “Não senhora.” Como tenho esta costela surrealista, digo: “Aquilo que ali está na parede é uma panela de sopa.” “Uma panela de sopa?” “Tal e qual.” Porquê? Como era o único bem que havia naquela casa, o sacana do relógio semana-sim-semana-não estava no prego, que ficava na Rua da Esperança. Lá ia o relógio para o prego e nessa noite havia sopa de hortaliça com chouriço de sangue. Era uma festa. O relógio servia para isso.

A minha mãe ficou muito marcada pela memória dessa extrema miséria, porque não me pôde dar o apoio que as mães gostam de dar aos filhos.
A minha avó Arminda, por quem tenho total devoção, tinha como alcunha na Madragoa a Viúva Alegre. Acontece que a minha avó nunca casou. E era amiga íntima de uma outra chamada Rosa das Sardinhas, avó do Henrique Viana. A minha avó fazia tudo, Cantava o fado com um irmão pelas tabernas, empalhava cadeiras, cosia as velas das fragatas no Largo Vitorino Damásio... havia lá uma casa com um grande passeio em frente, onde o mulherame de gatas cozia com umas agulhas de osso e corda muito forte os remendos das fragatas... e também lavava a roupa para as vizinhas no lavadouro que ainda existe ao cimo da Travessa do Pasteleiro. É Zola. Eu saía de casa, de pé descalço, claro...

OS IDOS DE SETEMBRO DE 1975


30 de Setembro de 1975

No mesmo dia em que as forças do COPCON ocupam as estações de rádio e televisão, uma enorme multidão junta-se nos Restauradores, junto ao Palácio Foz para protestar contra a decisão de Pinheiro de Azevedo.
Os militares continuam nas estações de rádio e televisão. Mas a Rádio Renascença, ocupada pelos trabalhadores, em Lisboa – deixou de emitir, na sequência de uma operação ordenada por Pinheiro de Azevedo e que os Comandos executaram pelas quatro horas da madrugada.
Otelo dirige-se ao Palácio Foz para, juntamente com o ministro da Comunicação Social Almeida Santos explicar aos órgãos de informação os motivos da decisão do primeiro ministro e Presidente da República e, à chegada, é insultado pelos manifestantes.
Almeida Santos diz que a situação ficará normalizada em 48 horas se os jornalistas cooperarem.
Na conferência de imprensa, Otelo, faz a célebre autocrítica donde ressalta a frase de que se tivesse uma estrutura política poderia ter sido um Fidel de Castro da Europa.

Legenda:  A verdadeira Questão, local, não assinada, no Diário de Notícias.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

QUOTIDIANOS


Dizia-se um idealista. Não sabia para onde ia mas dizia que já ia a caminho.

Legenda: fotografia de Johnny Holland

CAIS


                                        «… o cais é uma saudade de pedra».

Partem navios
e chegam navios
de todos os pontos cardeais,
só eu fiquei
sonhando os orientes
no cais.

Outros partiram...

- Tantas vezes me chorei perdido
e vencido me arrastei
ao sabor das tempestades e dos fados...
Tantas vezes fui o herói da aventura,
o navio naufragado...
e sempre ressuscitei
no cais.

Que em mim vive esta ânsia
sempre nova
da largada.

Eu não amo o que possuo,
o que sou
não é jamais onde estou;
eu sou o ausente:
a posse deixa-me inerte,
só o desejo me abraza...

Só eu fiquei
com saudade de mim
nunca embarcado...

Joaquim Namorado de Navegação à Vela em Novo Cancioneiro

Legenda: fotografia de Artur Pastor

terça-feira, 29 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Estou no meu quarto. Deitada na minha cama. A luz está acesa. Oiço música. Penso em ti mas não é em ti. É um tu abstracto porque a tua ausência é uma lesão incurável que se imaterializa com o tempo. Por fim adormeço. Quando acordo de manhã, sinto-me feliz por ter conseguido dormir.

Ana Hatherly em 351 Tisanas

Legenda: imagem de Vincent Giarrano

OS IDOS DE SETEMBRO DE 1975


29 de Setembro de 1975

FORÇAS MILITARES ocuparam esta manhã as instalações de Rádio e da Televisão.
Na ausência de Costa Gomes, em visita oficial à Polónia e à União Soviética, a decisão foi tomada pelo Almirante Pinheiro de Azevedo.

Primeira página do Diário de Lisboa:


Primeira página do Diário Popular:


OS MINISTROS só conseguiram abandonar São Bento após uma intervenção de forças dos Comandos que desalojaram os deficientes do cerco que faziam um bloqueio ao edifício. Em protesto, os deficientes colocaram a bandeira da Associação a meia haste e deslocaram-se ao Regimento de comandos na Amadora, ali deixando 19 cadeiras de rodas e algumas próteses.

APÓS LARGA E VIBRANTE reunião do Conselho Nacional do PPD, Sá Carneiro reassumiu as funções de secretário-geral do partido.

A DIPLOMACIA ESPANHOLA avalia que ascendem a 500 mil contos os estragos causados no assalto à  embaixada e consulado de Espanha em Lisboa.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

V.S.T. & ETC



A jornalista pergunta-lhe:

Como conheceu o José Cardoso Pires?

Eu tinha vindo lá das Áfricas, em parte do jornalismo, no tal jornal “O Intransigente”, de Benguela, posto que tivesse outras profissões, fui para lá um aventureiro. E chego a Lisboa com a determinação, desse lá por onde desse, de nunca mais servir qualquer patrão ou fazer aquilo que não queria, de que não gostasse. Nunca mais. Disse o corvo e disse o Vítor. Pronto.


E regressei portanto para a minha função de pardal, que sou lisboeta tipo pardal. E para subsistir escrevia indistintamente ou contarelos para o “Diário Popular” ou pequenos textos para a “Crónica Feminina” ou crítica de cinema para a “Flama”, ou crítica de cinema para o então “Jornal de Letras e Artes”. E comecei a dizer “não” a uma quantidade de coisas. Empregos, por exemplo, publicidade: “jamais de la vie”. Não era comigo. E andava assim em pardal, saltitando daqui para acolá, palmilhando Lisboa como hoje – sou pedestre –, quando aparece uma proposta que era nem mais nem menos que ir dirigir a editora Ulisseia. 


A Ulisseia!, que era a editora que eu, enquanto leitor, na altura ainda com algum dinheirito para comprar livros, mais apreciava, com direcção do Figueiredo Magalhães, que ainda é vivo. Grande editor. Não me deve chupar nem à lei da bala, porque eu é que fui suceder-lhe, digamos. Mal sabe ele a admiração que tinha por ele, e mal sabe ele que ao suceder-lhe não tive outro propósito senão garantir àquela editora o mesmo nível cultural, artístico que o velho Figueiredo Magalhães tinha dado.


Ora o José Cardoso Pires estava ligado à Ulisseia, que era a produtora dessa publicação “sui generis”, espantosa que foi o “Almanaque”.
Quando chego à Ulisseia, meti condições que não dá para acreditar, porque eu não acreditava nada que de repente trocava os cem paus, ou os noventa paus, que me pagava o “Diário Popular” por uma colaboração, e de repente estava à frente, como director editorial, de uma editora como a Ulisseia. Era demais. 

QUE LHE PARECE?


Antonio Tabucchi, que assina o prefácio da edição francesa de The Fragments, escreve que no interior deste corpo vivia a alma de uma intelectual e poeta de que ninguém tinha um pingo de suspeita.

Na  Autobiografia de Marilyn Monroe, Rafael Reig cita:

Sim, lei muito. Toda a gente está convencida de que sou praticamente analfabeta. A loura burra que eu, aqui entre nós, nem sequer seja totalmente loura. De gve ser por causa das minhas mamas. Como são muito volumosas, devem julgar que tampam metade do livro e que, por isso, não consigo compreender nada do que elio. Não sei, mas a verdade é que leio muito. De tudo, seja o que for: romances, poesia, filosofia, de tudo.
Leio até os folhetos dos medicamentos. Passo as noites quase sempre acordada a ler. A ler ou a flar ao telefone. Também gosto de falar ao telefone. É porque me custa muito a adormecer. Mas, claro, isso está você farto de saber. É por isso que estou aqui. Passei a vida a tentar conciliar o sono. Esse poderia ser um bom epitáfio para a minha sepultura. Mas já escolhi outro. Quero que ponham apenas isto:
«Aqui jazz Marilyn Monroe 95-58-91.»
Que lhe parece?

OLHAR AS CAPAS


Afirma Pereira

Antonio Tabucchi
Tradução de José Lima
Capa: Rogério Petinga
Quetzal Editores, Lisboa, 1995

Mas não disso nada disso. Acendeu um charuto, limpou com o guardanapo o suor que lhe escorria da testa, desabotoou o primeiro botão da camisa e disse: as razões do coração são as mais importantes, é preciso seguir sempre as razões do coração, os dez mandamentos não dizem isto, mas digo-lhe eu, mas é precisos ter os olhos abertos, apesar de tudo, coração sim, de acordo, mas também olhos bem abertos, meu caro Monteiro Rossi, e com isto acabou-se o nosso almoço, nos próximos três ou quatro dias não me telefone, deixo-lhe todo o tempo para reflectir e para fazer uma coisa bem feita, mas mesmo bem feita, ligue-me no próximo sábado para a redacção, por volta do meio-dia.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Não há qualquer causa pela qual esteja disposto a matar. Mas há causas pelas quais estou pronto a morrer.

Gandhi 

V.S.T. & ETC


Em Julho de 2007, Alexandra Lucas Coelho fez a Vitor Silva Tavares, uma importante e lindíssima entrevista, enternecedora mesmo. Está lá tudo.

Chamou-lhe Resistência é a Palavra,

A entrevista foi publicada no Público de 7 de Julho e, mais tarde, incluída no volume & etc uma Editora no Subterrâneo.

Iremos acompanhar alguns excertos da entrevista e, naturalmente, começamos pela abertura:

É lisboeta “pardal”, de palmilhar a cidade a pé. Foi miúdo descalço na Madragoa, uma pobreza de se pôr o relógio no prego para haver sopa de hortaliça numa casa com 13 pessoas. É nessa casa que continua a viver, e o relógio ainda lá está.

Entre o prego e 2007, as aventuras dão para uma conversa que não acaba, a que ele vai tendo com os próximos, sem pensar em escrever memórias. A sua escola de jornalismo, muito antes do “Diário de Lisboa”, é a do “Intransigente”, de Benguela, onde também foi inspector de cartas de condução sem saber conduzir e mudou os nomes todas da cidade numa noite de subversão, o que lhe valeu ter um agente da PIDE à perna, de seu nome Delgado.

Partiu de Angola em risco de ser preso, deixando um 45 rotações de Mahalia Jackson a um contratado do interior que o levou para onde nunca mais terá sido ouvido.

De volta a Lisboa, distribuiu colaborações pelos jornais enquanto, ateu dos quatro costados, pintava Cristos que um “manager” vendia a conventos. Não sabe por onde andará essa extensa obra pictórica.
Depois convidaram-no a dirigir a editora Ulisseia, onde começou a publicar surrealistas portugueses, “nouveau roman” francês e obra de muita indignação para a censura. Os livros eram apreendidos, mas aparentemente a Ulisseia era mesmo para dar prejuízo ao dono, a Abel Pereira da Fonseca.

Gosta de coisas tão antigas como letras de tipografia e histórias a circular pela boca. De fazer coisas porque apetece, e porque tem de ser, e porque é assim. A porta aberta é para entrar e para sair, o importante é que esteja aberta.

Naetc não há lucros e há livros quando houver. Tem havido regularmente, e cá estão eles a toda a volta deste subterrâneo com pátio de azulejo antigo e escadinha de ferro, ali onde o Bairro Alto cola com a Bica, muito lisboeta.

OS IDOS DE SETEMBRO DE 1975


28 de Setembro de 1975

O VERÃO QUENTE DE 1975 teve aspectos dramáticos, mas nenhum terá sido tão dramático como a pilhagem da Embaixada e do Consulado de Espanha em Lisboa.
Os edifícios foram completamente destruídos na sequeência de uma manifestação convocada, durante a madrugada do dia 26 de Setembro, por um comunicado da UDP, transmitido aos microfones do Rádio Clube Português. O comunicado apelava para uma concentração popular frente à Embaixada de Espanha com a finalidade de protestar contra as condenações à morte dos militantes da ETA julgados em Burgos e Madrid, por tribunais onde os advogados de defesa não puderam exercer os seus direitos.
Um novo comunicado, transmitido às cinco horas da manhã, refere os acontecimentos:
Foi um gesto de solidariedade para com os povos de Espanha de que o nosso povo se orgulha! Temos de continuar a luta!
Às 5 horas da manhã ainda são horas de estar a pé e de continuar a luta caso os carrascos assassinem os nossos queridos camaradas!
Que o fascista Franco pague bem caro pelos seus crimes.

OUTRO ACONTECIMENTO contribui para a instabilidade política: o cerco dos deficientes das Forças Armadas a São Bento.
Através dos microfones da Emissora Nacional, onde mantêm um “piquete de ocupação”, os dirigentes associativos dos deficientes fizeram um apelo a todos os elementos das barricadas das portagens de Sacavém, Vila Franca de Xira e Ponte Sobre o Tejo para que convergissem de imediato para São Bento.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

SEM GRANDES ESPERANÇAS...


João César Monteiro.
De uma entrevista perdida no tempo.
Mas de João César Monteiro.
Sempre.

NAQUELE TEMPO...


Por causa de Thais, lembro uma história que, volta e meia, o Gin-tonic conta, em que descreve os jantares, a dois, com o pai, em que, quase pelo fim, o pai recitava o começo de Thais de Anatole France.

Primeiro em francês:

En ce temps-là le désert etait peuplé d’anachorètes.

Depois, acrescentava a sua tradução que, dizia o pai do Gin-tonic, não tinha a beleza do original:

Naquele tempo o deserto era povoado por anacoretas.

Considerava-o o mais belo e cativante começo de um livro que conhecia.

E conhecia centenas.

OLHAR AS CAPAS


Thais

Anatole France
Tradução: Manuel de Freitas
Capa: Tadeu Barros
Edições Antígona, Lisboa, Setembro de 2003

Naquele tempo, o deserto encontrava-se povoado por anacoretas.

domingo, 27 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Para mim, é como discutir a diferença entre o McDonalds e o Burger King. Tenho a certeza que há-de haver uma diferença, mas quem é que se vai ralar-se a descobrir qual é?

Nick Horny em Alta Fidelidade, Editorial Teorema Lisboa Maio de 1997

VST & ETC


Crónica publicada no Público.

O QUE VIEMOS AQUI FAZER?


Estacionas o carro em frente à praia:
- O que viemos aqui fazer?
- Visitar um morto.
Walter Benjamim chegou a Portbou no dia 26 de Setembro de 1940, depois de atravessar os Pirinéus a pé, fugindo aos nazis. Queria alcançar a América, onde ia trabalhar como investigador, mas a polícia espanhola não o deixou passar, deu-lhe apenas uma noite de o recambiar como judeu. Benjamim estava doente, sozinho e perdera tudo. Alojou-se numa pensão que já não existe. Tomou uma sobredose de morfina. Na manhã seguinte foi encontrado morto.

Alexandra Lucas Coelho em E a Noite Roda 

PORQUE HOJE É DOMINGO


O Verão já lá vai.
Colocar aqui uma boa parte dos discos que estavam na Juke Box da Esplanada do Marques na Trafaria é algo que levaria muitos domingos.
Este é o último domingo de Setembro e Cachito do Nat King Cole é a canção que vos trago.
No próximo Verão, voltaremos às grandes canções da Esplanada do Marques.
Bom domingo!

sábado, 26 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELOS


Que bom não ter de dar pelo nome de crítico – mas possuir só, para esgotar, um momento crítico, uma vida extremamente crítica.

Herberto Helder em Retrato em Movimento

OS IDOS DE SETEMBRIO DE 1985


GRANDE MANIFESTAÇÂO DOS SUV em Lisboa. Mais de 100 mil pessoas, segundo os jornais.
O ponto mais alto da manifestação verificou-se de madrugada quando, face à


pressão dos populares, Otelo, deu ordem para que fossem libertados o cabo Pinto e o Furriel Figueiredo.

OPINIÃO, não assinada, sobre os objectivos dos SUV, publicada na Vida Mundial:


NAS VÉSPERAS DE regressar à liderança do PPD, de que se afastou por doença durante largo tempo, Francisco Sá Cerneiro, realizou uma conferência de imprensa e em que contesta, fortemente, as posições do Almirante Pinheiro de Azevedo no que à social-democracia diz respeito:
Em Portugal não pode ser-se assumidamente anticomunista mas parece dever ser-se anti-social democrata.

O DITADOR FRANCO apresentou um protesto formal às autoridades portuguesas e mostra-se indignado com o noticiário dos jornais e da Emissora Nacional. Está iminente o anúncio da confirmação da sentença de morte contra os presos da ETA condenados pelos tribunais ao garrote.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

V.S.T. & ETC


A Colecção &etc não está numerada.
Mas Coisas, um volume colectivo, é o primeiro livro editado.
Vi o anúncio da sua publicação na folheca nº 18, Dezembro de 1973.
Fiquei atento.
Mas à cautela pedi ao Carlos Porto, um dos autores antologiados, por esse tempo colaborador do República e um dos donos da Livraria Opinião, que me reservasse, logo que desse à luz, um exemplar.
Foi assim que o livro chegou às minhas mãos.
Tanto quanto me lembro, o livro não teve distribuição pelas livrarias.
Ainda existia a censura e a PIDE e era necessário tomar cautelas e caldos de galinha.
Os textos são da autoria de Adelino Tavares da Silva, António Manaças
Baptista-Bastos, Carlos Porto, José Martins, Nelson de Matos, Paulo da Costa Domingos, Pedro Oom, Virgílio Martinho e de Vitor Silva António Manaças.
Cada texto é antecedido de um desenho.
Os desenhos são da autoria de Ferreiro, Eurico, Lud, com dois desenhos, Figueiredo Sobral, João Rodrigues, Ana Machado, Gonçalo, Aurélia e Aldina.
Ao tempo da publicação de Coisas a &etc situava-se na Rua da Mãe d’Água nº 13-2º.Dtº.
A dedicatória do Vitor Sila Tavares, é colocada no livro, mais mês menos mês, quarenta anos depois da sua publicação.


O texto do Vitor Silva Tavares, publicado em Coisas, termina assim:

Que tal um lar saudável com espaços verdes à volta (na famosa costa do sol)? Nos subúrbios, tanto ranho nas ventas da criançada! Maria, vaza o penico. Morre-se confortado pela Santa Madre Igreja. Os mortos têm todo o tempo a seu favor. Que excitação para os pequeninos espectadores! BIB BIC BIC, a minha terceira escrita. Sofro de cancro na bic. E na tola. E enfim. E mais um automóvel: o Marine é de facto um carro a sério, um fora de série, e por isso dizemos que é tudo quanto se pode desejar num automóvel. Pois pois. Quem sabe comprar, sabe pagar! Segue-se um programa de variedades. Poetas doidos rebentam de sonho e fel nas noitadas a bagaço e cervejame. Como é triste Veneza ll n’y a plus rien. Para o mês que vem veremos. Cá vamos chorando e rindo. Tanta conversa fiada dá-me cabo da molécula. Assim como assim. Tive uma ideia maluca para pôr aqui. Esqueci. Bebi. Cichi. (…)

                 «Imoderato chorabile» é um excerto (ex certo) do texto
                 «Falar desta castração», escrito no Verão de 1972 e con-
                  servado (ainda bem!) inédito.

CONVERSA A SÓS


Olha, Mila, a montra está cheia
de chocolates pequenos.
Talvez o Pessoa tenha escrito aqui
a Tabacaria.
Talvez vão dizer que está tudo dito
e o mais que eu mostro é habilidade.

Talvez que um dia, como tu dizes,
as escolas me recebam de novo
e eu aprenda verdadeiramente
como se diz amor em inglês.

Olha, Mila, para falar a verdade
eu estou muito esquecido dessas coisas
e todos os livros que li sobre a memória
não me deram memória nenhuma.

Para imitar o Pessoa, digo:
Precisamente neste momento
entrou aqui um jovem e pediu: - Licor!
Isso prova
que o amor é diferente para toda a gente.
Isso prova que o sangue do jovem não chega
para que ele se sinta cheio e à vontade.
Isso prova que os chocolates, os bolos e o resto
são medíocres formas de entendimento mútuo.

Olha, Mila, entre os medos que me assaltam e eu cultivo,
o principal é que a minha mãe já não goste de mim.
Sabes, nunca li com vagar o Álvaro de Campos
porque aquilo era demasiado meu para ser dele.
Porque as multiplicações dele
são as minhas multiplicações.
Porque nunca pus o ouvido à escuta
que não sentisse tudo calado à minha volta.

Porque não é fácil escrever poemas
quando os poemas são difíceis de roer.
E é mais fácil esconder a vergonha
do que a loucura.

Olha, Mila, se a poesia não está nos versos
também não está aqui.
O mais que a gente pode
é pedir que ela venha
e, quando chega,
pôr mais um prato e um talher na mesa.
Entretanto todos os sonhos são bons,
porque são inúteis.

Entretanto, o palhaço de corda recorda
o infeliz voo do Álvaro e dos outros.

Amanhã, que é domingo,
diremos: passou mais uma semana.
A máxima felicidade nossa
será ficar todo o dia na cama
sabendo que o sol, lá fora, é violento
e nos odeia.

Olha, Mila, todas as coisas continuam certas
quando a certeza nos abandonou.

Há quem tenha a voz muito alta
e tanto que basta-lhes falar
para que todas as distâncias os ouçam.
Nós, não.
Nós não sabemos escrever à máquina,
não escrevemos nem lemos as cartas
dos outros, que cruzam o Mundo.

Por isso é que os patrões nos pagam por esmola,
a angústia não é fingida, e amamos todos por obrigação.

Por isso é que a gente nunca sabe
quando fala verdade,
porque, para ser nossa, a verdade é mentira.

Olha, Mila, eu não me importo nada
que digam que o Pessoa
esteve comigo, hoje, nesta pastelaria;
que tenhamos nascido os dois no mesmo sítio,
um sítio onde se nasce por imoralidade.
E que tudo o que ele não viu
- praias, pontes, cidades e navios -
tenha querido agora
inundar o poema.

Não julgues, Mila,
que senti alegria
em calar-me!


Raul de Carvalho

QUOTIDIANOS


Na loja de montagem e reparação de estores na minha rua, até o canário é do Benfica.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Os conservadores não são forçosamente estúpidos, mas a mioria das pessoas estúpidas é conservadora.

John Stuart Mill

ARTISTAS UNIDOS


Os Artistas Unidos, uma criação de Jorge Silva Melo, a 18 de Setembro de 1975, estrearam António Um Rapaz de Lisboa no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian.

Fez agora 20 anos.

Ana Sousa Dias, que foi entrevistar Jorge Silva Melo para o Diário de Notícias, dele disse:

É um solitário que adora estar acompanhado por muita gente.

Tem entre mãos a tarefa demorada de fazer um filme sobre ele próprio, coisa maçadora porque já sabe tudo, não tem surpresas.

Os Artistas Unidos estrearam, agora, no Teatro da Politécnica, Jogadores de Pau Miró:

PROFESSOR É fácil prever o futuro. Basta olhar para o céu. Ou para o espelho. Se te vires ao espelho, podes saber o futuro.

A LISBOA DE GEDEÃO


O Tejo visto da Rua Norberto Araújo.

Fotografia e legenda de António Gedeão em Memória de Lisboa.

OLHAR AS CAPAS


Coisas

Adelino Tavares da Silva – António Manaças – Baptista-Bastos – Carlos Porto – José Martins – Nelson de Matos – Paulo da Costa Domingos – Pedro Oom – Virgílio Martinho – Vitor Silva Tavares
Capa: João Vieira
&etc, Lisboa, Março de 1974

Num pequeno país atrasado e pobre o Primeiro-Ministro preocupava-se muito com a ignorância do seu povo.
 A percentagem de iletrados era tal que não se descortinava maneira de arrancar do estado de subdesenvolvimento para a fase industrial a que o país necessitava chegar.
O Primeiro-Ministro reuniu os melhores pedagogos do país que elaboraram um pequeno livro de bolso, a que chamaram a “Cartilha Paternal”, onde se resumia em frases simples toda a Ciência existente.
A “Cartilha Paternal” foi distribuída gratuitamente a todo o Povo, o qual lhe deu a serventia que estava habituado a dar a tudo o que fosse papel, liso ou impresso.

Moral: a instrução não custa um tostão…


(Pedro Oom)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


A convicção com que eu às vezes engano os doentes! Mas se médico é também isso: ter capacidade de mentir persuasivamente quando a verdade é o oposto da esperança.

Miguel Torga, Diário, 19 de Fevereiro de 1988, Vol. XV

Legenda: retrato de Miguel Torga por Guilherme Filipe. 

OS IDOS DE SETEMBRO DE 1975


24 de Setembro de 1975

HÁ DOIS DIAS, a Associação de Deficientes das Forças Amadas ocupou a portagem da Ponte 25 de Abril, dando origem à passagem. sem pagamentos de portagens, a todas as viaturas.
Nem o Presidente da Republica, nem o governo quiseram ter qualquer conversação com a Associação.
Um elemento da Direcção disse aos jornalistas: Se há 12 milhões de contos para os retornados de Angola, porque é que não há-de haver dois milhões de contos para os deficientes.
A revista Vida Mundial pergunta: Deficientes das F.A. Quem se lembra deles?:


NO DIÁRIO DE LISBOA, deste dia, pode ler-se:


ASCENDE a 50 mil o número de refugiados de Timor na metade indonésia da ilha. Dada a pobreza que ali impera a presença desta multidão de deslocados não deverá tardar a criar situações trágicas, escreve a France-Press em telegrama de Jacarta.

Fontes:
- Acervo pessoal;
Os Dias Loucos do PREC de Adelino Gomes e José Pedro Castanheira.

POEMA


POESIA NÃO É UMA MEDALHA PARA POR NO PEITO DOS TIRANOS MAS UMA IMENSA SOLIDÃO FEITA DE PEDRAS, ONDE O DESPOTISMO PODE ENCOMENDAR O ATAÚDE.CADA UM DE NÓS ODEIA O QUE AMA. POR ISSO O POETA NÃO AMA A POESIA QUE É SÓ DESESPERO E SOLIDÃO MAS ACALENTA AO PEITO AS FORMIGAS DA REVOLTA E DA REBELDIA, QUE TODOS OS DÉSPOTAS QUEREM SUBMISSAS E PROCRIADORAS. SÓ OS VOLUNTÁRIOS DA MISÉRIA E DA SUBMISSÃO PATRIARCAL QUEREM A POESIA NA ARCA DA ALIANÇA COM A TRADIÇÃO PACÓVIA E REGIONALISTA DOS PRETÉRITOS DIAS, GLÓRIAS PATRIOTEIRAS, HEROICIDADES FRUSTRES, PIRATARIA IGNARA. TODO O VERDADEIRO POETA DESPREZA O PEQUENO MONTE DE ESTERCO ONDE O DEJECTARAM NO PLANETA E A QUE OS OUTROS CHAMAM PÁTRIA, E SÓ AMA OS GRANDES CONTINENTES MARES E OCEANOS DA LIBERDADE E DO AMOR. SÓ NOS VASTOS ESPAÇOS INCRIADOS A POESIA SERVE O SEU DESTINO — CATAPULTAR O HOMEM NOS ABISMOS DO DESEJO INCONTROLADO ONDE O PRÓPRIO ASSASSINATO É UM ACTO DE POESIA E DE AMOR. ESTE ASSASSINATO DE QUE FALO É O GRANDE AMPLEXO DE HOMEM PARA HOMEM A SOLIDARIEDADE E A TERNURA, NÃO A CARIDADE HIPÓCRITA OU A CAMA DE FAMÍLIA, COM TODO O SEU PEQUENO CORTEJO DE HORRORES, ONDE A EXPLORAÇÃO DO FILHO PELO PAI DITA A SUA LEI.

Pedro Oom em Grifo, Abril, 1970

V.S.T. & ETC


O nº 25 da &etc, folheca cultural q.b. de Outubro de 1974.
Dedicado à an-arkia é o seu último número.
Este exemplar foi-me oferecido, pelo Vitor Silva Tavares, na manhã em que levei ao Subterrâneo a minha colecção encadernada da &etc.
O tempo em que ele, olho de lince, viu logo que na colecção faltavam os números 24 e 25.
Foi um fartote de rir.
Fica-me a faltar o número 24 e, um dia quando o encontrar - difícil, difícil, dizia o Vitor - irei encadernar tudo de novo e, então, ficará completa.

DITOS & REDITOS


 Perdido por cem, perdido por mil.

Quando um elefante tem problemas até uma rã lhe dá pontapés.

O que se faz por paixão faz-se sem sacrifício.

Não é tarde nem é cedo.

Valha-nos a Senhora da Agrela que não há santa como ela.

Esperar o inesperado.

Quando o pobre come galinha um dos dois está doente.

Disto, daquilo, daqueloutro.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.

Fernando Pessoa em O Livro do Desassossego.

Legenda: Anna Karina e Jean-Paul Belmondo em Pedro o Louco.

CANÇÕES DE ENTARDECERES


Primeiro entardecer do Outono.
Uma cor laranja, derramando uma luz amigável, muito serena.
A visibilidade dos afectos.
Albert Camus que nos diz que o Outono é outra Primavera, cada folha uma flor.
Chega-se a este ponto e voltamos a reaprender o Outono.
Os pássaros voltarão em Março.
A canção escolhida para este entardecer é La Vie En Rose.
As interpretações de Diana Krall e Louis Armstrong.



V.S.T. & ETC


Faltam os números 24 e 25.

Morte gloriosa ao 25º número publicado. Certidão de óbito: nº a nº acumulados pela distribuidora os exemplares devolvidos, acontece que esta apresentou no papelinho das contas uma soma de exemplares “devolvidos” de um dos números finais superior à da própria tiragem. Record mundial absoluto: vendas abaixo de zero! Guiness já já para a &etc! E que é deles, os exemplares “devolvidos”? – Por “distracção lamentável, comunicado da distribuidora, foram-se para a guilhotina na companhia de toneladas de tralha impressa tida por jornais e revistas. Resultado do holocausto: só foi possível salvar 50 colecções completas, logo encadernadas e entregues a outros tantos colaboradores mais próximos. Tudo está bem quando acaba bem.

QUOTIDIANOS


Começo do Outono.
Ainda ontem as vi no meio do arvoredo, mas as andorinhas não tardam em partir para outras paragens.
Abre-se o guarda-roupa e já apetece uma lãzinha.

LXXXIX


Quando eu morrer quero as tuas mãos em meus olhos;
quero a luz e o trigo de tuas mãos amadas
passar uma vez mais sobre mim a sua frescura:
sentir a suavidade que mudou o meu destino.

Quero que vivas enquanto eu, adormecido, te espero,
quero que teus ouvidos continuem a ouvir o vento,
que sintas o perfume do mar que ambos amamos
e continues a pisar a areia que pisamos.

Quero que tudo o que amo continue vivo
e a ti ame-tei e cantei-te sobre todas as coisas
por isso, ó florida, continua a florir,

para que alcances tudo o que meu amor te ordena,
para que a minha sombra passeies pelos teus cabelos
para que assim conheçam a razão do meu canto.

Pablo Neruda em Cem Sonetos de Amor, tradução de Albano Martins, Campo das Letras, Porto, Maio de 2004

NOTÍCIAS DO CIRCO


FADO PARA SUECOS


Imagem da enciclopédia do Fado para suecos  En Vagvisare Till de Ulf Bergqvist.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

POSTAIS SEM SELO


Vitor Silva Tavares morreu hoje vítima de uma infeção generalizada.
Estava há cerca de uma semana e meia internado no Hospital de Santa Maria devido a uma infeção que se generalizou e que os médicos não conseguiram controlar. 

                            Dos jornais

… fumo maço e meio de SG Filtro por dia.
                                                                
                            Vitor Silva Tavares em entrevista ao Público.

... e sei não houvera de saber que há um caixão desconhecido que espera por mim...

                            Vitor Silva Tavares em Para Já Para Já

Atirou fumaças para o tecto. Era bom alimentar alguns vícios. Quando fora bom viver na vida sem tentações? Ceder a algumas era até um sinal de valentia; só o covarde é que não se deixava tentar, ou estarei enganado?

                            Alexandre Pinheiro Torres em O Adeus às Virgens.