sábado, 30 de setembro de 2017

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Em tempo de ditadura, apesar de tudo, faziam-se coisas muito interessantes.

Estes dois volumes, Poesia 70 e Poesia 71, reflectem esse interesse.

Iniciativa do poeta e editor Egito Gonçalves que, para o primeiro volume teve a colaboração de Manuel Alberto Valente, e para o segundo a colaboração de Fiama Hasse Pais Brandão.

No primeiro volume publica-se uma espécie de prefácio a que os autores chamaram «Alguma palavras para dar uma ideia…» e em que dizem ao que vêm e falam  sobretudo de uma «amostragem» da poesia publicada em língua portuguesa, na Metrópole, no ano a que se refere.

Não foi planeada exclusivamente como uma antologia de poemas, mas sim como uma panorâmica.

Os poemas foram procurados em livros que se publicaram durante esses anos, em suplementos literários e juvenis de jornais que se publicavam nas cidades e na província.

Um trabalho interessante mas repleto de dificuldades, problemas diversos e algumas rasteiras, próprias deste país de poetas, ou como diziam algumas más-línguas, de escrevinhadores de versos.

Não tenho conhecimento que tivessem sido editados volumes referentes a anos seguintes.

Alguns antologiados, de que foram retirados poemas aparecidos em suplementos juvenis, alinham ao lado de nomes consagrados e alguns desses novos autores vieram a realizar outros voos no panorama da poesia, e não só, portuguesa.

Anos mais tarde, a editora Assírio &Alvim, editou alguns volumes, a que chamou Resumo, também amostragens, do que se publicou durante os anos de 2009 a 2013.

Desconheço se esses volumes tiveram posterior continuação.

Os poemas foram escolhidos por José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queiroz, Manuel de Freitas (anos 2009, 2010 e 2013) e Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós, Manuel de Freitas (anos 2011 e 2012.

OLHAR AS CAPAS



Poesia 71

Selecção de Fiama Hasse Pais Brandão e Egito Gonçalves
Capa: Armando Alves
Editorial Inova, Porto, Junho de 1972

Dois Poemas

I

Nem sei estimar das tuas vestes sem costura
o fito e a alba
ou louvor da tala dos instantes
um só vermelho.
pelas moradas ledas e subtis
à passagem dos castos e escolhidos
                                                                    sustenidos
dos lidos
nada soube
que mais que o sáurio verde não prossiga.
Nem escolhido é o signo por lavrado
Entre a testa e o chão
No húmido verdor dalguma víscera.
Se casas são plantadas com perícia
e arrematados autos lautos
louvados por tão cautos
seja a lhaneza desta a palha da debulha
o verde devolvido em amarelo.
É que não sei dos nomes com firmeza
mais que o início quedo e boçal talo
nem companhia posso ou artefactos
que o langor da lagarta não assista
que não consinta o emergir dos catos.

II

No entretanto do tempo é que o verde resiste
o interstício manso a prova do contínuo
que quebra o passo e mais que o acrescenta
o assegura; se a roda começou
e do metal a terra é estreita         diminui
e de redonda à recta se afeiçoa
pelo verde o sabemos      no intervalo
dum ponto a outro ponto
do recado
da boca a outra boca   da fissura
entre o nome e o feito vertical.
No caule o facto osso e a semente
no espaço a obra de metal e a folha crua.


(Poemas de Maia Velho da Costa publicados no suplemento «Literatura e Arte» de A Capital)

DANIEL BACELAR (1943-2017)


Era assim o Daniel Bacelar quando o ouvia, pelos meus 15 anos, na rádio, o mesmo tempo dos dois Conchas-oh-carol! que eram meus vizinhos de rua.
Há 10 anos, conheci-o pessoalmente nos almoços que o Luís Pinheiro de Almeida organizava no blogue Ié-Ié e fiquei encantada com a simpatia, a sempre disponibilidade em gravar-me em Cd músicas antigas que lhe pedia.
Não me esqueço da noite em Belém, no Concerto da Rita Redshoes, em que deu um banho de rockalhada.
A última vez que estivemos juntos, foi na Gala dos Anos 60 no Cartaxo, e já não o encontrei com aquela jovialidade que o caracterizava.
Morreu ontem aos 74 anos.
Desses almoços Ié-Ié, quando chegavam as cantorias, cantava tudo menos A Marcianita. Penso que sempre guardou para ele que estávamos a gozar.
Não estávamos.
Das versões que conheço da canção, e são algumas, a do Daniel é a melhor.
Obrigado, Daniel.

COMO UMA LONGA E RUIDOSA ORAÇÃO



No dia 29 de Dezembro do ano passado, Born to Run de Bruce Springsteen entrou no Olhar as Capas.
No terceiro dia do novo ano, começámos a transcrever passagens do livro. 
Chegamos agora ao fim.
Cesare Pavese, com o seu Ofício de Viver, será a próxima proposta de leitura.

Lutei toda a minha vida, estudei, toquei música, trabalhei, porque queria ouvir e conhecer toda a história, a minha história, a nossa história, e compreendê-la o mais possível. Queria compreendê-la de maneira a libertar-me das suas influências mais negativas, das suas forças malévolas, para celebrar e honrar a sua beleza, o seu poder, e ser capaz de contar devidamente aos meus amigos, à minha família e a todos vocês. Não sei se o fiz, e o diabo está sempre à espreita, mas sei que foi esta a minha promessa inicial para mim, para vocês. Tentei concretizá-la como uma questão de honra. Apresentei-a como a minha longa e ruidosa oração, o meu truque de magia. Com a esperança de que abalasse a vossa alma e depois se transmitisse, o seu espírito absolvido, para ser lida, ouvida, cantada e alterada por vocês e pelo vosso sangue, para que vos pudesse fortalecer e ajudar a atribuir um sentido à vossa história. Contem-na.

Bruce Springsteen em Born to Run

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Eu sei da inutilidade das palavras.

Eugénio de Andrade

NOTÍCIAS DO CIRCO


Domingo há Eleições Autárquicas.

Longe vão os tempos em que o Poder Local foi considerado como uma das bem interessantes Conquistas de Abril.

Tempos desempoeirados em que os autarcas, então eleitos, se preocuparam com as escolas, o saneamento básico, o ambiente e não com rotundas e pracetas num processo que veio a descambar num caciquismo vergonhoso, em interesses de amigos e amiguinhos, em corrupções descontroladas, ligações perigosas  ao imobiliário, ao futebol e que acabaram em enriquecimentos sem justa causa.

Conhecem-se alguns desses nomes.

Julgados, nem todos foram condenados.

Um sentir amargo, uma desilusão que não mais se apagará.

Claro que há autarcas competentes e honestos.

Nas eleições de domingo verifica-se o regresso de gente que se esperava não voltarmos a ver nestas andanças.

Mas há um caso bem mais miserável: o candidato que se apresenta pelo PSD, em Loures, um candidato cozinhado à medida por gente que circunda e chafurda nesse vómito que dá pelo nome de Correio da Manhã.

O espécime não gosta de ciganos, defende a prisão perpétua, a castração química dos pedófilos, a pena de morte, aquilo que à mesa da taberna a populaça costuma bolsar.

Que haja um tarado que assim pense, enfim, mas sabermos que Pedro Passos Coelho, presidente do PSD, o apoia sem vacilações é uma javardice, talvez algo poior.
Há dias, perguntava um comentador:

E se o PSD ganhar Loures e ficar em terceiro lugar (com os piores resultados da sua história) em Lisboa e no Porto, que leitura política se pode fazer?

Remate final com Ferreira Fernandes, no Diário de Notícias, a chamar  ao personagem «miasma».

Assim:

O candidato do PSD para Loures aproveita tudo, até insultos, para propaganda. Mas será de recusar dizer-lhe o nome só porque ele sofre de andré ventura? A Organização Mundial da Saúde tem-se confrontado com o problema das doenças e o nome delas, porque este pode induzir em erro. Por exemplo, um vírus ficou conhecido como gripe suína mesmo não sendo disseminado por porcos. Ora, o candidato do PSD para Loures é notoriamente um andré ventura, até o anuncia nos cartazes. Como a OMS aconselha que as doenças sejam nomeadas em termos descritivos, "miasma andré ventura", no caso estudado, parece-me adequado. Já chamar André Ventura a André Ventura, talvez seja generalizador e até racista -- pode haver pedaços dele que não estejam contaminados de andré ventura. Mas o mais importante é conhecer os truques do vírus. Há dias, no debate da TVI, ele disse: "Sim, Judite de Sousa, tenho medo." Ora, a jornalista não lhe tinha perguntado por medo. O miasma disse-o a despropósito, porque tem fisgado inocular o medo, não como nas vacinas, em doses ínfimas para combater a doença, mas em doses cavalares para a difundir. Depois, interrompeu uma adversária e, quando ela protestou, disse: "Não me interrompa." Sem vergonha nenhuma, convencido de ser tempo que chegue cá a desfaçatez em debates políticos do "chefe do Ocidente", como ele chamou dias depois a um outro miasma, esse, grande e americano. Todos os pequenitos agentes infecciosos sonham pertencer a uma pandemia.

MARCADORES DE LIVROS

OLHAR AS CAPAS


Poesia 70

Selecção de Egito Gonçalves e Manuel Alberto Valente
Capa: Armando Alves
Editorial Inova, Porto, Junho de 1971

Devolvem-me os canais em que circulo
os cartazes do pranto as unhas tensas
cruzando sobre a fronte o desengano
uma chuva de fogo para a noite

Dizendo noite a própria noite vela
para imitar o dia destruí-lo
uma lata vazia um grito gasto
onde a sopa arrefece

Nada mais tenho Escrevo na palavra
outra palavra

Dizendo dia crio a melhor forma
de revender a noite insinuá-la
fio de raiz roendo-me os tecidos
uma estátua crescendo

Nada mais tenho Escrevo na palavra
outra palavra.

Vasco da Costa Marques do livro Um Beco no Espaço

NA MÁGOA SE CONSOMEM OS MEUS OLHOS


Até quando a minha alma perturbada?

A ira, não. Só piedade peço
para alguém vos lembrar, chegada a morte.

Desfaleço. Até quando
me afogarei nas minhas próprias lágrimas?

Na mágoa se consomem os meus olhos.
Envelheço. Até quando?

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

VELHOS RECORTES


Recorte do Jornal de Notícias de 11 de Julho de 2011.
Lembro-me de, por alturas da euforia do Euro 2004, ter lido:

«Nenhum país decente constrói dez estádios para um Europeu.»

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Um homem também tem direito aos seus medos.

José Saramago em Memorial do Convento

NÃO ERA DO PIORIO


Ouvia-se um rádio que estava do outro lado da parede e o som chegava com estática. Os Beatles estavam a cantar «Do You Want Know a Secret». Era fácil aceitá-los, tão sólidos. Lembro-me quando eles apareceram. Ofereciam intimidade e companheirismo como nenhum outro grupo. As canções deles acabariam por criar um império. Parecia que tinha sido há muito tempo. «Do You Want Know a Secret». Uma balada de amor dos anos 50 perfeitamente desenxabida a mais ninguém a não ser eles podia cantá-la. Seja como for não era do piorio. Os Beatles estavam em grande.

Bob Dylan em Crónicas


NOTÍCIAS DO CIRCO


Logo após uns dias de se tornar conhecido o assalto aos paióis de Tancos, Vasco Lourenço declarou aos jornalistas que se tratava de uma história muito mal contada, indo ao ponto de dizer tratar-se uma encenação feita para derrubar o governo.

Quem andou pela tropa sabe que em instrução nas carreiras de tiros, aqui e ali se gasta material e munições que, se atempadamente não se fizer o controlo e respectivas descargas, a coisa descamba.

Provavelmente, não terá existido roubo algum ou apenas um subterfugio para esconder leviandades.

O que realmente se passou, só a investigação policial e militar em curso, poderá esclarecer.

Porém, aconteceu no sábado passado que o Expresso entendeu mandar para a praça pública a existência de um documento cozinhado não se sabe onde. Os motivos de tal notícia giram à volta de um qualquer pedido expresso da direita que nunca mais consegue digerir que as últimas eleições não lhe permitiram formar o governo que consideravam garantido, ou de alguns militares-topo-de-carreira descontentes com o facto de se sentirem marginalizados pelo governo e chefias militares.

O director do semanário declarou à SIC que na próxima sexta-feira, dia de saída do jornal por causa dessa coisa fabulosa que dá pelo nome de «tempo de reflexão eleitoral», surgirão mais, e outros, pormenores.

Antevê-se maior venda de papel para contrabalançar a descida nas tiragens.

Ferreira Fernandes diz hoje na sua crónica no Diário de Notícias que Pedro Passos Coelho interrogou-se:

Temos de comprar o Expresso para saber o que se passa no país?

Mas quem é que hoje lê o Expresso, ou liga ao que o Expresso escreve?

Diga-se em abono de algum rigor, que o ministro não se mostrou, politicamente, o homem certo no lugar certo para conduzir o processo. As chefias militares também não ajudaram e já seria mais que tempo de o governo ter encontrado uma saída para este tancoso disparate.

Torna-se óbvio que há responsabilidade militar, mas daí à exigência da demissão do ministro ou à queda do governo, são, como se diz na bola,  outros quinhentos.

OLHAR AS CAPAS


José Saramago: O Amor Possível

Juan Arias
Tradução: Carços Aboim de Brito
Colecção: Figuras nº 20
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 2000

… porque muitas das guerras foram, e continuam a ser guerras de religião. Se nos pomos a pensar nisso verificamos que as religiões não unem a humanidade, pelo contrário, dividem-na. Há coisas que são imperdoáveis, como nos chamados descobrimentos dos novos povos. Lá partiam as caravelas em busca de terras onde havia outros povos e o que vai o frade dizer-lhes quando chega ao outro mundo?: «Os vossos deuses são falsos, eu trago comigo o verdadeiro.» Isto é um pecado, utilizo agora a teologia, isto é um pecado de orgulho, porque é imperdoável que alguém possa ter a ousadia ou o descaramento de dizer: «Eu trago comigo o verdadeiro Deus.»
Isto significa que os deuses que eles tinham teriam que ser eliminados e a melhor forma de eliminar um deus é eliminar a pessoa que acredita nesse deus. E mais. Vamos imaginar que Deus existe: se Deus existe não há mais que um Deus, só pode existir um deus se há Deus, então, todas as formas de o adorara são válidas, são todas iguais, tanto faz dizer que é Jesus crucificado, o sol, a montanha, um animal ou uma flor. Para Deus, se Deus existe, é exactamente igual que a expressão física, ou se quiseres material, dessa essência que seria Deus seja a montanha, o sol, ou o que quer que seja.

UMA COISA DE QUE TODA A GENTE SE ESQUECEU


Foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu o principezinho com delicadeza. Mas ao voltar-se não viu ninguém.
- Estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira…
- Quem és tu?, disse o principezinho. És bem bonita…
- Sou uma raposa.
- Anda brincar comigo, propôs-lhe o principezinho. Estou tão triste…
- Não posso brincar contigo, disse a raposa. Ainda ninguém me cativou.
- Ah! perdão, disse o principezinho.
Mas, depois de ter reflectido, acrescentou:
- Que significa «cativar»?
-Tu não deves ser daqui, observou a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens. Que significa «cativar»?
- Os homens têm espingardas e caçam. É uma maçada! Também criam galinhas. É o único interesse que lhes acho. Andas à procura de galinhas?
  - Não, disse o principezinho. Ando à procura de amigos. Que significa “cativar”?
  - É uma coisa de que toda a gente se esqueceu, disse a raposa. Significa «criar laços».

Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho

Legenda: Desenho de Antoine de Saint-Exupéry

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

OLHAR AS CAPAS


A Longa Espera

Mickey Spillane
Tradução: Almeida Campos
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 134
Livros do Brasil, Lisboa s/d

O autocarro chegou ao cimo da ladeira e em frente apareceu Lybcastle pousada num vale escuro, como um estojo de jóias com a lua a brilhar lá dentro. À distância, as avenidas e ruas eram como fitas salpicadas de luzes e tubos néon, um brilho enganador que se prolongava para além da meia-noite, juntamente com os gritos e movimentos de uma alegria falsa, produzida pelo álcool.
Tirei a cartata da algibeira e rasguei-a em mil pedacinhos: em seguida abri a janela e atirei por ela os fragmentos que se perderam na noite.
A mulher gorda que se encontrava atrás de mim espetou-me um dedo no ombro.
- Se não se importa – disse ela -  gostaria que fechasse essa janela.
A interpelação foi feita com uma ar de professora a dirigir-se a um menino mal educado.
- E eu gostaria que a senhora fechasse essa boca – foi a minha resposta.
Fechou-a. Durante toda a jornada não deixara de criticar tudo: desde a maneira como o motorista conduzia o autocarro até ao barulho que fazia a criança do banco da frente, mas desta vez fechou a boca tão firmemente que nem se lhe viam os lábios.
O último pedaço da carta foi levado pelo vento e eu pensei que se alguém conseguisse juntá-lo aos outros fragmentos que se haviam espalhado pelo espaço de um quilómetro, encontraria uma razão poderosa para a morte de outro alguém.
Deixei a janela aberta na esperança de que o vento fizesse voar o chinó da mulher gorda e só a fechei quando o autocarro entrou na central de camionagem, situada no mesmo terminal que servis de estação de caminho de ferro.

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Chegou ao fim a viagem, iniciada a 27 de Janeiro, por algumas das cartas trocadas entre Eugénio de Andrade e Jorge de Sena.

Graças ao trabalho de sua mulher, Mécia de Sena, Jorge de Sena será o escritor português que mais livros publicados tem da correspondência que, ao longo da vida, trocou com os seus pares.

Será a Correspondência que Sena trocou com Sophia de Mello Breyner Andresen que nos acompanhará por algumas semanas.

Jorge de Sena escrevia muitas cartas, mas Sophia, numa sua carta a Sena, diz:

«Desculpe o longo silêncio: você sabe que eu tenho a maior vocação para falar ao telefone e nenhuma vocação para escrever cartas.»

Maria Andresen de Sousa Tavares, filha de Sophia, sublinha, no prefácio ao livro desta Correspondência:

«… a importância da preservação e edição deste tipo de escrita pois, como se sabe, quer o género epistolar, quer a forma de comunicação por carta morreram.»

José Saramago insistia muito que a obra completa de um escritor só estaria completa publicando-se a sua Correspondência, e «realmente completa» quando se publicar uma selecção das cartas dos seus leitores. 

UM NATAL EM QUE NÃO ACREDITO


Carta de Jorge de Sena, datada de 24 de Dezembro de 1960, para Sophia de Mello Breyner Andresen:

Querida Sophia

É noite de natal, de um Natal em que não acredito, mas desejaria verdadeiro, por conta de uma humanidade que, cada vez mais, considero irremediável na sua maldade. E cada vez mais acredito que nada subsiste senão, para além de tudo, a confiança que só a amizade dá a um desesperado amor pela humanidade que, afinal, amorte, um dia, tornará perfeitamente inútil. Por isso, aqui estou com a Mécia, a mandar-lhe, e ao Francisco, para todos vós, as mais afectuosas lembranças e os desejos de Ano Novo feliz.

Neste silêncio de mais de um ano, em que não soubemos se não indirectamente uns dos outros, e em que um trabalho terrível me isolou de tudo (aproximando-me de todos, como nunca) sempre VV. estiveram presentes no meu espírito. Mas que tem a Sophia feito, que tem publicado? E o Francisco o que tem feito? E que tem feito e vos tem feito a vossa vida? Escrevam, dizendo e contando, de Portugal não vos pergunto que sei, talvez, dele mais aqui que vós podeis saber aí.

E EU QUERO SABER


Hori acenou com a cabeça, em silêncio.
- O que gostava realmente de saber era o que sucede depois de morrermos.
- Não te posso responder, Renisend. Devias fazer essas perguntas a um sacerdote.
- Limitar-se-ia a dar-me as respostas do costume… e eu quero saber.
- Não o saberemos enquanto não morrermos – declarou Hori, docemente.

Agatha Christie em Morrer Não é o Fim.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Os velhos mentem estupendamente bem.

Ana Margarida de Carvalho em Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato

OLHAR AS CAPAS


O Anjo da Tempestade

Nuno Júdice
Capa: Henrique Cayatte
            Pintura da capa de Jorge Martins
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Outubro de 2004

Com a mulher, que depois dessa manhã já se lhe pode chamar assim, e não apenas noiva, é que as coisas mudam de figura porque, depois de se deitar com um homem, mesmo que nada se tenha passado entre eles, embora a criada jure que não, avaliando pelo estado em que descobriu a colcha, sobre a cama, a sua reputação nunca mais será a mesma, a não ser que se case com o homem, o que não será o caso porque a um morto já não se pede a mão, e mesmo que ela esteja pedida, já a mão deste não se pode estender, na igreja, para receber o anel de casamento. Morto e bem morto, ainda que não houvesse cadáver, nem ele tenha aparecido, a não ser muito tempo depois, e num estado em que ninguém poderia jurar que era ele, ou se seria o ladrão, que ele teria conseguido eliminar, aproveitando-se disso para fugir para onde não mais o encontrassem, que era o que ele queria, para se ver livre não se sabe bem de quê, se dos trabalhos da vida, se das dívidas, se da noiva, cujo corpo não lhe teria parecido igual ou melhor do que outros que conhecera, antes dela, e não se sentia com paciência para lhe transmitir a educação que ela não tivera com outros, namorados ou não, ou pura e simplesmente porque sim, nesse desejo de aventura que poderá acontecer a alguém, num meio de vida que já se sabe não irá durar muito, e ou a irá gozar agora ou depois será demasiado tarde.

MAS QUEM O ACEITA?


28 de Setembro de 1969

Fez ontem um ano que o Marcello ocupou o poder – data festejada com sessões de homenagem e todos os foguetes habituais nestes regimes de culto da personalidade a compilação em livro dos discursos pronunciados pelo chefe, o documentário das viagens e as inaugurações de vários fontanários pelo Salazar II, etc.
Outro número da comemoração: a recusa da candidatura a deputados de cinco personalidades apresentadas pela Oposição – com o pretexto de que não aceitavam o actual regime.
Mas quem o aceita?

José Gomes Ferreira em Livro das Insónias Sem Mestre VIII volume dos Dias Comuns.

LEMBRAR NEWMAN, SEMPRE


Nove anos sem Paul Newman, o actor dos mais belos olhos azuis do cinema.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Um solitário que não se revela um grande apreciador da solidão.

Patti Smith no prefácio a The One Inside, último livro de Sam Shepard, citado por João Gobern em Diário de Notícias, 19 de Setembro de 2017.

Legenda: capa de The One Inside de Sam Shepard editado por Alfred A. Knopf.

OLHARES


Tenho coma Feira da Luz uma memória antiga.
Nos meus tempos de miúdo, o futebol começava a meio de Setembro e havia sempre um domingo em que, mais o meu avô, íamos ver o Benfica e depois direcionávamos os passos para o Largo da Luz.
O meu avô tinha como objectico comer polvo seco grelhado na brasa.
Numa das muitas barracas de petiscos, sentados a uma mesa grande de madeira, onde cabia toda a gente que ia aparecendo, deliciava-se com o polvo, meio jarrinho de tinto enquanto me cabia um pirolito e um bolo que dava pelo nome de «rocha» que nunca mais vi.
Sempre que íamos à bola, havia petisco no fim mas só se o Benfica ganhasse. O empate já não dava para nada, era como s fosse uma derrota.
Mas no domingo da Feira da Luz, mesmo que o Benfica tivesse perdido, íamos à feira. Era talvez a única altura em que o meu avô encontrava o polvo seco grelhado, e a bola que se lixasse.
Assim como um gosto valer mais do que 4 vinténs.
A Feira da Luz que continua a organizar-se, não tem nada a ver com a daqueles tempos.
A única coisa que resiste é a habitual procissão da Nossa Senhora da Luz.
Aberta desde 26 de Agosto, a Feira da Luz fechou portas ontem.

MARCADORES DE LIVROS

OLHAR AS CAPAS


O Carteiro de Pablo Neruda

Antonio Skármeta
Tradução: José Colaço Barreiros
Capa: Fernando Mateus
Colecção estórias nº 81
Editorial Teorema, Lisboa s/d

O que não conseguiu o Oceano Pacífico com a sua paciência semelhante à eternidade, conseguiu-o o simples e doce posto dos correios de San Antonio: Mario Jimenez não só se levantava de madrugada, assobiando e com um nariz fluído e atlético, como se lançou com tanta pontualidade no seu ofício que o velho funcionário Cosme lhe confiou a chave do local, no caso de alguma vez se decidir a levar a cabo uma façanha desde há muito sonhada: ficar a dormir de manhã até tõ tarde que já fosse hora da sesta e dormir uma sesta tão grande que já fosse horas de deitar, e ao deitar-se dormir tão bem e com um sono tão profundo que no dia seguinte sentisse pela primeira vez essa vontade de trabalhar que Mario irradiava e que Cosme meticulosamente ignorava.

PELO SONHO É QUE VAMOS


No dia 16 fui mostrar-me aos rapazes… que têm alguns, para cima de 40 anos. E depois de assentarmos que o nosso programa seria traçado sobre o que fosse parecendo mais necessário, li (pois claro!) o «Para a Escola», de Trindade Coelho. E pedi uma redacção em que lembrasse cada um dos seus dias de escola.
Isto é que é gente! Mais de metade trabalhou; mais de um quarto trabalhou bem; e quem nada fez veio pedir desculpa.

Sebastião da Gama em Diário

domingo, 24 de setembro de 2017

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A propósito deste Olhar as Capas, recuperamos um texto publicado neste Cais do olhar em 15 de Outubro de 2011:

Quando Manuel da Fonseca, publica Seara de Vento  encerra aí o seu grande percurso na prosa.

Segue-se um interregno de 10 anos, interrompido pela publicação do livro de contos Um Anjo no Trapézio.

Numa entrevista a Maria Teresa Horta publicada em A Capital de 20 de Junho de 1968 disse Manuel da Fonseca:

“Pouco depois de “Cerromaior”, escrevi um romance. Duzentas e tal páginas. Um sujeito que o leu, gostou. Eu não. Nem o publiquei. Agora, que já tinha “esquecido” o tal romance inédito, mas não as pessoas, nem os acontecimentos, dei-me à escrita, e as duzentas e tantas páginas ficaram reduzidas a quarente e nove. O título do conto é o mesmo do romance “Um Anjo no Trapézio”.

O livro foi muito mal recebido pela crítica.

Alice Vassalo Pereira escreveu no “Jornal do Fundão” de 28 de Julho de 1968:

Manuel da Fonseca publica pouco. Sabemos isso. Temos dele meia dúzia de livros, e um longo silêncio de cerca de dez anos entre a publicação do último – “Seara de Vento” – e a de “Um Anjo no Trapézio” que surge agora nas nossas mãos. Um longo silêncio apenas povoado, de vez em quando de reedições e trabalhos dispersos por jornais. “Um Anjo no Trapézio” é a palavra de quebrar o silêncio.
Mas (infelizmente) para certos casos o silêncio continua a ser de oiro. E por vezes (agora) a palavra nem de pedra é…

José Gomes Ferreira, nos seus “Dias Comuns”, 5º volume, no dia 14 de Junho de 1968 escreve esta entrada:

O Manuel da Fonseca publicou um livro novo: “O Anjo no Trapézio.
Ainda não o li, mas gelou toda a gente.
O João José Cochofel:
- É muito mau… Com as palavras derretidas.
O Augusto Abelaira, a medo, com a delicadeza natural de não dizer mal dos ausentes:
- “O Fogo e as Cinzas” é um livro formidável.
O Carlos de Oliveira sacode a cabeça apavorado com esta verificação:
É terrível! Pode perder-se o talento!
Desgosto de família.

Damos os pêsames uns aos outros. Sinceros.

DEUS, PÁTRIA E FAMÍLIA


Em 1926 sucedeu o que tinha de suceder, mais ano menos ano, para pôr cobro ao desassossego em que se vivia: a instauração de uma ditadura. Tinha este vosso tetraavô então a bonita soma de vinte anos. A ditadura prolongou-se até 1974, o que significa que esteve instalada em Portugal durante 48 anos! Foi demais para a nossa inquietude mas justifica-se tão dilatado tempo por duas fortíssimas razões que, conjugadas, permitiram esse resultado: uma, foi a simultaneidade de outras ditaduras em países europeus; outra, foi o surgimento inesperado de um homem monolítico, nem de torcer nem de quebrara, possuído de uma filosofia política firmemente assente nos valores tradicionais da Nação (Deus, Pátria e Família), provinciano de quatro costados, homem sem mulher, que usava botas com atacadores. Sobre a pressão dessas botas  pôs o país em silêncio enquanto as cabecinhas dos portugueses assomando na periferia das gáspeas erguiam os olhos para o seu salvador.
Chamava-se, o homem, António de Oliveira Salazar. Era natural do Vimieiro, no concelho de Santa Comba dão, e mestre de Economia e Finanças na Universidade de Coimbra.
Notem, meus queridos tetranetos, que Salazar não se esgueirou por entre as massas para alcançar a ribalta política. Ele estava sentado na sua cátedra, a debitar os seus saberes, quando os ditadores militares de 1926, já desorientados com a sua própria revolução, lhe suplicaram que viesses até Lisboa tornar conta da pasta das Finanças, pois tinham notícia da sua competência e a nau portuguesa estava prestes a afundar-se. O homem veio, aceitou o cargo e apresentou o seu plano de acção governativa. As exigências do seu programa eram muitas e pesadas e, como não foram aceites, Salazar pôs o chapéu na cabeça e voltou para Coimbra. Cerca de dois anos mais tarde, como a confusão continuasse na mesma, tornaram a chamá-lo. Que viesses, que fizesse o que quisesse. Ele veio e fez o que quis, com a consciência tranquila.

Rómulo de Carvalho em Memórias

OLHAR AS CAPAS


Um Anjo no Trapézio

Manuel da Fonseca
Capa: Pilo da Silva
Colecção de Autores Portugueses nº 11
Prelo Editora, Lisboa 1968

O súbito acender das luzes da sala desfez o encanto. Houve como que uma surpresa e o alívio de ter sido de outros aquele drama. Recuperados, não por completo mas o suficiente para escaparem ao sortilégio, todos se encaminharam para as saídas. Pelo átrio, ainda a perturbação os acompanhava. No entanto, já procuravam descobrir qualquer assunto que os libertasse de vez. Era-lhes necessário chegar à sua o mais depressa possível.

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sábado, 23 de setembro de 2017

NÃO TENTAR AQUILO DE QUE NÃO SE ESTÁ CERTO


Mário-Henrique manda-se para fora de pé.

Longa carta, datada de 13 de Setembro de 1961, ainda em S. Domingos de Rana. E diz a Isabel  que a vai começar a tratar por tu.

Minha Maruska, ouve com atenção e não digas que não te avisei: vais ter algum tempo para pensar, mas olha que depois, se quiseres, nunca mais poderás voltar atrás. Não vai haver mais nenhum processo de divórcio na minha vida, Isabel, creio que concordas e compreendes.
Ouve, querida, ouve com atenção e não digas que não te avisei: não sou um homem nada fácil, sei isso muito bem. Complico coisas que não devem ser complicadas, atiro outras pelo ar, enfim, parece que viver comigo não é exactamente um paraíso. Além disso, tenho nesta altura a vida quase completamente destruída (porque eu, estupidamente, a deixei destruir, é um facto). Terei que reconstruir tudo mas, se tu quiseres, reconstrui-la-ei para nós, com tanta ou mais força do que tenho feito até aqui. Também, Isabel, irão acontecer várias coisas: vai haver fedelhos a rasgar livros e a quem eu berrarei furibundo, só para tu os poderes beijar em seguida. Vai haver complicação económica se tu não fores capaz de deitar a mão a esse assunto, como administradora, Vai haver zanga e querela de vez em quando, talvez só para poder haver uma razão para eu te beijar depois… Vão haver muitas coisas e, portanto, deves pensar bem e saber se queres ou não queres que tudo isso aconteça. Se não quiseres, Isabel, deixa-me pelo menos a recordação do teu sorriso e a saudade enorme dos beijos que nunca te dei. E tenho muitas saudades deles! Deixa-me isso – que não me podes tirar, nunca poderás – e sê perfeitamente honesta para contigo e para comigo também. Já te disse, creio, que em amor só há dois caminhos: sim ou não. Ninguém pode amar apenas por simpatia e tolerância. Acaba tudo mal, como viste na minha “estimada esposa”. É preferível não tentar aquilo de que não se está certo.

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

ÀS VEZES NUNCA MAIS LÁ VOLTAMOS


Connosco é assim, meu rapaz. Somos polícias e toda a gente nos detesta. E, como se já não bastassem as arrelias da profissão, ainda temos de aturar tipos como você. Arriscamos constantemente a vida em casos sórdidos, sempre à espera de receber um punhado de «chumbo» no corpo, enquanto nos esperam em casa para jantar. Às vezes nunca mais lá voltamos. Há noites em que chegamos a casa tão cansados que não conseguimos comer, nem dormir, nem sequer ler as mentiras que os jornais dizem a nosso respeito. Ficamos acordados, às escuras, numa casa humilde de uma rua modesta, a ouvir os bêbedos que passam pela rua. E, no momento preciso em que pegamos no sono, o telefone toca, levantamo-nos e a rotina recomeça. Nada do que fazemos merece aplauso. Quando obtemos uma confissão, dizem que a conseguimos à força de espancar um tipo e, no tribunal, há sempre um que nos chama Gestapo. Se cometemos um erro, põem-nos fardados na rua e passamos as agradáveis noites de verão a apanhar bêbedos caídos na sargeta, a ser insultados por prostitutas e a desarmar teddy-boys. Mas tudo isto não basta para nos tornar inteiramente felizes. Precisamos de tipos como você.

Raymond Chandler em IngénuaPerigosa

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Só um homem em mil lidera outros homens. Os restantes 999 vão atrás de mulheres.

Groucho Marx

CANÇÕES DE ENTARDECERES



O Sol hoje pôs-se às 19,32 horas e deu-se o último pôr-de-sol do Verão.
Já estamos no Outono.
Peguemos nas páginas de O Principezinho de Antoine Saimt-Exupéry:

 Ah, principezinho, assim fui conhecendo, aos poucos, a tua vida melancólica. Durante muito tempo, apenas a doçura dos poentes te serviria de distracção. Tomei conhecimento deste novo pormenor no quarto dia, de manhã, quando me disseste:
- Gosto muito do pôr-do-sol. Vamos ver um pôr-do-sol...
- Mas é preciso esperar...
- Esperar o quê?
- Esperar que o Sol se ponha.
A princípio ficaste muito surpreendido e depois, riste-te de ti próprio. E disseste-me:
- Julgo sempre que estou no meu sítio...
Com efeito. Quando é meio-dia nos Estados-Unidos, o Sol , toda a gente o sabe, põe-se em França. Bastava ira França num minuto para assistir ao pôr-do-sol. Infelizmente, a França fica muito longe. Mas no teu planeta tão  pequenino, bastava-te afastar a cadeira dois ou três passos e contemplavas o crepúsculos sempre que desejasses…
- Um dia vi o pôr-do-sol quarenta e quatro vezes!
E algum tempo depois, acrescentavas:
- Sabes... quando se está muito, muito triste, gosta-se do pôr-do-sol...
- Então no dia das quarenta e três vezes estavas assim tão triste?
Mas o principezinho não respondeu.

A canção escolhida recaiu em I Believe I’m gonna love you.
Há mais de uma versão desta canção, mas apenas uma vale a pena registar: a que se ouve na voz de Frank Sinatra.


OLÁ, OUTONO!


Quando Setembro chega, risca do calendário o horroroso Agosto e ficamos a saber que, mais uns dias, e o Outono bate-nos à porta.
Será hoje, às 21 horas mais dois minutos, e chamamos-lhe o tempo da serenidade.
O Hai-Kai do Outono por Mário Quintana:

Uma borboleta amarela?
Ou uma folha seca
Que se desprendeu e não quis pousar?






NOTÍCIAS DO CIRCO


Ricardo Araújo Pereira na Visão:

«Como é que se espera que um homem habituado a auferir uma pensão de três mil euros por dia viva agora com 11 mil e 500 euros por mês? Vai ter de fazer contas, certamente, o que equivale a condená-lo à pobreza: é muito provável que um homem que conseguiu levar à falência o maior banco privado e a maior empresa portuguesa não tenha especial jeito para números.» 

OLHAR AS CAPAS


Atravessando o Paraíso

Sam Shepard
Tradução: José Vieira de Lima
Capa: Fernando Felgueiras
Difel, Lisboa, Fevereiro de 1997

Era uma coisa que lhe dava sempre náuseas, fazer as malas. Aquela comichão indistinta a espreitar na garganta. A boca a saber a algodão. Bastava-lhe ver a roupa interior e as meias estupidamente à espera dele na cadeira. A pilha de T-shirts desbotadas. Estava-se nas tintas para a ordem segundo a qual as roupas iam para o saco verde. Misturava-as a esmo e nunca pensava no que poderia precisar de tirara primeiro ou em que cidade poderia para na primeira noite. Para dizer a verdade, agora não fazia ideia nenhuma sobre a direcção a seguir ou sobre a estrada que havia de tomar. Era cara ou coroa. Tentou imaginar um destino: Lexington; El Paso; Boulder City. Não fazia ideia. Os destinos misturavam-se todos. Tentou ver-se a si mesmo lá. Algures num sítio qualquer. A chegar. Albuquerque, talvez. Tucumcari. Viu uma cafeteira Denny’s que lhe parecia familiar, para lá de um parque de jogos e de uma velha estação dos caminhos de ferro; mas não estava certo quanto à cidade onde se lembrava de os ter visto ou quanto ao que esses sítios teriam que justificasse o seu regresso. Pensou em queimar todos os seus mapas.

ARRISCOU AMBAS


Um contraste com a esoteria de outro lugar de livros em Carmel by The Sea, antes de entrar no Big Sur, junto ao restaurante que pertenceu a Clint Eeastwood. Ele foi o mayor daquela cidade turística, quase um lugar de bonecas. Trouxe de lá a biografia de Jack London, o homem que se dividiu pela Califórnia e pelo Alasca, ideologicamente o contrario de Eastwood, quando ser comunista era rebeldemente proibido na América e ser lobo do mar uma aventura quase tão grande como isso. Arriscou ambas.

Isabel Lucas em Livrarias – Um Mapa Pessoal Incompleto, publicado na revista Ler, nº 146, Verão 2017.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

SOU UMA SOMA DE TODAS AS PARTES


Acerca da minha voz para começar. Não tenho lá grande voz. Tenho a força, a capacidade de alcance e a resistência de um típico cantor de bar, mas não tenho uma grande beleza a nível de timbre, ou sequer categoria. Cinco actuações por noite? Sem problema. Três horas e meia de actuação? É possível. Necessidade de aquecimento? Quase nenhuma. A minha voz cumpre as devidas funções. Mas é o instrumento de um trabalhador a prazo, e por i só, nunca me levaria a voar alto. Preciso de recorrer a todas as minhas capacidades para conseguir comunicar em profundidade. Para conseguir vender o que vocês compram, tenho de escrever, tenho de editar, tocar, dar um grande espectáculo e, sim, cantar o melhor que me é possível. Sou uma soma de todas as partes. Cedo aprendi que isto não é motivo de preocupação. Todos os artistas têm os seus pontos fracos. Parte do sucesso deve-se a saber o que fazer com o que se tem e com o que NÃO se tem. Como disse o Clint Eastwood; «Um homem tem de saber os seus limites.» Depois há os que os esquecer e seguir em frente.

Bruce Springsteen em Born to Run

OLHARES


Algures na Rua João de Freitas Branco.

TRUMPALHADAS


DonaldTrump foi às Nações Unidas dizer que «não temos alternativa senão destruir completamente a Coreia do Norte.»

O secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou, também nas Nações Unidas, que a ameaça nuclear está «ao nível mais alto desde a Guerra Fria», avisando as partes envolvidas na crise da Coreia do Norte que «conversa inflamável pode conduzir a mal-entendidos fatais».

Ainda Guterres: «Somos um mundo em pedaços. Precisamos de ser um mundo em paz.»

A primeira reação da Coreia do Norte ao discurso de Donald Trump, quando ameaçou destruiraquele país, chegou pela boca do ministro dos negócios estrangeiros quando afirmou que o presidente dos Estados Unidos parece «um cão a ladrar».

O mundo está perigoso.

Muito mesmo!

Imperdível a crónica de Ferreira Fernandes no Diário de Notícias:

«Num debate do partido chama "Ted mentiroso" a um colega (Cruz). À adversária Clinton chama "Hillary vigarista". Logo, da primeira vez que vai à ONU põe o dono da casa em pânico. António Guterres bem preveniu: "Discursos empolgados podem levar a desentendimentos fatais." E se calhar o português até fez aquele seu peculiar gesto de duas mãos a encher um pneu com bomba de bicicleta: calma, por favor... Qual o quê! O Donald esteve imparável, ontem. Sabem, aqueles rufias que estão debaixo do prédio do suicida? Em vez de apelar por juízo açulam: "Atira-te, ó cobardolas!" Assim fez Trump. Em 1962, com a crise nuclear a 80 km da Florida, John Kennedy chamou ministro dos Negócios Estrangeiros ao Mr. Gromyko e presidente a Khruchtchev - e foi firme, a ponto de ser ouvido pelos soviéticos. Não chamou Monstro do Pântano a um, nem Homem Aranha a outro. Ontem, Trump, depois de anunciar que a Coreia do Norte seria "totalmente destruída", acrescentou: "Rocket Man [o Homem Foguetão] está numa missão suicida para ele próprio e para o seu regime." Tentem seguir o fio ao pensamento. O ponto de partida é aceitável, Kim Jong-un é pírulas e dele tudo se pode esperar. Ainda mais grave do que o suicida que ameaça atirar-se do quinto andar, ele quer levar o prédio e até o bairro com ele. Mas, então, Trump goza e chama-lhe Rocket Man? O que eu quero dizer é seguinte: o gajo do quinto é maluco, mas o instigador do pátio é parvo.»

OLHAR AS CAPAS


Exercícios de Estilo

Luiz Pacheco
Editorial Estampa, Lisboa, Julho de 1971

Tenho Amigos até 1 copo. Tenho todos os meus Amigos tabelados: a cincos (o Edmundo Bettencourt, o Jaime Salazar Sampaio, por ex.), a vintes (são a grande maioria), a cinquentas (o Mário Alberto, etc.), a cemzes, a quinhentos (o Artur Ramos), a miles (destes últimos convém não abusar, é só para as grandes aflições). A vintes cada bebedeira são á bicha, bêbedas que apanhamos eles a pensarem neles e no que mais lhes interessa ou por um bocado de companhia ou por um ouvido irmão para desabafar; eu a pensar nos vintes que lhes vou cravar à despedida, na hora das emotivas efusões em que a fraternidade é lei. Tenho Amigos que dão vintes mesmo sem vinho – e sabe-se lá porquê? Tenho Amigos que dão a gravata a camisa a calça curta ou comprida cachecóis lenços de assoar a esferográfica deles, todos os trocos miúdos das suas algibeiras, com uma careta ou um riso satisfeito, tanto me faz. Tenho ainda Amigos que me levam uma vez por ano à praia de popó e me dizem insistem para que molhe ao menos os pés, lave as ventas na água salgada, insistem por pura amizade para eu respirar fundo «qu’ali é qu’é bom». O iodo. As brisas atlânticas. As beldades carnudas bem à mostra. Tenho outros Amigos que me põem a ouvir a última gravação que compraram do Brell e oiço Les Timides, Les Vieux e choramingo, na hora dos copos qualquer pretexto (me serve) lachrima triste à esquerda (veio decerto directa do coração), lagrimeta condensada na pupila à direita pelos tintos, forma de arroto vínico irreprimível subido do fígado inchado que se enganou no caminho natural talvez sugestionado pelo Brell. Tenho Amigos-amigos, Amigos-negócios à parte e Amigos-meio a atirar pró torto, da onça. De todos preciso e assim-assim de todos gosto à minha maneira porque a solidão e o silêncio são causas de morte, são a morte. O meu maior Amigo, digo: aquele que me tem feito sofrer mais, sou eu. Por isso, talvez, também que o prefira (e me gramo). Entre todos os Amigos às vezes me prefiro e tiro mais, carrasco e vítima de mim mesmo, e bebo e drogo-me para o esquecer, o desconhecer, e ainda às vezes tanto asco lhe voto e desespero que o matava logo ali – a não ter tanto medo da polícia Eu).

4º MOTIVO DA ROSA


Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida,
mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

PROJECTO DE SUCESSÃO


Para o Mário Henrique

Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra.

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos.

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nú em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio. 

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias. 

António Maria Lisboa

Legenda: poema de António Maria Lisboa encontrado no espaço do Legado de Mário Henrique Leiria

A LUZ DA ETERNA FACE



Meditai nos vossos leitos.

Em silêncio.

Quem
afinal
nos dá
felicidade?

A luz da eterna face
traz ao meu coração
mais alegria
do que abundantemente o pão e o vinho.

Deito-me e adormeço.

Mário Castrim em O Livro dos Salmos

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OLHAR AS CAPAS


O Desconhecido do Norte Expresso

Patrícia Highsmith
Tradução: Elisa Lopes Ribeiro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 70
Livros do Brasil, Lisboa s/d

- Leste isto tudo?
- Tudo, não. Quantos copos bebeste esta manhã?
- Um.
- Cheiras a dois.
- De acordo. Bebi dois.
- Escuta, querido, tens que deixar de beber de manhã. É o pior que há. Passei a minha vida a ver alcoólicos…
- Alcoólicos é uma palavra desagradável – atalhou ele, passando pelo quarto. – Sinto-me melhor, desde que bebo um pouco mais. Tu própria disseste que me achas mais alegre e com mais apetite. O whisky é uma bebida sã. Não sou só eu a ter esta opinião.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


O que me resta é regressar à vida, amá-la delicadamente, como os mortos – se os mortos pudessem reviver.

José Fernandes Fafe

PODE ESTAR DEBAIXO DOS NOSSOS PÉS


O quarto tinha uma cama de dossel confortável e uma mesa antiga – o resto, mobiliário de estilo rústico e uma cozinha pequena equipada. Mas não comemos lá. Deitei-me, ouvi os grilos e os animais pela janela, na escuridão fantasmagórica. Gostei da noite, as coisas crescem à noites. À noite a minha fica ao meu dispor. Todas as minhas ideias preconcebidas das coisas desaparecem. Às vezes anda-se à procura do paraíso nos sítios errados. Às vezes pode estar debaixo dos nossos pés. Ou na nossa cama.

Bob Dylan em Crónicas