sábado, 13 de abril de 2024

O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?

O Luís Miguel Mira já nos prometeu que irá voltar às crónicas de viagens mas, por agora, anda entretido a divulgar grandes filmes, todas as quartas-feiras, pelas 15,30 horas na:

Nova Atena
Universidade Senior
Rua Almeida Garrett, 20
Linda-a-Velha

Na próxima quarta-feira, dia 17 de Abril, é a vez de O Fantasma Apaixonado de Joseph L. Mankiewicks, rigorosamente a não perder.

                                      O FANTASMA APAIXONADO (1947)

                                              (The Ghost and Mrs. Muir))

 

Realização:      Joseph L. Mankiewicz

Argumento:     Philip Dunne, com base num romance de R. A. Dick 

Montagem:     Dorothy Spencer 

Fotografia:       Charles Lang  

Música:             Bernard Herrmann             

Direção Artística:  Richard Day e George W. Davis

Interpretação:    Gene Tierney (Lucy Muir), Rex Harrison (o fantasma do Capitão Gregg), George Sanders (Miles Fairley), Edna Best (Martha), Vanessa Brown (Anna Muir adulta), Natalie Wood (Ana Muir criança), Isobel Elson (Angelica, a sogra), Victoria Horne (Eva, a cunhada), Robert Coote (Coombe), etc       

Produção:       Fred Kohlmar, para a 20th Century Fox    

Duração:     104 mn

 

Aqueles de melhor memória lembrar-se-ão, certamente, que ainda há muito pouco tempo vos falei aqui de Joseph Mankiewicz, a propósito de “Os Três Camaradas”. Era ele o produtor com quem Francis Scott Fitzgerald se zangou, acusando-o de ter destruído o argumento que ele escrevera para esse mesmo filme.

Mas antes de ser produtor para a Metro Goldwin Meyer, entre 1935 e 1942, já Mankiewicz fora argumentista, primeiro na Paramount, na qual entrou em 1929 pela mão do seu irmão mais velho Herman, igualmente argumentista de muito sucesso àquela época (quem tiver visto na Netflix o filme “Mank”, de David Fincher, lembrar-se-á dele…), e depois já na própria MGM entre 1933 e 1935, antes de ter ascendido a produtor.

Como realizador, Mankiewicz teve uma brilhante estreia em 1946 com “O Castelo de Dragonwyck, e viria a realizar um total de vinte filmes entre essa data e 1972.

Talvez alguns de vós se lembrem de “A Condessa Descalça”, de 1954, mas seguramente que todos se recordarão de “Cleópatra”, realizado em 1963 e interpretado pelo casal/vedeta daqueles tempos, Elizabeth Taylor e Richard Burton.

Quando morreu, em 1993, tinha Mankiewicz quatro Óscares na sua estante, que lhe vieram aos pares em dois anos consecutivos: em 1950 pela melhor Realização e pelo melhor Argumento de “Carta a Três Mulheres”, e no ano seguinte idênticos prémios por “Eva”.     

E passemos, então, a “O Fantasma Apaixonado”.

Ao ver de novo este velho filme, que já não revia há alguns anos, dei comigo a pensar nesta estranha coincidência…

Programei, muito próximos um do outro, dois filmes de “fantasmas apaixonados” que acabam ambos quase de forma idêntica, com os fantasmas a virarem-nos as costas e a partirem através do nevoeiro não se sabe bem para onde, mas seguramente que para lá onde o seu amor surreal continuará a ser possível, contra tudo e contra todos.

Feliz coincidência.

Ou talvez não…

Talvez que eu goste muito dessa ideia de fantasmas apaixonados.

Mas adiante…   

O filme inicia-se em Londres nos primeiros anos do Séc. XX e conta-nos a história de Lucy Muir, uma jovem e bonita viúva que, cansada da vida citadina e - percebemo-lo rapidamente … - farta de aturar a sogra e a cunhada com quem vivia, decide mudar-se para Whitecliff-By-The-Sea, um lugar à beira-mar no Atlântico, levando consigo Anna, a sua filha de tenra idade, bem como Martha, a sua fiel empregada doméstica. 

Com grande relutância do Sr. Coombe, promotor imobiliário local, Lucy insiste em alugar “Gull Cottage”, uma casa antiga situada mesmo por cima da praia, onde antes vivera (e, alegadamente, se suicidara) o Capitão Daniel Gregg, seu antigo proprietário, mesmo depois do Sr. Coombe ter procurado insistentemente dissuadi-la, garantindo-lhe que coisas muito estranhas haviam ocorrido nessa mesma casa a quem antes a tinha tentado alugar.

De facto, logo numa das primeiras noites, Lucy recebeu a visita do fantasma do Capitão, que lhe contou a sua história e, comovido pela forma como Lucy se prendera de amores pela casa, apesar de todos os conselhos em contrário, aceita mantê-la durante um período experimental, embora desde logo a avise que o seu verdadeiro desejo é o de transformar a casa em lugar de asilo para velhos marinheiros aposentados. 

Essas visitas passam a repetir-se frequentemente ao ponto de uma certa cumplicidade amorosa se ter vindo instalar entre eles.

Pouco tempo depois de se ter mudado Lucy recebe a visita da sogra e da cunhada que, com indisfarçável satisfação, lhe transmitem a notícia de que ela se encontra arruinada, uma vez que a mina de ouro que herdara de seu marido e de cuja atividade provinham os seus rendimentos, se esgotara e fora definitivamente encerrada.

O risco de ser posta na rua por falta de pagamento das suas rendas era grande, mas Lucy, nada interessada em corresponder aos ostensivos cortejos que o Sr. Coombe lhe fazia, acaba por, com a cumplicidade do fantasma, encontrar uma solução que lhe permitirá não só pagar as suas rendas em atraso, como, também, comprar a própria casa. Com a ajuda do Capitão Gregg, escreve as memórias deste e o livro é aceite por um editor londrino, que logo antevê nele um grande sucesso literário.

Na mesma editora, Lucy encontra um elegante e galanteador escritor de livros para crianças conhecido por Uncle Neddy, mas que na verdade se chama Miles Fairley. Lucy não resiste à sedução e aos avanços de Fairley e aceita a sua proposta de casamento, o que faz com que o fantasma do Capitão dela se venha nessa mesma noite despedir, com a promessa de não mais a incomodar.

Mas as coisas não correm de feição para Lucy que, ao pretender visitar Fairley de surpresa na sua residência londrina, vem a descobrir que não só ele já era casado, como também pai de duas crianças, dando-lhe a mulher a entender que comportamentos sedutores dessa natureza também já ele os tinha tido com muitas outras mulheres, antes dela.

Perante tamanha desilusão, nada mais resta a Lucy senão regressar a Gull Cottage e deixar o tempo passar.    

Bela e triste história, esta de Mrs. Muir…

Pelo sonho é que vamos, dizia Sebastião da Gama, e foi pelo sonho que Mrs Muir foi…


Desde muito nova confundiu o sonho com a realidade. Tinha lido num livro que dois apaixonados se beijaram num jardim e viveram felizes para sempre, e assim, quando aos 17 anos se viu ela própria beijada no pomar de sua casa, Mrs. Muir embarcou no sonho pela primeira vez…

Não saberemos porquê, mas enviuvou muito cedo e o tempo de casada não lhe deve ter deixado doces memórias.

Quanto ao nascimento da filha, não foi mérito seu, mas, segundo confessa, algo que lhe aconteceu…

Da companhia da sogra e da cunhada, então nem se fala…

Do mar - conta-nos ela mais tarde - nada sabia a não ser que era romântico, e assim, no meio sufocante onde vivia, não é de estranhar que Mrs. Muir tenha desenvolvido um tão grande desejo nostálgico pela costa, lá onde as ondas rebentam na praia e as gaivotas esvoaçam pelos ares.

E com uma tão grande apetência pelo sonho, também não será de admirar que Mrs Muir se tenha sentido, de imediato, atraída pela casa, pela sua decoração e pela ideia de vir a ter um fantasma por companhia.

Depois, tal como Alice, passou para o outro lado do espelho e por lá navegou, noites sem fim.

Pensou Mrs. Muir que esse sonho de uma paixão empolgante e duradoura se poderia materializar na realidade e foi profunda a sua desilusão… 

Mrs. Muir sonhou uma vez muito jovem, e voltou a sonhar de novo mais crescida, ao ser beijada pela segunda vez no pomar…   

Mas quando a realidade se mostra tão distante dos sonhos que sonhámos, muita vez se opta por não dar ao sonho uma nova oportunidade.

Deixa-se, então, de sonhar, mas a memória do sonho, essa ninguém nos tira…

Vagueia-se sozinha pela praia…

Ouve-se o barulho do mar e os gritos das gaivotas, lá ao longe…

Vai-se á noitinha para a varanda sentir a maresia e olhar o mar, mesmo nas noites de maior nevoeiro. Sobretudo, nas noites de maior nevoeiro…

E, sem se saber muito bem como nem porquê, deixa-se o tempo passar…  

E foi tudo isto que aconteceu a Mrs. Muir.

Alma insatisfeita e sonhadora, mais do que se apaixonar por um morto, Mrs. Muir criou para si própria todo um mundo paralelo, compensando, dessa forma, as deceções e as desilusões de toda uma existência carregada de frustração (“Nunca tive uma via própria. Sinto-me inútil. Aqui estou, quase na metade da vida, e o que fiz? Cozinhei carne para alimentar um hipopótamo e conservei o nome Huguins bem limpo…”, desabafa ela com a sogra e a cunhada).  

Mais tarde, quando tenta explicar à sua empregada a atração que sente por Miles Fairley, diz-lhe : “Ele é real!. Acreditei que era insensível às emoções, numa vida respeitável com uma filha pequena. Mas não sou e preciso de todas as coisas que uma mulher precisa. Preciso de companhia e de risadas. Acho que preciso de amor…”

Depois, quando tudo se desmorona, ficam as memórias (“as memórias, eu tenho-as, mesmo que tudo não tenha passado de um sonho”, confessa ela à empregada. E à filha já crescida, que lhe vem anunciar o seu noivado e o desejo de a levar a viver com ela para fugir à reclusão e à solidão em que se encontra, Mrs. Muir dá-lhe a entender que a sua solidão é acompanhada (“Pode estar-se muito mais só ao lado de outras pessoas do que consigo própria, e mesmo ao lado de pessoas que se ama. Amo esta casa e viverei aqui até morrer”) 

Neste filme, que o crítico e historiador francês Jacques Lourcelles considerou “um dos mais belos produzidos em Hollywood” (1), tudo parece estar na mais absoluta das perfeições: a fotografia, a música, os diálogos, os atores, …

Em relação á fotografia de Charles Lang, dezoito vezes nomeado para o Óscar da Melhor Fotografia em toda a sua carreira (uma delas pelo filme de hoje), mas uma só vez vencedor (em 1933, com “O Adeus às Armas”, de Frank Borzage), para além de realçar a fluidez e a beleza de uma camara versátil que sobe e desce escadas e desliza pelas paredes, chamo apenas a vossa atenção para o sublime jogo de luz e sombras na cena da segunda aparição do fantasma, nessa noite de tempestade em que  velas, luzes e lumes sucessivamente se acendem e se apagam, até que reduzidíssimos focos de luminosidade incidam sobre o rosto da protagonista, acentuando o mistério de toda a cena.

No que respeita à música de Bernard Herrmann, um dos mais célebres Diretores Musicais da História do Cinema Americano (era o favorito de Alfred Hitchcock…), apenas também um só exemplo, para não vos maçar muito mais: na cena em casa de Miles Fairley, quando a mulher deste confessa a Mrs. Muir os antecedentes mulherengos do marido, quando a música subitamente irrompe não foi apenas ela quem recebeu uma punhalada no coração naquele momento, mas também nós, espectadores…

A Mankiewicz chamaram “cineasta da palavra”, tal a importância que os diálogos assumem na construção dramática dos seus filmes. Em muitos deles foi ele próprio o responsável pelo argumento, mas mesmo quando tal não sucedeu ele nunca deixou de “meter a sua colherada”. É o caso do filme de hoje, em que consta que uma boa parte do diálogo da cena de despedida do fantasma (que João Bénard da Costa considerou ser “a mais bela sequência de sempre da história de Hollywood” (2)  (“Você tem sonhado, sonhado com um capitão do mar que assombrava esta casa, das conversas que teve com ele. Mas foi um sonho, Lucia. Amanhã e nos dias seguintes recordará isto como um sonho, e ele morrerá, tal como todos os sonhos morrem ao acordarmos…”)), bem como quase todos os diálogos em que intervém George Sanders, terão sido de sua exclusiva responsabilidade, e não de Philip Dunne, que é o argumentista creditado no genérico. 

Finalmente, os atores: Gene Tierney, uma das mais belas e enigmáticas atrizes do Cinema Americano, aqui no auge da sua carreira; o inglês Rex Harrison, excelente no papel do fantasma truculento e irrascível, apenas no segundo dos filmes que fez na América; a muito jovem Nathalie Wood, que alguns de vós se lembrarão de ter visto numa destas sessões em “O Esplendor da Relva”, aqui com apenas 7 anos, mas já no seu terceiro filme; o magnífico George Sanders, deliciosamente cínico e manipulador como só ele soube ser; e ainda uma panóplia de excelentes secundários, dos quais apenas destoa, em minha opinião, Vanessa Brown, que desempenha o papel de Anna adulta.   


Há tantas, tantas imagens deste filme que ficam dentro de nós para sempre: Mrs. vestida de luto, com o chapeuzinho na cabeça;  as janelas que se abrem e se fecham; a praia, o mar e as gaivotas a esvoaçar; as portentosas cenas do mar a bater nas rochas  (de novo a força da música de Bernard Herrmann…), com o “leitmotiv” da estaca de madeira para acentuar a passagem do tempo, enquanto Mrs. Muir vagueia pela praia como se saída de uma tela de Noronha da Costa. E, é claro, a inesquecível cena final 

Aqui chegados, tenho de vos confessar que este é um daqueles filmes em relação aos quais quanto mais falamos mais sentimos que o essencial ficou por dizer, como se toda a sua beleza, perfeição e a emoção que nos suscita  fossem do domínio do indizível…

E se me faltam as palavras, então nada melhor que concluir dando a palavra a quem destas coisas do Cinema sabe e sente bem mais do que eu:

“Não há filme mais triste. Não há filme mais bonito. Deixem-me ficar ao pé da mulher que nasceu tarde demais para atravessar os sete mares e para ver o sol da meia-noite. Deixem-me ficar ao pé do capitão que morreu cedo demais para a poder beijar ou para poder deitar-se com ela. Ou deixem-me acreditar que não há cedo nem tarde e que o único amor que existe - porque é o único em que acreditamos que existe – é o “amor surreal”, esse que Rex Harrison e Gene Tierney encontram no final, quando desaparecem na névoa, atravessada a última porta”. (2)

PS:

Já não tive espaço para vos falar da importância do retrato em muitos filmes americanos  dos anos 40/50, enquanto detonador do sonho e do desejo, como é o caso evidente do filme de hoje. Talvez que na apresentação em sala haja oportunidade de falarmos nisso.  

  1. LOURCELLES, Jacques, “Dictionnaire du Cunema – Les Films”, Edição Robert Laffont, 1992, pág. 101
  2. DA COSTA, João Bénard, “Escritos Sobre Cinema – Tomo 1, 4º Volume”, Edições Cinemateca Portuguesa, 2021, pág. 365. A afirmação vale o que vale, porque sabemos que Bénard da Costa disse, com igual convicção, exatamente a mesma coisa de muitas outras cenas de muitos outros filmes…
  3. Idem, pág. 366   

 LUÍS MIGUEL MIRA

1 comentário:

Anónimo disse...

Boa tarde!
Agradeço a Sam a cortesia da publicação do texto, bem como as informações acerca das sessões, embora aqui exista um pequeno lapso do qual sou eu o único responsável: as sessões são às 15h00, e não às 15h30...
Um segundo esclarecimento, em nome do rigor: o responsável pela organização destas sessões de cinema é o Prof. Jorge Barata Preto, do qual provavelmente alghuns de vós se recordarão enquanto crítico de cinema dos há muito extintos semanários "O Jornal" e "Sete". Eu fui apenas convidado a programar algumas sessões a meu gosto, findas as quais a programação seguirá sób a orientação do seu habitual Organizador.
Um abraço!
Luís Mira