quinta-feira, 30 de novembro de 2023

OS CARTAZES DO ADELINO


 UM CORPO COM OS OMBROS DO TRABALHO

De que terra é este homem? De que serra veio? De que vales fez caminho para chegar a Lisboa?

Carregador de grades, que, de madrugada, vão cheias e às costas, para o mercado, e que, na quebra da tarde, vão vazias, mas ainda às suas costas, para a camioneta de carga, ele, será sempre e até à segunda geração, um corpo que abriu, com os ombros do trabalho, as portas da capital.

Como vive? Onde mora? Que transportes usa? Que ruas percorre e conhece?

Haverá alguém, neste desgoverno que temos, a pensar nele mais como «beneficiário» do que como «contribuinte»?

                                                                                                                            A. T. da S.

OLHAR AS CAPAS


Prosa Doutrinal de Autores Portugueses

Selecção, Prefácio e Notas de António Sérgio

Colecção Antologias Universais : Ensaio nº 1

Portugália Editora, Lisboa s/d

Oração é quando a algum homem de boa vida aparece o Senhor Deus ou algum Anjo e lhe diz as cousas que há-de fazer ou de que se deve de guardar, ele ou outra pessoa.

Visão é quando o homem aquelo que viu em sonhos vê depois claramente por vista: assim como o sonho que viu Faraó das vacas e das espigas.

Sonho é quando homem vê alguma coisa a qual por si não pode declarar nem saber, e há mester quem lho interprete, como foi o sonho do copeiro de el-rei Faraó.

(Trecho retirado de um trecho da Crónica de D. João I).

SUSPIROS INFLAMADOS...

Suspiros inflamados, que cantais
a tristeza com que eu vivi tão ledo:
em morro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar do Leteio, vos percais.

Escritos para sempre cá ficais
onde vos mostrarão todos co dedo
como exemplo de males; que eu concedo
que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes largas esperanças
de Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,

dizei-lhe que os servistes muitos anos,
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão enganos.

 

Luís de Camões em Sonetos 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente é isto a velhice.»

José Saramago em Cadernos de Lanzarote, 2º volume

 Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

OLHAR AS CAPAS


Errata: Revisões de Uma Vida

George Steiner

Tradução: Margarida Vale de Gato

Capa: Fernando Mateus

Relógio d’Água Editores, Lisboa, Novembro de 2001

Não ouso sequer imaginar as limitações, a miséria humana infligida pela cegueira, mas interrogo-me se a surdez não será a mais escura das escuridades.

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Quando foi publicado o 1º volume dos Cadernos de Lanzarote não fiquei muito entusiasmado com a ideia. Mas no fundo dos fundos sempre era escrita e trabalho de José Saramago, de quem nunca se espera que nos ofereça fruta bichada, pelo que não podia ficar indiferente.

Na página 54 do 4º volume dos Cadernos, Saramago teve o cuidado de deixar uma indicação:

«Na verdade, terá de vir procurar-me nestas crónicas quem verdadeiramente me quiser conhecer.» 

Passados todos estes anos e deixando de lado as invejas incompreensões de seus pares, colocando à margem muita prosa datada dos Cadernos, terei que dizer que muito aprendi com a leitura dos Cadernos.  

Um interessante livro de Fernando Gómez Aguilera, José Saramago. O Pássaro que Pia Pousado no Rinoceronte, acabado de ler, contém um capítulo que intitulou «A figura do Caminhante», a propósito dos 3 primeiros volumes dos Cadernos de Lanzarote.

Hoje, debruço-me no começo dessa prosa:

 

«A figura do caminhante, que avança sobre a cinza em direcção a um fundo de montanhas, anuncia um homem de passo firme, esclarecido. No entanto, o seu aspecto não é o de quem está habituado a lidar com a terra áspera e com o caminhar. Então o que procura ele na sua deslocação? Dirige-se para algum destino em concreto? Espera-o porventura uma mulher a quem deseje abraçar, contar uma fábula ou partilhar uma inquietação?
Parece movido por uma vontade enérgica, amparado na porosa tela da sua memória ou no anelo de uma terra flamante para os seus olhos. À sua volta, a região desenha-se negra, inóspita e vazia, exceto de calma, de beleza e de luz. É um homem ágil, de aparência jovem, apesar da idade. Poder-se-ia tratar de alguém que caba de escrever num caderno palavras dilacerantes na sua ternura, por exemplo: «Sentir como uma perda irreparável o acabar de cada dia. Provavelmente é isto a velhice.»

(Diário II-1994, 7 de Julho) Tratar-se-á porventura de um passeante que avança no silêncio da sua conversa, entre o caudal das palavras escritas e as palavras por dizer? Um caminhante que vive nos livros e com eles modela a respiração dos seus dias e sonhou com o cume das colinas a que sobe, agarrado à memória de uma criança especialista em rios, ribeiras e olivais:

«Subi ontem a Montaña Blanca. O alpinista do conto tinha razão: não há nenhum motivo sério para subir às montanhas, salvo o facto de elas estarem ali.

Desde que nos instalámos em Lanzarote que eu andava a dizer a Pilar que havia de subir todos estes montes que temos por trás da casa, e ontem, para começar, fui-me atrever com o mais alto deles. É certo que são apenas seiscentos metros acima do nível do mar, e, na vertical, a partir do sopé, serão aí uns quatrocentos, ou nem isso, mas este Hillary já não é criança nenhuma, embora ainda muito capaz de suprir pela vontade o que lhe for faltando de forças, pois em verdade não creio que sejam tantos os que, com esta idade, se arriscassem, sozinhos, a uma ascensão que requer, pelo menos, umas pernas firmes e um coração que não desista.»

(Diário I-1993, 9 de maio)

 

Lembrava-me desta entrada nos Cadernos, de que agora tanto gostei de reler e parti do princípio de que estaria sublinhada. Não está e deveria estar!

Se eu tivesse qualquer dúvida, ficaria a saber da importância que existe em ler os autores de que tanto gostamos, mais de uma vez.

Já agora, acrescento a parte final da entrada que Gómez Aguilera não cita:

«A descida, feita pela parte da montanha que dá para San Bartolomé, foi trabalhosa, bem mais perigosa do que a subida, pois o risco de resvalar era constante. Quando, enfim, cheguei ao vale e à estrada que vai para Tías, as tais firmes pernas minhas, com os músculos endurecidos por um esforço para que não tinham sido preparados, mais pareciam trambolhos que pernas. Ainda tive de caminhar uns quatro quilómetros para chegar a casa. Entre ir volver, tinham-se passado três horas. Lembro-me de haver pensado, enquanto subia: «Se caio e aui me mato, acabou-se, não farei mais livros.» Não liguyei ao aviso. A única coisa relamente importante que tinha para fazer naquele momento, era chegar lá acima.»

 

Interessante o pormenor:

 

«Se caio e aqui me mato, acabou-se, não farei mais livros.»

 

Legenda: Selo comemorativo dos Correios espanhóis pelos 100 anos do nascimento de  José Saramago.

A CEIA

À tua frente

silenciosamente

chegou o dia.

 

Já não vemos a cidade

o rio que passa perto

os amigos vozes barcos

confundidos na distância

 

Basta uma porta de exílio

todo o mundo lá ficou.

Onde longe sem fronteira

morta a memória da estrada?

 

Agora nada nos prende

ninguém nos espera mais:

no abandono dos outros

deixámos o nosso amor

 

- resto de pão dividido

cada metade é a fome.

Conheço velha a que trouxe

levo comigo a que dou.

 

Ao teu lado

silenciosamente

chegou o dia.

 

Marta Cristina Araújo em Os Meios de Transporte

terça-feira, 28 de novembro de 2023

MARCADORES DE LIVROS


 Colaboração de Aida Santos.

MÚSICA PELA MANHÃ

Hoje, à mistura com um Bacalhau à Zé do Pipo, fala-se do Cândido Mota e a talhe de foice vem aquele EP do Crispian St. Peters que tem o The Pied Piper e ainda me lembro das palavras mágicas, as primeiras espiras a rodarem e a voz única do Cândido Mota a recitar: «sigam-me que eu sou o tocador da flauta mágica».

E num destes domingos, porque ao domingo, seguindo uma tradição, que trouxe da casa dos meus pais, há sempre um assado no forno, irei tentar o teu Bacalhau.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


A Biblioteca da Casa tem alguns livros de comeres e beberes. 

Hoje trazemos uma colectânea de gente portuguesa, quarenta ao todo, reunida por Manuel Guimarães.

Escolhemos a receita proposta pelo Cândido Mota, uma admirável voz de um programa de rádio que marcou uma geração: o Em Órbita.

O Cândido escolheu «Bacalhau è Zé do Pipo» e como escreve Manuel Guimarães: um prato frequente nas décadas de sessenta e setenta nos bons restaurantes de Lisboa e hoje substituída por autênticas anedotas gastronómicas, mesmo em casa com responsabilidades e tradições no mundo da comida.

 

BACALHAU À ZÉ DO PIPO

 

Tempo de preparação: 1 hora

Ingredientes para 4 pessoas

 

4 postas de bacalhau do lombo

1 l de leite

4 cebolas médias

1 dl  de azeite

1 folha de louro

Sal q.b.

Pimenta q.b.

Noz-noscada q.b.

Manteiga q.b.

1 tijela de maionese espessa

1 kg de batata em puré

Azeitonas q.b.

E é assim que o Cãndido Mota faz o bacalhau à Zé do Pipo:

OLHAR AS CAPAS


Quarenta Homens na Cozinha

Manuel Guimarães

Prefácio Francisco Hipólito Barroso

Fotografias: Gustavo de Almeida Ribeiro

Capa: João Nuno Represas

Círculo de Leitores, Lisboa, Dezembro de 1994

Ora o bom «Bacalhau à Zé do Pipo» não é compatível com a mentalidade do comer em pé ou com as pressas excessivas de muitos que, na maior parte das vezes, não sabem sequer por que se apressam.

ORIENTAÇÃO

Escrevi milhares de versos
para esquecer. Amei algumas mulheres
para lembrar. Agora já posso dizer
o som em carne viva.

A cidade assemelha-se a um acampamento
abandonado no deserto. Os nómadas
partiram nos seus camelos, com provisão
de tâmaras e água.
Há restos de detritos, sinais de trânsito,
folhas arrancadas a revistas pornográficas,
ao sabor do vento, por entre pétalas sêcas.

Há resíduos de sítios onde estive contigo,
fragmentos de versos de vidro, tudo
muito nítido, anotado, vincado a oiro.

 

António Barahona em Resumo: a poesia em 2010

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

A MEDIDA DO MEU TEMPO


Em cada comboio eu sabia que não vinhas, e ainda assim cada comboio era a medida do meu tempo na solidão povoada do meu emprego.

Maria Helena Barreiro em Grifo

OLHAR AS CAPAS


Discursos  Parlamentares

Almeida Garrett

Introdução: Manuel Mendes

Colecção Saber nº 28

Publicações Europa-América, Lisboa s/d

A discussão vai larga e degenerada, já principia a cansar a Câmara, e há muito que enfastiou a Nação. E contudo, eu espero dela um grande fruto, uma utilidade imensa, inapreciável, com que não só a Câmara mas toda a Nação há-de ganhar muito: - a prova indirecta, o testemunho irrefragável, a convicção unânime de que não era este o modo, de que não era certamente este o estilo de discutir a resposta a um discurso da Coroa.

A discussão vai degenerada, digo; porque solene e gravemente começada sobre o primeiro parágrafo do projecto, e parecendo querer estender-se à amplíssima generalidade dele, afectando entrar nesse vasto, importante e imenso assunto, toda desandou, em viciosíssimo circulo, à roda de uma palavra; para se contrair, por fim, no mais pequeno dos objectos, no mais insignificante, no mais baixo; o das acusações e recriminações pessoais, o das injúrias, dos convícios, dos apodos; - palavras que deveriam riscar-se do dicionário de todas as línguas que têm a honra de ser faladas num parlamento.

Nada tamanho e tão augusto como este primeiro acto de comunhão em sentimentos e vontade, que anualmente se celebra entre o Povo e o Soberano! Esta primeira e solene consultação em que o Chefe da Nação por sua boca, a Nação pela dos seus representantes, mutuamente se vêm saudar ao Foro da Liberdade, e, postos em comum as suas observações, os seus pensamentos, os seus projectos, os seus meios, pausados acordam no mais seguro e eficaz para se promover a felicidade da república !

Nada tamanho, Senhores, nada tão sublime! - E nada tão pequeno, nada tão mesquinho, nada tão miserável, tão indigno desta Câmara como a maneira por que o estamos celebrando!

Ainda mal! é verdade: é triste verdade que, junto com poucos argumentos, os ditérios, sós, os vitupérios sós parecem querer usurpar o lugar de todas as reflexões, substituir-se a todas as razões, darem-se por motivos suficientes de tudo, e negar-se tudo, provar-se tudo com eles! - A que triste campo nos trazem a pelejar

E todavia, Senhores, eu venho a ele ... venho, forçado, violentado, a despeito meu: por que já não basta o silêncio do desprezo quando se vê a vaidade presunçosa interpretá-lo por confissão ou fraqueza. Venho a esse campo para que me emprazaram obrigado, – não a lutar com as mesmas armas (tenho vergonha, tenho nojo delas!) mas a repelir honesta, leal e cortesmente, mas fortemente, os golpes atraiçoados com que quiseram ferir aos meus amigos do centro no que eles e eu temos mais caro e precioso, a nossa lealdade, a nossa constância política, a invariabilidade dos nossos princípios, a nossa inalterável e inabalável adesão à liberdade constitucional, à monarquia representativa, pela qual uns a fazenda, outros a saúde temos sacrificado, não poucos exposto a vida muitas vezes.

Do discurso pronunciado no dia 8 de Fevereiro de 1940 

TEMPOS DIFÍCEIS

De pé à escrivaninha

Vejo pela janela no jardim um sabugueiro

E reconheço nele coisas vermelhas e pretas

E lembro-me de repente do sabugueiro

Da minha infância em Augsburgo.

Vários minutos fico a pensar

Muito a sério, se irei ou não à mesa

Buscar os óculos para ver outra vez

As bagas pretas nos raminhos vermelhos.

 

Bertold Brecht em Poemas e Canções

domingo, 26 de novembro de 2023

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE

 «Imaginemo-nos Loretta Bell, a mulher do Xerife Ed Tom Bell, o protagonista de No Country for Old Men (Cormac McCarthy, Este País Não É Para Velhos, tradução Paulo Faria, Relógio D’Água, 2007). Loretta, o porto seguro de Bell: “Leio os jornais todas as manhãs. Principalmente, acho eu, para tentar perceber a tempestade que é bem capaz de vir aí a caminho. (…) As coisas cada vez pioram mais. Aqui há uns tempos dois rapazes encontraram-se por acaso, um era da Califórnia e o outro era da Florida. Encontraram-se algures a meio caminho. E vai daí juntaram-se os dois e começaram a viajar pelo país, a matar pessoas. Já me esqueci de quantas mataram. Pois bem, quais são as probabilidades de acontecer uma coisa destas? Aqueles dois nunca se tinham visto um ao outro. Não pode haver assim tantos. Não me parece que haja, pelo menos. Bom, não sabemos. No outro dia, por estas bandas, uma mulher pegou no filho bebé e meteu-o numa trituradora de lixo. Quem havia de pensar numa coisa assim? A minha mulher [Loretta] já não lê jornais. Faz bem, provavelmente. Na maior parte dos casos, ela é que tem razão.»

 Ana Cristina Leonardo de uma crónica no Público

OLHAR AS CAPAS


As Harmonias do “ Camaleão”

Reflexões de Um Burguês – II

José Rodrigues Miguéis

Estúdios Cor, Lisboa Junho de 1974

Qualquer camponês da «charneca» alentejana, ou pastor da meseta ibérica, é mais culto, etnograficamente falando, do que esses dândis para quem a cultura não passa de uma atitude de contemplação e fruição sem contrapartida: uma desnaturação. Para me explicar melhor, pois já vejo uma vertigem de espanto nos seus olhos: Vale mais um hálito de humidade espalhado por toda essa campina, do que uma inundação no meu quintal. E está visto, as pessoas presentes estão rigorosamente excluídas.

CONVERSANDO

A avó materna deixou de ir à missa dominical quando as pernas não lhe permitiram caminhar mais, vivia rodeada de uma família anti-clerical e volta e meia lembrava que não deveríamos invocar o santo nome de Deus em vão.

Seria o que a avó materna diria ao Júlio Montenegro quando ontem, em congresso partidário, abriu os braços e gritou à populaça:

Deus nos livre de ter um radical à frente do Governo.

O DIA SEGUINTE


Em quase 50 anos, apenas  o presidente da Câmara Municipal de Lisboa Carlos Moedas, mais os acólitos que conseguiu arregimentar, teve o enorme desejo de assobiar a passagem do 25 de Novembro.

Não conhecem a história, não leram os livros.

Mesmo os que conhecem a história e leram livros, não têm uma ideia clara sobre aquele dia de quase Inverno.

Nunca ninguém, tirando uns quaisquer fogachos, comemorou o 28 de Setembro, o 11 de Março, meros episódios de um caminhar, após Abril, da nossas recente História.

Legenda: ilustração de Aida Santos

sábado, 25 de novembro de 2023

MÚSICA PELA MANHÃ


Este nicho Música pela Manhã acontece quando nos aparece algo que diz respeito a um autor, a um cantor, a uma data.

Inevitavelmente hoje teria de ser o tempo dessa canção do José Mário Branco.

O tempo em que, como escreveu o jornalista Rodrigues da Silva «algures, numa dobra da história, alguma coisa falhou, algum erro se cometeu. Seria altura de saber, onde, como, porquê. Mas talvez seja demasiado tarde…»

 O dia que Maria Velho da Costa determinou. ESTE DIA NÃO!

 Também um passeio ligeiro  por afirmações deixadas em livros, em artigos de jornal:

1.

Varela Gomes:

 «Mas não havia nada a fazer. A grande decisão estava tomada. Otelo Saraiva de  Carvalho obedecia à convocação do general Costa Gomes, largando os “paras” à sua sorte. O estratega do 25 de Abril de 1974 abandonava vergonhosamente o seu posto de comando em 25 de Novembro de 1975. Na hora do aperto, fugia de calças na mão, à procura do refúgio protector.

Deveriam ser cerca das 15,00 horas quando o general graduado Otelo Saraiva de Carvalho saiu do Copcon… e da revolução.(1)

 2.

 José Gomes Ferreira no seu livro Intervenção Sonâmbula:

 Estamos no fim da Revolução. E porventura não tardará aí o inferno que ninguém quer.

3.

 Mário-Henrique Leiria:

 «Porque foi isto assim possível? propomos a explicação de que houve, como "originalidade" típica, muito improviso no processo revolucionário, que esqueceu a sua defesa, criando a alastrando a angústia na pequena burguesia, camada significativa na sociedade portuguesa, a que até muitos trabalhadores as piram por força das motivações que o obscurantismo fascista teve longo tempo para semear.

Angústia semelhante à que agora ressurge com o agravamento das condições de vida, a subida arrogante da reacção, a incerteza do futuro que tem que ser construído de novo.
O Povo terá pois que teimar para que respeitem a sua vontade de acabar com a exploração do homem trabalhador pelo homem esperto. Para que as condições de vida sirvam as classes desfavorecidas. Para que acabem as perseguições aos que olham o futuro sem medo da mudança. parq ue a justiça social deixe de ser uma miragem evangélica no mundo dos mortos. Para quem produz trabalhando, exerça o poder, Para que sejamos verdadeiramente um país Democrático.»

 4.

 Maria Eugénia Varela Gomes:

 «O 25 de Novembro é o fim da revolução. Acabou para mim… Uma coisa que eu não suportava era ouvir dizer que a revolução continuava depois do 25 de Novembro. Isso não. Não se engana o povo. Porque eu acho que é uma coisa inadmissível enganar o povo. E se algumas vezes me irritei com o Partido Comunista uma das razões foi essa. Eu percebia qual era a intenção, mas achava que era um desrespeito pelas pessoas. Era preciso não deixar as pessoas desanimar… é verdade… mas também dizer-lhes que a revolução continuava…

Quando era evidente, depois do 25 de Novembro, que tinha acabado a revolução.»

 5.

António Rego Chaves, anos mais tarde, no Diário de Noticias:

«Tenho uma imensa saudade dos antifascistas de 24 de Abril de 1974. Era, aparentemente, gente boa, pura, desinteressada em obter ganhos pessoais, generosa. Depois, apenas um dia depois, o minúsculo vírus não identificado que, afinal de contas, tantos deles já traziam adormecido no cérebro e lhe roía as entranhas pôs-se a crescer, a crescer desmesuradamente, sem eira nem beira, como um polvo, uma maldição, até nos revelar o seu horrendo segredo: o oportunismo, a ganância, a sede de vingança, nem que fosse um pequeno pontapé nas canelas do “chefe”davéspera, do vizinho do lado, do gato comunitário, vulgo vadio.»

6.

«E aí volto àquela noite, que volto a não ter pejo de achar que não é para celebrar. Alguns anos volvidos, pergunto-me à esquerda também moderada, terá sido um acto legítimo a interrupção do galhofeiramente nomeado PREC? Terá valido a pena, a não conciliação dentro daquele terreno, que, fosse para onde fosse, não deixava de galvanizar grandes massas de trabalhadores, muitos intelectuais, muita gente honesta hoje marginalizada? Porque não é mais possível, na memória comovida ou irritada de todos nós,  dizer que o que estava sendo era instrumentalizado por Moscovo.

Maria Velho da Costa 

7.

Diana Andringa:

Quem partiu o espelho dos sorrisos de Abril?

 8.

Simone Beauvoir, algures no tempo:

 «O mais terrível dos sentimentos é o de ter a esperança perdida.

É horrível assistir à agonia de uma esperança.»



APENAS UM VENCEDOR


Saramago foi o único vencedor do 25 de Novembro.

Luiz Pacheco

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 

O 25 de Novembro foi um momento fracturante e eu entendo que os momentos fracturantes não se comemoram; recordam-se e recordam-se apenas para reflectir sobre eles.

Ramalho Eanes em Novembro de 2015.

OLHAR AS CAPAS


José Saramago. O Pássaro que Pia Pousado no Rinoceronte

Fernando Gómez Aguilera

Prólogo:Pilar del Río

Prefácio: Fernando Gómez Aguilera

Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra

Porto Editora, Lisboa, Outubro de 2022

José Saramago começou a sentir-se atraído pela elaboração de diários a partir da sua mudança para Lanzarote no princípio de 1993, se bem que se conservem no seu arquivo inúmeras e minuciosas agendas que remontam aos anos setenta, nas quais anotava sucintamente tarefas, encontros, compromissos, citações, reuniões, atividade política no PCP… No entanto, de 1993 a 1998, completou em cada ano, na ilha dos vulcões, a narrativa da sua quotidianidade destinada a ser publicada, uma modalidade que ganhou raízes ao longo do século XIX e encontrou impulso com a difusão do Diário Íntimo, do filósofo suíço Henri- Frédéric Amiel, constituído por 17000 páginas, em doze volumes escritas entre 1839 e 1881, com o propósito de serem impressas.

COMPREENSÃO

Os anos da minha juventude, a minha vida de prazer –

que claramente vejo agora o seu sentido.

 

Que inúteis remorsos, que estéreis…

 

Mas não via o sentido nessa altura.

 

Em meio à minha dissoluta vida jovem

ia tomando forma a minha poesia,

ia-se desenhando o contorno da minha arte.

 

Por isso nunca houve firmes arrependimentos.

E as decisões de me dominar, de mudar

duravam duas semanas se tanto.

 

Konstantinos Kaváfis, tradução de Manuel Resende,

poema copiado do livro Lisboa Cliché de Daniel Blaufuks

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

OS CICLOS DA NOSSA PAIXÃO

Qual? Serão círculos concêntricos ou espirais sustidas no corte que impede a tentação do infinito? – Trabalhadas à mão reverente naquela estrada miraculosa da inteligência/sensibilidade até à execução do visível? Há sempre uma interrupção, uma paragem (aleatória) do olhar na linha subtil de um rosto perplexo, qual rosa solta de si, voltada para o nosso lado de interlocutor, inventado o mundo maravilhoso da sobrevivência ao tempo do êxtase - Pedaços de epopeias, dos cantos dos grandes livros intemporais, mas que marcam os ciclos da nossa paixão. – Singular de cada plural enganosamente referido.

Como escolher o mais, o mais inquietante, o melhor, o mais próximo, o mais doloroso? À sorte aponta-se um, vários, todos. Sem certezas nem porquês.


Marta Cristina de Araújo

Outubro de 2006

Do catálogo da exposição Vórtice de Paulo Neves

Legenda: Desenho a tinta da china de Paulo Neves

OLHAR AS CAPAS


Cabeça de Porco

José Viale Moutinho

Capa: Fernando Oliveira

Forja Editora, Lisboa, Abril de 1976

Era pouco antes do nascer do dia e quando os outros chegaram mostravam-se alvoroçados.

«Amigo, há qualquer coisa, há qualquer coisa!»

E lembrei-me que às nove horas, quando entrasse na Redacção o telex voltaria a contar o golpe e que no prontuário encontraria o título: O GOLPE ESTÁ COMPLETAMENTE DOMINADO.

Mas tudo se desvaneceu quando Bosco, rodando os botões da telefonia conseguiu sintonizar:

«… conforme tem estado a ser transmitido, as forças armadas puseram em marcha. Esta madrugada, uma série de acções com vista à libertação do país do regime que desde há muito o oprimia…»

Abraçámo-nos em silêncio, reconhecíamos que a tarefa continuava a ser dura e preparámo-nos para participar porque subitamente acreditávamos numa notícia.

TER RAZÃO ÀS QUINTAS-FEIRAS

Se vossas excelências não se importam
excelentíssimas entidades superiores
eu hoje
que é quinta-feira
gostava de ter razão.
Sei perfeitamente que morrerei um dia
e que só na minha rua o vão saber.
Por isso se vossas excelências realmente não se importam
eu hoje, que é quinta-feira
precisava muito de ter razão.
De sete dias na semana pedir um para viver
não é muito, convenhamos.
A não ser.....
Ah! É verdade, a não ser...

Eduardo Valente da Fonseca em Tempo dos Manequins

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

OS CARTAZES DO ADELINO


 A primeira vez que apanhei a escrita do Adelino Tavares da Silva foi no Cinéfilo, excelente revista, dirigida por Fernando Lopes que se publicou entre 4 de Janeiro de 1973 e 22 de Julho de 1974 e tento um boneco tirado do volume encadernado de todos os Cinéfilos que consta da Biblioteca da Casa.

Depois encontrei-o no primeiro livro que a & ETC publica, Coisas, com um texto em 18 pontos a que chamou Crucificolagem e aqui repruduzo os dois últimos pontos do texto:

Mais tarde dou com os Cartazes que publicou em O Diário.

Numa  limpeza de caixas e caixinhas encontro um envelope, com alguns desses cartazes  de O Diário que teve vida de 10 de Janeiro de 1976 até 1990, o jornal que o José Saramago, quando ficou desempregado do Diário de Notícias, chegou a admitir que fosse convidado pelo Partido para nele colaborar, que não veio a acontecer e que o obrigou a procurar outros horizontes de vida que foram desembocar nesse grande livro que dá pelo nome de Levantados do Chão e depois a toda uma obra que culminará no Nobel da Literatura.

Sobre o Adelino tentei encontrar algo mais que o vulgar nascer e morrer mas a única referência com interesse é uma história do Adelino contada pelo Mário Mesquita publicada no Público de 1 de Setembro de 2012:

«…a reportagem de Adelino Tavares da Silva da recepção no Palácio de Queluz à Rainha Isabel II, que se resumia a uma foto-legenda. A imagem era do quarto onde o casal real iria pernoitar. As palavras muito sucintas: "Aspecto dos aposentos reais no Palácio de Queluz, onde Sua Majestade Isabel II vai encontrar-se hoje à noite com o Príncipe de Edimburgo, seu marido, após quase um ano de separação". Com efeito, o Príncipe Filipe reencontrava a rainha após longos meses de viagem pela Comunidade Britânica. A censura, no dia seguinte, chamou "à pedra" o Diário Ilustrado.»

Resta-me copiar o que o Vitor Silva Tavares desenhou na & ETC quando o Adelino por lá surgiu a colaborar:

Gosto destes Cartazes  de O Diário guardados em envelope amarelecido pelo tempo e vou copiá-los por aqui.

Costumes, gentes, um país outro que ainda encontramos por aí, cartazes datados mas muito bem escritos. Pede-se desculpa pela má qualidade das reproduções. Da imagem mais não posso fazer, do texto farei transcrição.

E é este o 1º Cartaz do Adelino que se publica:

 ÀS VEZES SÓ MUITO TARDE SE ACORDA

«Eis o que muita gente pensa. Eis o que muitos fazem, julgando que «não tocar nas coisas é melhorá-las». Deitam-se a dormir e, depois, quando acordam, estão hirtos, gastos, entorpecidos, anquilosados.

Mais tarde, só muito mais tarde, às vezes, é que percebem o logro. Resistir é estar de pé e atento. Vencer é não se deixar ficar à espera do que, apenas, vem dentro do sonho, porque é mesmo pesadelo.

É útil criar boas legendas, mas o importante, claro, é fazer delas uma bandeira, que se leva ao alto e não de rastos. É assim em tudo.»

                                                                                             A.T. da S.

OLHAR AS CAPAS


A Campanha

O Golpe de Estado

Diálogo dos Pastores

Auto da Família

Fiama Hasse Pais Brandão

Capa: João da Câmara Leme

Colecção: Novos Dramaturgos nº 2

Portugália Editora, Lisboa, Julho de 1965

 

3ª vizinha

Mulheres, então só há-de ser tão mau o remédio como o mal?

2ª vizinha

Não devia. Falta remédio que seja melhor.

3ª vizinha

Há-de haver.

1ª vizinha

Maneira de acabar a fome.

2ª vizinha

Haverá alguma?

3ª vizinha

Há-de haver.

1ª vizinha

Haverá decerto.

O PARAÍSO PERDIDO

Meus paraísos perdidos!


Este entreter a olhar-me

Em espelhos que enganam

que feitiço mo impõe?

 

Devolvei-me os meus brinquedos…


Adolfo Casais Monteiro

terça-feira, 21 de novembro de 2023

UMA OUTRA MANEIRA DE IRMOS FICANDO MAIS POBRES...

 

Ainda a morte do poeta Manuel Gusmão ocorrida no dia 9 de Novembro.

Um outro poeta, Luís Filipe Castro Mendes: lamentando, nos dias que correm, a não presença física de Manuel Gusmão:

«Grande poeta, com poemas que iluminarão sempre os nossos caminhos, ele foi também um crítico e ensaísta de primeira água, um professor que marcou gerações de jovens com o seu saber e o seu estímulo e uma voz culta e serena, sem nunca deixar de estar aliada às forças de progresso e emancipação.

Perdemos um dos maiores da nossa geração!»

E mais um poema de Manuel Gusmão:

Revolução orbital: vai-se a rosa transformando
na coisa múltipla, amante e amada, na acção
que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens,
estações dos dias e das noites, dos anos da história.
Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz
desenham. E a rosa é uma hélice que vibra
no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões,
do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos
que se respondem: como um coração que deflagra
a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces
e o chão sobre que danças.

 

Legenda: fotografia de Luís Eme

OLHAR AS CAPAS


E. N. 118

Fotografias de Pedro Letria

Capa: Pedro Letria

Edição Ópera, Lisboa, 1994

A selecção de fotografias incluídas neste livro é o resultado de cinco meses vividos

Na estrada Nacional 118, ao longo dos seus 194 quilómetros, que se estendem de Rio Frio a Alpalhão. Decidi-me por esta estrada por dividir o país em partes quase iguais, representando no seu percurso disparidades tão acentuadas quanto a sua paisagem, as pessoas e os respectivos hábitos que é a própria estrada a condicionar ou a desenvolver.

No decursos desses cinco meses confrontei a realidade com a ideia que inicialmente me movera escolher, de forma arbitrária e meramente operacional, um suporte para um trabalho que olhasse sincera e conscientemente para o país. Que além de aceitar as suas diferenças, também as entendesse como razão de ser desta estrada e, consequentemente, deste livro.

Assim, fotografei a cores, com uma objectiva normal, sempre a partir da berma da estrada ou de edifícios que a bordejavam, ordenando, clara e directamente, as fronteiras do olhar, dentro das quais i inexplicado encontrasse espaço para se expor.

É deste equilíbrio de forças, desta justaposição. Que provirá uma catarse, em insuficientemente e tardia, mas indispensável para a obtenção de uma redenção. Uma redenção moral.

VELHOS RECORTES


Um recorte do semanário de que não foi guardada a data, sabe-se pelo texto que foi um qualquer Agosto do tempo  em que o efémero semanário O Ponto foi publicado.

Um excelente e diversificado naipe de jornalistas, quase nata-da-nata, da classe. 

Todas as semanas, figura de proa da nau, eram as entrevistas do Baptista-Bastos que, em Abril de 1984, a Relógio d’Água publicou em livro.

Do prefácio do Baptista-Bastos:

«Estas entrevistas (e mais cinquenta) foram publicadas no semanário O Ponto, nascido de um singelo sonho de liberdade e acalentado por um grupo de jornalistas que de seu só possuía a honra jamais hipotecada e a ingénua convicção que as palavras (sempre se recusa, sempre de protesto, sempre exaltantes) poderiam ser integradas na grande voz colectiva e aceites pelas minorias sem voz. O Ponto foi um jornal arrebatadamente jovem, truculento, vitalizante, diferente – sobretudo porque admitiu, compreendeu e defendeu o direito à diferença»

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE

Será das alterações climáticas, até a silly season mudou de calendário.

Como não recordar com saudade as famosas revelações de Lili Caneças feitas em Julho de 2011 ao jornalista André Rito durante uma conversa que terminava com o inesquecível diálogo: “Obrigado, Lili, foi um prazer”, ao que ela respondia: “Obrigada, eu. Não se esqueça de pagar o meu sumo”. Ou a carta de alforria assinada por Assunção Cristas no mesmo ano, uma iniciativa de nome “Ar Cool” que libertava os funcionários do Ministério da Agricultura e etc. das grilhetas da gravata. Ou o “brincar aos pobrezinhos na Comporta”, gosto confessado por Cristina Espírito Santo no Verão de 2013 e pelo qual pediria desculpa, ainda as desculpas não estavam tão baratas como hoje.

Dito isto, acrescente-se que no Evereste do disparate estival mantém-se a transformação do Algarve em ALLgarve, ideia que terá surgido em 2007 a Manuel Pinho, então ministro, hoje preso domiciliário numa quinta de três hectares perto de Braga (com o senão do raio coberto pela pulseira electrónica o impedir de dar um pulo à vinha ou à piscina), durante uma noite de insónia em que a visão de charters a abarrotar de turistas culturais a invadir o Sul – como o próprio adjectivo indica, vindos não pelas praias ou sequer pelo peixe grelhado, mas para ouvirem declamar poemas de Nuno Júdice ou ler excertos de Lídia Jorge – o leva a telefonar de imediato ao publicitário Pedro Bidarra, que aplaude ruidosamente, sem consideração pelos vizinhos dado o adiantado da hora, o “glamour aspiracional” do trocadilho, traduzido depois nuns cartazes e numas cenas que nos ficaram pela bagatela de nove milhões de euros.

Ana Cristina Leonardo de uma crónica no Público

CANÇÃO DA PACIÊNCIA

 

Muitos sóis e luas irão nascer
Mais ondas na praia rebentar
Já não tem sentido ter ou não ter
Vivo com o meu ódio a mendigar

Tenho muitos anos para sofrer
Mais do que uma vida para andar
Beba o fel amargo até morrer
Já não tenho pena sei esperar

A cobiça é fraca melhor dizer
A vida não presta para sonhar
Minha luz dos olhos que eu vi nascer
Num dia tão breve a clarear

As àguas do rio são de correr
Cada vez mais perto sem parar
Sou como o morcego vejo sem ver
Sou como o sossego sei esperar

José Afonso do álbum Como se Fora Seu Filho

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


Um homem cuida morrer pela Pátria quando apenas morre para encher as algibeiras dos industriais e dos banqueiros.

Anatole France

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.

OLHAR AS CAPAS


Baudelaire

Jean-Paul Sartre

Tradução: Pedro Bom

Colecção: Estudos e Documentos nº 37

Publicações Europa-América, Lisboa, Maio de 1966

«Não teve a vida que merecia.» Dir-se-ia que a vida de Baudelaire foi uma magnífica ilustração desta consoladora máxima. Não merecia, sem dúvida, aquela mãe, aqueles perpétuos embaraços, aquele conselho de família, aquela amante mesquinha, nem aquela sífilis – e que pode haver de mais injusto do que o seu fim prematuro?

CONVERSANDO

 Não tem telemóvel.

Parte da sua serenidade, ia escrever felicidade mas a palavra certa é serenidade, provém desse pormenor.

Nos transportes públicos ainda transporta, debaixo do braço, um jornal/revista, um livro, rodeado de cidadãos com telemóvel por todos os lados.

José Miguel Júdice escreve, hoje, no Diário de Notícias, como editorial, um interessante texto:

 «Há hoje quase 15 milhões de telemóveis em Portugal (14.906.434, para ser rigoroso, no ano passado). Falamos ao telefone com uma tagarelice que contraria aquela imagem do país sisudo e triste do antigamente. Se temos ou não alguma coisa interessante ou criminalmente inculpadora para dizer, fica ao critério de cada um, mas o facto é que, no ano passado, cada português falou 51 horas ao telemóvel. É uma média, claro, tem de se admitir que se há quem tenha sempre qualquer coisa para dizer, como o Prof. Marcelo, também há quem não tenha nada. E é um progresso. Em 1990 ainda os telemóveis eram poucos, cada um falava, em média, 21 horas por ano ao telefone.

Com o telemóvel tudo mudou. Quase triplicou. Hoje, o número de horas que os portugueses passam ao telefone por ano é de 510 milhões. 510.000.000. Para aqueles que têm alguma dificuldade com tantos milhões, incluindo ministros das Finanças e banqueiros, podem-se pôr as coisas de um modo mais simples. Há 510 milhões de horas, ainda havia mamutes a pastar no Alentejo e entre os nossos antepassados neandertais agitava-se um movimento político que urrava chega à invasão de homo sapiens, imigrantes ilegais que vinham ocupar as nossas cavernas e comer os nossos javalis.

Reduzidas assim às suas proporções, 15 mil escutados por ano num país de tagarelas nem é muito. Um pouco mais de esforço, por favor.»

A ILHA


Tanta palavra para chegar a ti, 
tanta palavra, 
sem nenhuma alcançar 
entre as ruínas 
do delírio a ilha, 
sempre mudando 
de forma, de lugar, estremecida 
chama, preguiçosa 
vaga fugidia 
do mar de Ulisses cor de vinho. 


Eugénio de Andrade O Ofício de Paciência em Poesia


domingo, 19 de novembro de 2023

POSTAIS SEM SELO


Silenciosamente, as bibliotecas invadiram o mundo.

Irene Vallejo em O Infinito Num Junco

 Legenda: Livraria Lello no Porto, imagem tirada da Wikipédia.   

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

NOTÍCIAS DO CIRCO

Portugal é um enorme buraco e não se consegue vislumbrar qualquer ponta de retorno que permita que nos tornemos um país, minimamente decente.

Para além de outras coisas, péssimas coisas, Ricardo Araújo Pereira põe um dos dedos nas muitas feridas que nos rodeiam:

«Portugal abusa na bandalheira e André Ventura ganha com este lamaçal. Isso é imperdoável.»

1.

António Costa é um dos políticos mais experientes do círculo português mas custa a crer como se rodeou de ministros e colaboradores que deixam, em todos os sentidos, muito a desejar.

Por causa do ministro João Galamba arranjou uma guerra tão estutúpida, como inútil, com o Presidente da República que sempre entendeu que Galamba não tinha condições para ser ministro e António Costa insistiu em mantê-lo.

Agora o ministro das Infraestruturas apresentou um pedido de demissão do cargo ao primeiro-ministro. Na última sexta-feira, na Assembleia da República, o governante tinha afastado este cenário, mas justifica agora a decisão como a "única possível" para assegurar à família a "tranquilidade e discrição a que inequivocamente têm direito", isto apesar de entender que "não estavam esgotadas as condições políticas de que dispunha" para exercer funções.

 «O trabalho feito, os seus bons resultados e o desempenho das minhas funções com absoluto respeito pela lei e com total dedicação ao País e aos portugueses são, em meu entendimento, as condições políticas necessárias para o desempenho de funções governativas", defendeu, num comunicado em que alerta também que esta demissão "não constitui uma assunção de responsabilidades quanto ao que pertence à esfera da Justiça e com esta não se confunde".»

António Costa acumulará o cargo de ministro das Infraestruturas.

 2.

 Tão cedo não iremos saber o que se passou com Mário Centeno, António Costa e Marcelo rebelo de Sousa. Apenas ressalta que é um péssimo número que nos deixa no meio da risota do circo, nacional, europeu, talvez mundial.

 3.

O jornalista Pedro Tadeu perguntava, ontem, no Diário de Notícias se podemos confiar no Ministério Público:

«A pergunta que deixo é esta: Não podendo, nem devendo, a política meter-se no trabalho da Justiça, que penalizações a própria Justiça aplicou aos responsáveis por erros, omissões, incompetências, demoras, desleixos, teimosias e atropelos ao bom senso que, como é evidente, sempre que um caso é mediático, sistematicamente os investigadores judiciais cometem?... Que fizeram sobre isso, por exemplo, o Conselho Superior do Ministério Público ou o Conselho Superior da Magistratura?

E já nem falo das violações de segredo de justiça que, em todos estas situações, aconteceram e que arruinaram a reputação pública de alguns inocentes.

Se o Ministério Público quer que confiemos nele, tem de fazer Justiça a si próprio.»

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 Uma das muitas autobiografias de Jorge Listopad.  Pode ler-se na contra capa de A Biografia de Cristal.

OLHAR AS CAPAS


Biografia de Cristal

Jorge Listopad

Capa: Fernando Mateus sobre gravura do pintor David de Almeida

Relógio de Água Editores, 1992

Encontrei a minha irmã, a mana, Alena, que há vinte anos não via. Era outra vez pequenina, com bochechas, os cabelos encaracolados e mais loiros do que os meus porque costumava lavá-los numa infusão de camomila, e eu com champô ocidental. Olhava-me, com a boca ligeiramente aberta, depois pôs-se a chorar, chorámos ambos, e eu acabei pr perguntar: “Jak se ti vede, milácku?” Perguntei-o entre soluços.

Mostrei-lhe Évora, e admirou o granito, mostrei-lhe a estrada que passa por cima da Malveira da Serra, descemos do velho Citroen, uma arrastadeira que resvalava pela areia no cabo da Roca, o sol descia, alaranjava, e a minha irmã, a Alena, desenhou uma macaca e, atirando a pedrinha, saltou até ao céu e ao inferno, naquela abóboda onde o jogador tem de dar uma volta de 180º.

Depois levei-a ao aeroporto cheio de balões coloridos, um deles esperava-a, subiu ao cesto, o balão estremeceu e iniciou o voo. Dizia adeus com a mão, sempre mais pequenina e, logicamente, desaparecemos.

ODE PARA O FUTURO

Falareis de nós como de um sonho.

Crepúsculo dourado. Frases calmas.

Gestos vagarosos. Música suave.

Pensamento arguto. Subtis sorrisos.

Paisagens deslizando na distância.

Éramos livres. Falávamos, sabíamos,

e amávamos serena e docemente.

 

Uma angústia delida, melancólica,

sobre ela sonhareis.

 

E as tempestades, as desordens, gritos,

violência, escárnio, confusão odienta,

primaveras morrendo ignoradas

nas encostas vizinhas, as prisões,

as mortes, o amor vendido,

as lágrimas e as lutas,

o desespero da vida que nos roubam

- apenas uma angústia melancólica,

sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

 

E, em segredo, saudosos, enlevados,

falareis de nós - de nós! - como de um sonho.

 

Jorge de Sena