segunda-feira, 12 de maio de 2025

POEMAS AUTOGRAFADOS


O Poema Autografado pertence, hoje, a José Fernandes Fafe.

É o nº 11 da Colecção Poetas de Hoje, editada pela Portugália Editora e chama-se Poesia Amável.

Já fomos dizendo que a maior parte dos volumes desta Colecção tem a abrir um prefácio. Curiosamente, José Gomes Ferreira, escolhido para fazer o prefácio do livro de José Fernandes Fafe, escreve:

«Por Minerva! um livro destes não necessita de prefácio! Merecia aparecer sozinho na sua simplicidade de sorriso colado, por escândalo, nos dentes podres da caveira dos tempos. Sim, orgulhosamente sòzinho.

Porém, segundo parece, a organização interna da Colecção Poetas de Hoje exige a implacável inclusão dum prefácio.»

O poema escolhido por José Fernandes Fafe como autógrafo, chama-se:

 

Os Nossos Jardins Suspensos

 

Os nossos jardins suspensos

São estas mulheres:

 

Carregam à cabeça

cestos densos de lírios,

maravilhas, malmequeres…

 

José Fernandes Fafe, para além de poesia e romance foi autor da biografia de Ernesto Che Guevara, editada em Itália, pela Mondadori, em 1968, sob o pseudónimo de David Alport.

Após o 25 de Abril foi embaixador de Portugal em Cuba, mais tarde também embaixador no México, Cabo Verde e Argentina.

Os poemas de Fafe não poderiam deixar de ser outra senão o serem Amáveis.

Como nota o Zé Gomes Ferreira:

«Como vêem, o segredo é fácil e José Fernandes Fafe decifrou-o, despremeditado, de rua em rua, mãos nas algibeiras, a assobiar e a sorrir. (Com a caveira a doer-lhe por dentro, claro.).

A poesia não o larga nunca. Nem na cadeira do barbeiro, ave de tesoiras… E muito menos nas andanças pelo planeta. Segue-o por toda a parte, de braços enrolados no pescoço a segredar-lhe improvisos (talvez laboriosamente fabricados. Sabe-se lá o que se passa nos laboratórios secretos dos artistas!).»

Mais ainda:

«Não, não é por coincidência que o primeiro poema de Poesia Amável é um Salmo à manhã. Nem por acaso que, no belo fecho do livro, surge este verso tão revelador:

A minha casa fica na Manhã»

Transcrevemos todo o poema:

 

Estas palavras são a casa dum louco.

Anda lá dentro um

e a falar só…

 

Este papel branco é a luz calcárea

os cegos acordeonistas de Lisboa…

 

A minha casa fica na Manhã.

 

Todos os dias a destroem,

Todos os dias a reinvento.

 

A minha casa é o Amor.

 

A minha casa é a Liberdade.

MARCADORES DE LIVROS


 Colaboração de Aida Santos.

À LUPA

Em 1996, o professor Cavaco Silva, então primeiro-ministro do reino, perguntava:

«Devemos subsidiar a ópera, se os indivíduos não vão à ópera e preferem os concertos da Tina Turner?»

NOTÍCIAS DO CIRCO


«As responsabilidades assumidas pelo grupo Montepio para pagar um bónus a 65 membros de órgãos sociais, no activo, já reformados ou exonerados, na forma de pensão vitalícia, para o qual nenhum contribuiu ou contribuirá, já se aproximam dos 30 milhões de euros. Trata-se na prática de uma regalia oferecida pelos 610 mil mutualistas a gestores da associação, do Banco Montepio e da Montepio Valor, a maioria sem vínculo profissional ao grupo, que cria pressão adicional sobre a sua solidez e retira rendimentos aos associados que aplicam as poupanças na maior instituição da economia social do país.

Bónus vitalício no Montepio já chega a 65 gestores e custa 30 milhões
Faz alguns anos que a regra dos 5% sobre a última remuneração bruta por cada ano de trabalho, conhecida hoje no Montepio como a “pensão dourada dos gestores”, entrou em vigor. Há mais de quatro décadas. Numa época em que, tradicionalmente, os cinco executivos do grupo Montepio, eleitos em assembleia-geral, provinham do Banco de Portugal e de outras entidades públicas, já reformados. E passavam a exercer o cargo mediante uma compensação monetária que lhes era paga pela associação mutualista.»

Cristina Ferreira no Público de hoje

JUNTO À ÁGUA

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

 

Manuel António Pina de Um Sítio Onde Pousar a Cabeça em Poesia, Saudade da Prosa

domingo, 11 de maio de 2025

POSTAIS SEM SELO


«A matemática é a linguagem, a escrita que Deus usou para escrever o mundo»

Frase atribuída a Galileu Galileu

À LUPA

 A Lupa que, apanha frases, pequenas histórias, hoje estendeu-se um pouco para o além. O além é um muito interessante artigo de Bárbara Reis, publicado no Público de 10 de Maio - O Papa matemático: o que tem Deus que ver com números?

Interessantes também, alguns dos mais de 40 comentários que os leitores quiseram deixar.


Citações de Bárbara Reis:

«Não fiquei maravilhada, mas aviso que não vou sequer tentar explicar porque é que, tendo o ateísmo como único pedigree, dei por mim comovida ao ouvir em directo a frase "Habemus Papam".
Há cinco séculos que a frase é precedida por “eu vos anuncio uma grande alegria” e o facto é que, ainda sem saber quem era o sucessor de Francisco, fiquei alegre.
Ora, isto não faz sentido. Porque é que sinto alegria e comoção com o anúncio de um novo Papa? Tem que ver com o ritual e tudo isso, com certeza. Talvez também, hoje mais do que no passado, tem que ver com o legado de Francisco, que transformou a vida de homossexuais e divorciados crentes que, com ele, passaram a sentir que têm um lugar à mesa.»

Comentário de um leitor:

«Está enganada Bárbara Reis. A pergunta não é “o que fez o jovem padre Robert Prevost licenciar-se em Matemática?. A pergunta correcta é o que leva um jovem matemático a fazer um mestrado em Teologia e decidir ser padre?»

Um outro comentário:

«Em matéria de Deus e de religiões, prefiro ater-me à máxima do ateu e prémio Nobel da Literatura, José Saramago: Deus não existe; até porque, se existisse, seria um ser malévolo. Eu concordo: que Deus todo poderoso e amante de todos permitiria toda a miséria e sofrimento que assolam as suas criaturas?»

SARAMAGUEANDO


 «Para Saramago, a vida sucedeu como no interior de um labirinto. Ele o disse, nas Intermitências da Morte: «labirinto sem portas. Ora aí está uma excelente definição da vida» , «como já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível».

Do prefácio a As 7 Vidas de Saramago.

 

Porque os autores referem citações, uma de As Intermitências da Morte e outra de A Viagem do Elefante, entendemos de interesse ir busca-las aos livros e coloca-las aqui:

«Viver aqui, o que se chama viver, não vivo, Não entendo nada, falar consigo é o mesmo que ter caído num labirinto sem portas, Ora aí está uma excelente definição da vida, Você não é a vida, Sou muito menos complicada que ela, Alguém escreveu que cada um de nós é por enquanto a vida, Sim, por enquanto, só por enquanto,»

As Intermitências da Morte de José Saramago, pág. 205

«Como já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível.»

A Viagem do Elefante de José Saramago, pág. 239

«…o mais provável é termos a 19 de maio um Parlamento com os mesmos problemas de governabilidade daquele que tivemos no último ano. Se assim suceder, concluiremos que o país se encontra politicamente congelado e que as eleições estavam, no essencial, decididas à partida. Dezenas de horas de debates, centenas de comentários, páginas sem fim de análise e, afinal, há uma certa persistência da realidade, que teima em nos dar sinais que se impõem ao ruído.»

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Avançamos um pouco mais no prefácio que Miguel Real e Filomena Oliveira ser útil escrever para o seu livro: As 7 Vidas de José Saramago.

A pág. 23 os autores fazem o realce que sempre acompanhou Saramago, desde a adolescência ambicionava: escrever. E é a escrita que lhe salva a vida, concluem.

«Fracassado como serralheiro e empregado de escritório (que só a pobreza o obrigou a ser), como editor, tradutor, jornalista e político, encontra realização aos 60 anos naquilo que desde a adolescência sempre desejara: ser escritor. O sucesso dos seus livros, harmonizando um ideal de justiça social com personagens encantatórias e uma escrita radicalmente transgressora, reinventando esteticamente a realidade, torna-o conhecido no mercado editorial nacional, iniciando-o também no internacional. É a narração de uma vida heterodoxa de Jesus, um Cristo humano, só humano, que consolida a sua revelação ao mundo (e assim é derrubada, perto dos 70 anos, a sexta muralha de Josephville: ser um escritor internacional). Finalmente, censurado pelo Estado, isola-se numa ilha com o seu novo amor, só conhecido aos 64 anos, e, solitário, redige um dos melhores romances do século xx numa mesa de pinho de pés roídos pelos seus três cães, descrevendo, à semelhança dos cegos de Bruegel, o estado da humanidade — cegos seguindo outros cegos em direção ao abismo —, livro que o encaminha para a obtenção do Prémio Nobel da Literatura em 1998 (sétima muralha conquistada: afinal, Josephville, criada através de livros, não era uma cidade onde se sentisse bem, harmonizado com os outros, era o mundo inteiro).

Para Saramago, a vida sucedeu como no interior de um labirinto. Ele o disse, nas Intermitências da Morte: «labirinto sem portas. Ora aí está uma excelente definição da vida» , «como já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível» . No seu caso, a chave do labirinto (a escrita) estava lá, sempre esteve, mas a porta não se deixou abrir até ao ano de 1980. A imagem do labirinto que exprime nos romances, ele o experimentou na própria vida. Nunca a sua vida desenhou uma linha reta e Saramago universaliza o confuso sentimento de desorientação na vida até à década de 80, experimentando diversas formas de existência. De fracasso em fracasso, batendo a uma porta fechada ou a várias ilusórias, compensado pela ascensão social de membro do operariado à burguesia intelectual jornalística, em 1980, com 58 anos, Saramago era, para todos os efeitos, um derrotado da vida: um fracassado social (não tinha profissão com rendimento certo, não tinha emprego fixo senão o expediente da tradução), político (a revolução socialista, em que participara como protagonista, falhara), e literário (era um escritor mediano, que os grandes editores não desejavam nos seus catálogos, experimentando por três vezes a rejeição de editores).

A elite política e intelectual da cidade repudiava-o, anatematizando-o como, mais do que comunista, um radical. Ele ousara forçar os portões da cidade: crescido no Estado Novo, fora um pobre destinado ao humilde ofício de serralheiro; depois, a seguir à Segunda Grande Guerra, um parvenu, levado por sorte e acaso para uma editora ao serviço de trabalhos de produção; no final da década de 60 afirma-se como cronista e poeta, mais como cronista do que poeta, e torna-se, já na década de 70, um revolucionário, olhado com sobranceria, se não desprezo, pela elite política, jornalística e intelectual.»


Legenda: a ilustração deste e próximos Sublinhados Saramaguianos será feita com recortes dos Dossiers da Biblioteca da Casa sobre José Saramago.

OLHAR AS CAPAS


Prosas Bárbaras

Eça de Queiroz

Introdução: Jaime Batalha Reis

Lello & Irmão Editores, Porto s/d

Lisboa tem ainda meiguices primitivas de luz e de frescura: apesar dos asfaltos, das fábricas, dos gasómetros, dos cais, dos alcatrões, ainda aqui as primaveras escutam os versos que o vento faz: sobre os seus telhados ainda se beijam as pombas: ainda no silêncio, o ar escorre pelas cantarias, como o sangue ideal da melancolia. E Deus ainda não é um poeta impopular. Lisboa que faz? Antigamente a cidade, urbs, era o lugar que pensava e que falava, que tinha o verbo e a luz. Roma criou a justiça, Atenas idealizou a carne, Jerusalém crucificou a alma. Por isso Roma caiu, e os porcos enlameiam os restos de Atenas, e os cães uivam no silêncio de Jerusalém. Os seus olhos olharam muito para a verdade e cegaram: os seus ouvidos escutaram muito o pensamento e ensurdeceram: as suas mãos esculpiram muito o ideal e tolheram-se. Pensar é sofrer; alumiar é lutar. A noite, ao sucumbir, luta com a madrugada, e deixa-lhe a chaga incurável do Sol: dela escorre a luz. As superstições, os preconceitos, os erros, os prejuízos, as fatalidades, lutam com a alma e deixam-lhe a ferida insanável do ideal: dela escorre a verdade. Esta ferida dá a febre, o cansaço, o desespero, a convulsão. Paris tem esta antiga e trágica ferida que teve Atenas, Babilónia e Jerusalém. Sofre porque pensa. Os pés têm a intimidade da lama, as asas têm a camaradagem da luz. Todo o pé quer ser asa.

Daí ambições, desalentos, lutas obscuras, perdições, descrenças. fulgurações do mal, impurezas, traições, invejas, injúrias, torturas – a congestão do espírito! São estas as dores imensas, as nódoas do pensamento, as manchas do Sol. Lisboa não tem estes defeitos da luz: é serena, imperturbável, silenciosa. Quer a sua inviolabilidade, evita as feridas terríveis. Tem a sensatez, a prudência, a economia, o medo. Não quer alumiar, para não lutar, não quer pensar, para não sofrer. Não quer criar, pensar, apostolar, criticar. Escuta e aplaude toda a voz, ou sejam as imprecações sagradas de Danton, ou os versos do poeta Nero. As ondas que solucem, as florestas que se lamentem, ela tem o riso radioso e sereno. 

DITOS & REDITOS


A intimidade que se torna pública não é íntima.

 Levantar a cabeça e pensar no próximo jogo.

Quem come os frutos tem que aceitar a árvore.

Amor à vida é saber ver.

A felicidade não é um direito, é uma obrigação.

As memórias que acomodamos no bolso de trás das calças.

Tudo faz parte de tudo.

O possível é sempre o ideal.

sábado, 10 de maio de 2025

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Um outro volume da Colecção Resistência.

Cada livro que coloco neste Olhar as Capas, mostra-me que muito dificilmente terei oportunidade para revelar os livros que ocupam as prateleiras da Biblioteca da Casa. Os números mostram que já apresentei mais de 2.000. E há muito que não vou Ao Outro Lado das Estantes.

Há muito que não pegava nos livros desta colecção. Foram lidos durante o PREC, quando ainda estávamos repletos de esperança pelos dias que Abril nos trouxera.

Na pág. 68 pode ler-se:

«Não importa o que pensa ou faz um operário -  escreveu Marx -, o que importa, no entanto, é o que os operários, como classe, devem fazer para cumprir a sua missão histórica.»

OLHAR AS CAPAS


Testemunho Sob a Forca

Julius Futchik

Prefácio: Gusta Futchíková
Colecção Resistência nº 5

Edições Avante, Lisboa, Setembro de 1975

Se pensam que as lágrimas vão apagar o triste turbilhão da dor chorem um pouco. Mas não lamentem nada. Vivi para a alegria e morro para a alegria; seria uma injustiça colocarem sobre o meu túmulo o anjo da tristeza. 

À LUPA

«A colagem à Igreja Católica ainda dá votos? Montenegro parece achar que sim
A Igreja Católica já teve uma importância política decisiva, no passado. Talvez a maior de todas tenha sido a mobilização de pessoas que fez em todas as paróquias para que os católicos acorressem ao comício da Alameda, em 1975, convocado pelo PS para pedir a demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves.»

Ana Sá Lopes no Público.

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


 Numa crónica publicada, hoje, no Público, que todos deveriam ler, e verdadeiramente pensar sobre o que lá está escrito, José Pacheco Pereira intitulou-a: A VERGONHA ABSOLUTA!

«E, já agora, não convinha perguntar, em plenas eleições, algo de verdadeiramente importante ao PS, ao PSD, ao CDS, ao Chega, por aí adiante, se, chegando ao Governo, estão dispostos a reconhecer o Estado palestiniano, estão dispostos a impor sanções a Israel e a usar todos os meios ao dispor de um Estado da União Europeia para punir os criminosos? E, para além disso, o que é que eles acham do que se está a passar com as crueldades de Israel em Gaza?

As respostas seriam até uma razão bem mais sólida e moral para decidir o voto.»

sexta-feira, 9 de maio de 2025

REOLHARES


Dois textos, já neste blogue publicados, mas que, nos tempos difíceis que atravessamos, vale a pena REOLHAR:

 

O FINAL DA GUERRA EM LISBOA

 

Não houve qualquer meio de impedir os portugueses de, nos primeiros dias de Maio de 1945, virem para as ruas, euforicamente, festejar a vitória dos aliados face à besta nazi.

Tão pouco isso interessava aos propósitos de hipocrisia neutral de Salazar.

Por isso as tolerou.

Sempre esteve com Deus e com o Diabo.

Tinha eu pouco mais de um mês de vida, mas por esses dias por estas ruas, lá andaram o meu avô e o meu pai.

O meu avô contava que, nas ruas, apareceram bandeiras portuguesas, britânicas, norte-americanas, francesas e… bandeiras do Benfica, habilidade, contava ele, utilizada para representarem a bandeira da União Soviética.

Numa entrevista, de que não tenho indicação de nome e data do jornal, José-Augusto França confirma a versão do meu avô:

«Mais tarde, soube que por cá os meus amigos tinham andado em grandes festas e que se fizeram manifestações a festejar a vitória dos aliados, apareceram uns paus sem bandeira e até bandeiras do Benfica. Eram, evidentemente, a homenagem aos aliados soviéticos, cujo nome não podia ser mencionado.»

José Gomes Ferreira, em Intervenção Sonâmbula, também refere o episódio:

«No entanto, o povo berrava nas ruas a sua alegria com lágrimas e bandeiras (muitos empunhavam apenas paus nus com imaginárias bandeiras vermelhas da pátria dos sovietes), ainda com alguns ingénuos a quererem convencer-se de que a mágica queda do salazarismo aconteceria no dia seguinte.

Quem não dançou, quem não cantou, quem não soltou vivas e morras nessa noite? Mas entre aqueles milhares e milhares de pessoas, recordo-me sobretudo – é curioso como certas imagens sobrenadam na memória em detrimento de outras – recordo-me do Fernando Lopes Graça então 30 anos mais novo, a mancar, com os pés doridos de tanto marchar pelas pedras de Lisboa.


Legenda: fotografia da Fundacionmapfre

 


O FIM DA GUERRA

 

O dia 8 de Maio de 1945 é a data oficial da derrota da Alemanha Nazi na Segunda Guerra Mundial.

Os aliados tinham acordado que o dia 9 de Maio de 1945 seria o da celebração da vitória. Contudo, os jornalistas ocidentais lançaram a notícia da rendição mais cedo do que o previsto.

A União Soviética manteve as celebrações para a data combinada e, ainda hoje, é nesse dia que a vitória é celebrada.

Em Lisboa, milhares de pessoas vieram para a rua vitoriar o fim da guerra.

O meu avô muitas vezes me falou desse dia heróico, da alegria, do entusiasmo dos anti-salazaristas que vieram para a rua com bandeiras inglesas, americanas, e bandeiras do Benfica que, por vermelhas que são, representavam a União Soviética, também presente em paus sem qualquer bandeira.

Nunca tive a confirmação da história das bandeiras do Benfica, de que o meu avô falava, estarem presentes nas manifestações.

Quando pedia uma confirmação ao meu pai, apenas recebia um sorriso.

Passei a ligar o eventual acontecimento aos entusiasmos do meu avô que, normalmente, se apresentava às pessoas como republicano histórico, benfiquista e anti-clerical.

Das bandeiras do Benfica não encontrei escritos, mas das bandeiras sem pau, acabei por encontrar.

Fazem parte da primeira história de O Mundo e os Outros do José Gomes Ferreira:

«Hoje, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, acabou na Europa a segunda guerra mundial. «Até que enfim!» - zumbiu a meu lado a voz melíflua dum cavalheiro de olhos acendidos de entusiasmo, de conjuntivite e lugar-comum.
«Até que enfim!», concordei eu, confuso de alegria, saltando do eléctrico para me embeber numa multidão ruidosa com bandeirinhas nas mãos, nas tranças das garotas, nos gritos dos cortejos – Vitória! Vitória – e nos paus de vassoura sem bandeiras«.

No dia 8 de Maio de 1945 eu tinha 50 dias.

Legenda: Quem se encostar à barra mansa do British-Bar e olhar a estante das garrafas, verá esta fotografia.
No dia 8 de Maio de 1945, a fachada do BB ostentava as bandeiras norte-americana, portuguesa e britânica. A outra não está.


(Em Reolhares vamos publicando textos publicados, nos últimos 15 anos no Cais do Olhar.)

À LUPA


«Leio livros maus uns atrás de outros: a quantidade de tralha que se imprime deixa-me de boca aberta. O que pensarão os autores destas das bodegas que fizeram.»

António Lobo Antunes em Crónicas, 5º volume

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Marxista-leninista que sempre foi, o meu pai, logo após o 25 de Abril, começou a comprar uma série de livros que revelavam as lutas dos diversos países contra as ditaduras com que tiveram de lutar para chegarem à Liberdade. Um desses casos foi esta colecção publicada pelas Edições Avante, em cujo 1º volume encontramos o Até Amanhã, Camaradas de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal.

OLHAR AS CAPAS


Os Dias da Nossa Vida

Marina Sereni

Prefácio: Ambrogio Donini

Desenho da capa: Renato Guttuso

Colecção Resistência nº 9

Edições Avante, Lisboa, Março de 1978

Sentada à mesa da cozinha, em frente da mãe, Marina comia sem vontade. Apercebera-se logo de que a mãe estava inquieta, como se tivesse algo de muito interessante para contar e tivesse dificuldade em conter-se. Mas Marina não tinhga qualquer interesse em saber do que se tratava; o mundo da mãe desde há muitos anos que deixara de lhe interessar; o que mais apreciava naquele momento era o facto de a mãe, sem dúvida distraída pelos seus pensamentos, deixara de lhe repetir as frases habituais - «come mais um bocado de queijo! porque é que não comes outro ovo?» -, frases que lhe provocavam surda irritação que infalivelmente lhe conseguia tirar o apetite.

GOSTO DAS PALAVRAS EXACTAS

Gosto das palavras exactas, as que acertam
com o centro das coisas, e quando as encontro
é como se as coisas saíssem de dentro delas.

Essas palavras são duras como os objectos
que designam, pedra, tronco, ferro, o vidro
de espelhos quebrados com o calor da tarde.

Tento incendiá-las quando escrevo, como se
o fogo saísse de dentro da frase, e se espalhasse
pelo campo da página numa devastação de sílabas.

Então, atiro sobre as palavras outras palavras,
água, pó, terra, o ar seco do verão, para que a voz
não fique queimada nesta paisagem negra.

Recolho os restos, os adjectivos, os advérbios,
artigos, preposições, para que só as palavras que indicam
as coisas fiquem no lugar que já tinham.

Pouco importa que as frases percam o sentido. O
que fica são os nomes das coisas, para que as coisas saiam
de dentro deles e as possamos ver nos seus lugares.

Nuno Júdice

quinta-feira, 8 de maio de 2025

PAPA LEÃO XIV

Não deixou de ser uma surpresa a nomeação do cardeal norte-americano Robert Francis Prevost, para suceder a Francisco, tendo escolhido ser Leão XIV.

Seria muito difícil a Igreja escolher um outro Francisco, mas também não caiu no conservadorismo.

Provavelmente, as janelas abertas por Francisco não se fecharão, mas outras, porventura, não serão abertas.

A Igreja está cheia de problemas, problemas da mais diversa ordem, em que ressaltam, um pouco por todo o mundo eclesiástico, os abusos sexuais das crianças, a que muitos cardeais e bispos continuam a fechar os olhos.

A Leão XIV apontam-se sinais progressistas, seja lá o que isso, dentro da Igreja possa ser, ao mesmo tempo que não se conhecem, a Francis Prevost, qualquer simpatia pelo trumpismo, mas Donald Trump, por causa das moscas, não deixou de declarar:

«Parabéns ao cardeal Robert Francis Prevost, que acaba de ser nomeado Papa. É uma grande honra saber que ele é o primeiro Papa norte-americano. Que emoção e que grande honra para o nosso país. Estou ansioso por conhecer o Papa Leão XIV. Será um momento muito significativo!»

 

O OUTRO LADO DAS CAPAS


Talvez um livro que à primeira vista não deveria ser apresentável.

No entanto tem o seu interesse histórico dado que Irene Flunser Pimentel é uma historiadora, militante de esquerda, do período contemporâneo da nossa História, especialmente no que à Pide, o Estado Novo e consequentemente todos os acontecimentos e figuras desse período histórico, com especial incidência no Partido Comunista Português.

Em 2007 foi galardoada com o Prémio Pessoa, anualmente atribuído pelo jornal Expresso.

O meu pai dizia que se deve ler tudo, mesmo o que parece não merecer qualquer atenção.

Numa terça-feira de Feira da Ladra, o livro, juntamente com uma quantidade larga de outros livros, jornais e revistas, estava espalhado no chão.

O jovem vendedor pediu 5,00 euros. Não regateei sequer.

É um livro bem interessante, discutível em alguns e diversos pontos mas acabando por dar à filosofia do meu pai.

OLHAR AS CAPAS


Biografia de um Inspector da Pide

Irene Flunser Pimentel

A Esfera dos Livros, Lisboa, Outubro de 2008

Fazer uma biografia de Fernando Araújo Gouveia, elemento importante de PVDE/PIDE/DGS, polícia política do Estado Novo, pode parecer estranho. Haverá mesmo quem diga que fazer uma biografia é dar importância ou até enaltecer o sujeito biografado e que alguém tenha cometido violência sobre os outros ou crimes deveria ser remetido ao silêncio. Outros poderão aventar que o propósito é escandaloso e chocante para algumas das vítima desse conhecido inspector, elemento preponderante dos Serviços de Investigação da polícia política, que torturou inúmeros resistentes ao regime ditatorial, em particular comunistas.

Penso orém de outra forma. 

ESTOU CABSADO, É CLARO

Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto —

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente: eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

 

Álvaro de Campos em Poesias

quarta-feira, 7 de maio de 2025

OLHAR AS CAPAS


E Agora Que Fazer?

3º Volume

Coordenação e Introdução: Orlando Neves

Capa: Dorindo Carvalho

Diabril Editora, Lisboa, Maio de 1976

Quando em 25 de Abril de 1974, um grupo de militares com o apoio maciço do povo português derrubou a ditadura salazarista-marcelista, por muitas discussões que o programa do MFA suscitasse, a verdade era que se abria a Portugal um hipótese de processo revolucionário. Estes dois anos vieram revelar que as hesitações nesse processo, fizeram com que em Maio de 1976, se tenha seriamente de pôr em questão a existência, algum dia, de uma Revolução em Portugal originada nesse primeiro 25 de Abril.