terça-feira, 21 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS


Quadros da História Trágico-Marítima

Selecção, Prefácio e Notas: Rodrigues Lapa

Colecção Textos Literários

Editora Seara Nova, Lisboa, 1956

A nau «S. Tomé» partiu de Cochim para Portugal em Janeiro de 1959. Era capitão Estêvão da Veiga, e trazia para o reino pessoas de categoria: D. Paulo de Lima Pereira, que se cobrira de glória no Oriente, sua mulher, Bernardim de Carvalho, Gregório Botelho, que acompanhava sua filha D. Mariana, casada com Guterre de Monroy, que se achava em Portugal, e outros mais. A nau vinha mal calafetada, pelo que teve duas avarias. Não longe da costa do Natal, batida por tempestades, começou a deitar muita água. De nada valeu terem alijado a carga preciosa; considerado o navio irremediavelmente perdido, começaram a tratar da salvação.

NA LUZ A PRUMO

Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.

Eugénio de Andrade de Os Sulcos da Sede em Poesia

segunda-feira, 20 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


A direita continua a gostar de mulheres em casa.

Maria Teresa Horta

Legenda: imagem do Livro da Primeira Classe, capítulo «A Dona de Casa». A mãe a dizer para Emilita que quando for grande há-de ser uma boa dona de casa.

VELHOS RECORTES


 Artigo de Marina C. Ramos publicado no Público s/d

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


«O gabinete do procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, anunciou que, face a uma investigação em que há motivos suficientes para concluir que foram cometidos crimes de guerra quer do lado do Hamas, quer do lado de Israel, pediu mandados de captura para vários responsáveis dos dois lados.

Do lado de Israel Khan mencionou o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant.

Do lado do Hamas (e o tribunal começou a sua comunicação pelo movimento islamista), referiu-se não só ao líder em Gaza, Yahya Sinwar, e ao comandante da sua ala militar, Mohammed Deif, como a Ismail Haniyeh, o dirigente que vive no Qatar.

Entre os crimes de guerra e/ou contra a humanidade que o procurador diz que os responsáveis israelitas estão suspeitos de ter cometido estão o uso da fome contra civis, causar sofrimento ou usar tratamento cruel, assassínio, ataques intencionais contra a população civil, extermínio e/ou assassínio, incluindo em contexto de mortes à fome, perseguição ou outros actos desumanos.

Do lado do Hamas estão o extermínio, o assassínio, a tomada de reféns, a violação e outros actos de violência sexual, a tortura, outro tratamento desumano e cruel em contexto de guerra.


As reacções de ambos os lados foram rápidas. O responsável do Hamas Sami Abu Zuhri declarou à Reuters que a decisão “faz equivaler a vítima ao carrasco” e, do lado de Israel, o ministro do gabinete de guerra e antigo chefe do Exército, Benny Gantz, declarou que a decisão do procurador é “um crime de proporções épicas”.
O Presidente de Israel, Isaac Herzog, disse que a decisão mostra como “o sistema judicial internacional está em perigo de se desmoronar”, cita o diário israelita Jerusalem Post. “Esta acção representa um passo político unilateral que encoraja terroristas pelo mundo, e viola todas as regras básicas do tribunal.”

Dos Estados Unidos, o secretário de Estado, Antony Blinken, condenou a decisão do gabinete do procurador: “Rejeitamos a equivalência que o procurador faz entre Israel e o Hamas”, declarou Blinken.

Numa nota no site da Casa Branca, o Presidente Joe Biden também bateu nesta tecla depois de considerar a decisão “escandalosa”: “independentemente do que este procurador possa insinuar, não existe qualquer equivalência –​ nenhuma –​ entre Israel e o Hamas. Estaremos sempre ao lado de Israel contra as ameaças à sua segurança.”»

Lido, às 16,00 horas, no Público-on line.

AS PALAVRAS PROÍBIDAS

 


Finais do ano de 2023, o semanário Notícias da Amadora publicou uma série de cadernos registando os actos da censura ditatorial de que o jornal foi vítima.

Fundado em 25 de Outubro de 1958, na sua luta pela Liberdade e pela Democracia, o Notícias da Amadora terá sido o jornal português mais flagelado pelos esbirros salazaristas/marcelistas.

No seu historial, Portugal acusa um passivo de centenas e centenas de anos de Censura, o que significa que o melhor da nossa voz e do nosso pensamento, foi construído sob o medo e a contracultura.

Mário Castrim:

«Porque neste País houve uma censura. Às imagens, ao pensamento. E a propósito: estes censores que mutilaram, castraram, destruíram, odiaram, one estão eles agora? Em que lugar do Estado? Com que votos? Que espécie de democracia estarão a levantar? Que direitos humanos estão a defender?

O texto que acima se reproduz, é da autoria de Orlando César, director do Notícias da Amadora e que consta do Caderno nº 16 publicado pelo jornal.

OLHAR AS CAPAS


John Bull

Ramalho Ortigão

Obras Completas de Ramalho Ortigão

Livraria Clássica Editora, Lisboa, Abril de 1959

Não é pois este livro o que tu mereces, mas o que pode dar-te em humilde testemunho de afecto aquele que é, por todos os seus compatriotas,

Lisboa, 27 de Fevereiro de 1887.

                                        Teu amigo, aliado e freguês

                                         constantemente explorado e

                                                   sempre agradecido

                                                                R.O.

ASSIM VÃO AS NOSSAS GENUIDADES...

Nuno Rogeiro aproveitou o seu programa Leste-Oeste, na SIC, para falar de uma outra guerra: a do vinho do Porto. Alguém lhe encomendou o sermão e o comentador fez-lhe a vontade, avançando com números e explicações próprias de quem está na praia errada, como dizer que, “quando o mosto começa a fermentar, o chamado generoso”. Ora, chama-se “generoso”, ou fortificado, ou vinho fino ao vinho já aguardentado. Mas tudo bem. Tirando alguns lapsos, desculpáveis, uma vez que o vinho do Porto é mesmo um mundo demasiado complexo, Nuno Rogeiro levantou uma questão importante, que os decisores do vinho do Porto gostam de manter debaixo do tapete: como é possível continuar a produzir um vinho com denominação de origem controlada, único no mundo, que leva na sua composição um quarto de vinho proveniente de Espanha ou de França em forma de aguardente?
O Douro é como uma senhora distinta que se deixou levar por maus caminhos
Cada pipa de vinho do Porto (550 litros) leva cerca de 120 litros de aguardente e essa aguardente é quase toda comprada fora do Douro e de Portugal. Onde está a genuinidade do vinho?»

Pedro Garcias, crónica do Público de 4 de Maio de 2024-05-20

Legenda: imagem tirada de A Publicidade em Portugal Através do Bilhete Postal

POESIA E REVOLUÇÃO

Na bala, nessa bala absolutamente vulgar
que desfez o coração desesperado
de Vladimir Maiakovski no dia
14 de abril de 1930. É nessa bala que eu penso
sempre que leio ou oiço certas coisas
que se dizem sobre poesia.
Porque, por estes dias, dizem-se
muitas coisas sobre poesia.
Algumas delas realmente espantosas.
E até por gente inteligente, respeitada.
Por exemplo, que a poesia é inútil,
que hoje ninguém lê poemas,
que a beleza não transforma a vida!
Até isso, imagine-se! Como se a chama de um fósforo
não fosse, só por si, luz suficiente
para desmanchar toda a escuridão do mundo.

Luís Filipe Parrado


Nota do Editor: este poema de Luís Filipe Parrado foi copiado do jornal Público, 2 de Maio de 2024

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

domingo, 19 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO

 

Ser pela verdade mesmo quando se sabe que é insuportável, ser de excessos mas conhecer as fronteiras. Fazer rigorosa e exclusivamente aquilo de que se gosta.

Autor desconhecido

OLHARES


 Uma cadeira abandonada numa rua de Lisboa.

Fotografia de Aida Santos.

OLHAR AS CAPAS


Exílio Perturbado

Urbano Tavares Rodrigues

Prefácio: José Palla e Carmo

Capa: José Cândido

Colecção Autores Portugueses

Livraria Bertrand, Lisboa, 1969

Jamais te deixes levar pelo amor das palavras ao ponto de esqueceres o que tens para dizer.

sábado, 18 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS


Romance Sem Fim

Aquilino Ribeiro

Livraria Bertrand, Lisboa s/d

Entardecia. Os galgos levantaram uma lebre e, com a golpada, os gritos, a febre do lance, aquelas vagas ideias negras caíram como tudo, amor ciência, bem e mal, homens e nações, na universal voragem.

CONVERSANDO


Longe do mundo, que é também o título de um livro do seu amigo Jorge Fallorca, Ana Cristina Leonardo, nas excelentes crónicas – é a minha opinião – que semanalmente publica no Público e depois coloca na Pastelaria, pode não ter assunto, como por aqui diz, o Eça lembrava que quando não se tem assunto para a crónica, há sempre um Bey que se pode matar em Tunes, manda-nos para outras paragens,  que olhemos as papoilas nos campos, mas depois, de sopetão, revela que a ex-múmia de Belém prefacia um livro de Aquilino, que não pero acaso está hoje no Olhar aa Capas.

«Quem – obrigado (mesmo se voluntariamente) a dizer coisas inteligíveis e de preferência inteligentes todas as semanas – nunca se debateu com a “falta de assunto” que atire a primeira pedra.

Lembrei-me depois de Camilo Castelo Branco e da sua copiosa produção literária, que a vida custa a todos (ou, pelo menos, à maioria).

Tomando-o por mestre – e mestre moderníssimo: que se lixem tanto os achaques românticos como os rigores do realismo! –, poderia agora, parodiando Eusébio Macário, um Macário agrário e não boticário, está bem de ver, reproduzir com minúcia a lista das distintas variedades de figueiras do Algarve – perfazem, segundo leio, oitenta e cinco –, o que decerto serviria para despachar pelo menos meia crónica, e isto no caso de poupar o leitor à caracterização morfológica das suas variedades, inventariando-lhes apenas os nomes próprios, alguns de sonoridades manifestamente pitorescas, como bilharda, colhão do mundo, sacristão da luz, cu de burro, bacorinha ou orelha de mula.

Se Cavaco Silva pode prefaciar Aquilino Ribeiro – segundo informação que me chega, o ex-Presidente da República preambula a nova edição de Geografia Sentimental, retrato aquiliano pessoalíssimo das terras da Beira Alta publicado originalmente em 1951 – porque não poderei eu, nunca tendo sido sequer presidente de junta, mas sabendo que “cidadões” é plural inexistente e que o número de cantos de Os Lusíadas são dez, aventurar-me por solos camilianos, trepando aos ombros de outro dos nossos gigantes, quando me falta assunto?

As Humanidades não humanizam, é sabido. Ainda assim, terem deslembrado os 500 anos de Luís de Camões é obra! E obra que explicará muita coisa. Por exemplo, as quinas que passaram a sete do jovem ufanista Bugalho (tratar-se-á de aritmética marciana?), ou o Atlético Norte por Atlântico Norte de Melo. Melo, o nosso mais original (até agora) ministro da Defesa Nacional que, adaptando medidas castigadoras de antanho aos novos tempos, propõe punir os jovens com a tropa no caso de assaltarem velhinhas.

Penso tudo isto, embora não necessariamente por esta ordem, enquanto me desvio, no regresso a casa, da folhagem do tronco rastejante da figueira que sombreia o alcatrão do caminho estreito que leva ao largo maior e mais adiante ao rio.

Escapando-me, porém, a coragem e a genialidade de Camilo para “desabar a pontapés de estilo” a sociedade, acobardo-me, omito a lista das oitenta e cinco espécies diferentes de figueiras algarvias e dou antes a palavra ao próprio: “… é necessário a quem reedifica a sociedade saber primeiro se ela quer ser desabada a pontapés de estilo para depois ser reedificada com adjectivos pomposos e advérbios rutilantes. Para isso, o primeiro avanço é pô-la nua, escrutar-lhe as lepras, lavrar grandes actas das chagas encontradas, esvurmar as bostelas que cicatrizaram em falso, escoriá-las, muito cautério de frases em brasa. É o que se faz nesta obra violenta, de combate, destinada a entrar pelos corações dentro e a sair pelas mercearias fora.” (“Advertência” in Eusébio Macário – História Natural e Social duma Família no Tempo dos Cabrais, Camilo Castelo Branco, 1.ª ed., 1879).

Sem abandonar a paródia, volto à vida rural, a despeito do encerro das mercearias, para dizer que a vida rural possui encantos e razões que a razão urbana desconhece.

Na grande cidade, uma frase como “Anda comigo ver os aviões” é facilmente interpretada como um metalogismo retórico em que o termo “aviões” ultrapassa o seu sentido literal – de acordo com os dicionários mais respeitáveis: “aparelho de locomoção aéreo, mais pesado do que o ar e provido de asas e motor”.

Como decifrar, porém, o convite de um pastor que nos diz “Quer vir comigo ver as ovelhas?”, desde logo de aparência mais respeitosa dada a forma interrogativa da frase e a incorporação do verbo querer e logo conjugado na terceira pessoa?»

Mas Cavaco Silva, que nem contas sabe fazer, lê livros, lê Aquilino?

Admiti estar perante uma tão em moda «falsa notícia» mas, por inacreditável que seja, é mesmo verdade!

sexta-feira, 17 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS

 

O 25 de Abril Visto da História

José António Saraiva

Vicente Jorge Silva

Capa: José Cândido

Livraria Bertrand, Lisboa, Novembro de 1976

Sobre o fenómeno PS, será oportuno fazer um pequeno recuo no tempo, até 1969, quando Mário Soares e outras figuras hoje preponderantes daquele parido concorrente às eleições para a Assembleia Nacional, pelo círculo de Lisboa, integrados numa lista distinta da CDE, a CEUD. Enquanto a CDE representava alguma tendências da oposição ditas mais «radicais» - PCP e católicos progressistas incluídos - , a CEUD era a expressão típica dos democratas liberais, ainda fiéis à herança política da I República, e que pretendia «colar» com algumas propostas de «liberalização» avançadas por certos sectores marcelistas. A CEUD orienta a sua campanha para a reivindicação das «liberdades», quase não referindo a questão colonial a não ser numa perspectiva que, curiosamente, Spínola viria a defender mais tarde (isto é em Portugal!) sobre a apolítica a adoptar em relação às colónias. Como é conhecido a CEUD obteve apenas cerca de um quarto dos sufrágios obtidos pela CDE; concretamente, menos de nove ,il pessoas votaram na lista onde figurava Mário Soares.

AUTO-RETRATO COM REVÓLVER

 

as palavras foram alinhavadas pelos preguiçosos dedos
o texto transparece na claridade das manchas de tinta
teço a ausência dum corpo que me é absolutamente necessário, doem-me estes gestos
estas coisas cobertas de pó sobre a mesa: papéis amarrotados, fotografias, cartas interrompidas, objectos quebrados, sinais ténues de gordura e de fundos de chávena
lápis, cigarros esboroados, o revólver

num dos cantos inacessíveis da casa, as aranhas vão construindo ninhos diáfanos
segregam sábios labirintos em perigosa baba
sinto-me vazio, hoje
a compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo com isso
está tudo muito calmo, em redor da casa, o jardim quieto
poderia passar o dia a ler, por desfastio, à maneira dos príncipes persas
a tarde torna as madeiras rubras, aquece
os livros parecem de pedra em seu arrumo cauteloso

ao alcance está o revólver
perto da mão que nunca aprendeu a escrever, aquece ao simples contacto dos dedos
a outra mão, a direita, definhou um pouco quando aprendeu o silencioso ofício

eu explico: hoje deve ser domingo
e a mão esquerda masturba enquanto a direita escreve com destreza, sem cessar
mais tarde, escrevia eu
poderiam as mãos trocar de ofício
o revólver tingir-se-ia de tinta permanente, o papel apresentaria o terrível sulco de uma bala.

Al Berto em  O Medo

quinta-feira, 16 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO

 

Não creio no mundo, nem no dinheiro, nem no progresso, nem no futuro de nossa civilização. Se houver um futuro para a humanidade, terá de ser algo muito diferente do que temos hoje.

D.H. Lawrence

Legenda: pintura de Pieter Bruegel, o Velho

OLHAR AS CAPAS


Arte de Furtar

Anónimo do Séc. XVII
Desenhos de Eduardo Batarda

Comentários de Natália Correia, Armando Castro, Hernâni Cidade, João Bénard da Costa

Capa, arranjo gráfico: Paulo-Guilherme

Edições Afrodite, Lisboa 1970

Todos falam na política, muitos compõem livros dela, e no cabo nenhum a viu, nem sabe de que cor é. E atrevo-me a afirmar isto assim, porque, com eu ter poucos conhecimentos dela, sei que é uma má peça, e que a estimam e aplaudem, como se fora boa; o que não fariam bons entendimentos, se a conheceram de pais e avós, tais, que quem lhos souber, mal poderá ter por bom o fruto que nasceu de tão más plantas. E para que não nos detenhamos em coisa trilhada, é de saber que no tempo em que Herodes matou os inocentes, deu um catarro tão grande no Diabo, que o fez vomitar peçonha; e desta se gerou um monstro, assim como nascem ratos ex materia putridi, ao qual chamaram os críticos Razão de Estado. E esta senhora saiu tão presumida, que tratou de casar, e seu pai a desposou com um mancebo robusto e de más manhas, que havia por nome Amor Próprio, filho bastardo da primeira desobediência. De ambos nasceu uma filha a que chamaram Dona Política. Dotaram-na de sagacidade hereditária e modéstia postiça. Criou-se nas cortes de grandes príncipes, embrulhou-os a todos. Teve por aios a Maquiavel, Pelágio, Calvino, Lutero e outros doutores desta qualidade, com cuja doutrina se fez tão viciosa, que dela nasceram todas as seitas e heresias que hoje abrasam o mundo. E eis aqui quem é a senhora Dona Política.

POEMA DA MULHER DOS CABELOS BRANCOS

A mulher dos cabelos brancos estava à janela do primeiro andar
com os antebraços poisados no parapeito.
Tinha um xaile de malha sobre os ombros,
cruzado à frente e as mãos metidas nele.

Quentinha, a mulher dos cabelos brancos.

Postada à janela,
muito ocupada em fazer coisa nenhuma,
com os antebraços poisados no parapeito,
a mulher dos cabelos brancos
só seguia com os olhos quem passava na rua.
Ela nunca tinha ouvido falar no Aristóteles,
nem no Descartes, nem no Sigmund Freud,
mas sabia coisas concretas que a vida prática lhe ensinara.
Sabia que Eva tinha sido feita
de uma costela de Adão,
o que se prova
por os homens terem uma costela a menos do que as mulheres.
E também sabia que o Sol anda à volta da Terra
como é evidente,
e que as salamandras vivas,
postas no fogo,
não morrem nem sequer se queimam,
o que não é evidente mas é certo.
E por saber todas estas coisas,
e muito mais,
a mulher dos cabelos brancos sentia-se muito quentinha
com os antebraços poisados no parapeito.

Eis que, porém,
o relógio do tempo despertou-a.
Então,
pausadamente,
a mulher dos cabelos brancos ergueu o busto,
fechou a janela,
e foi sentar-se na cadeira do costume,
aconchegadinha,
a ver televisão.

António Gedeão de Novos Poemas Póstumos em Obra Completa

quarta-feira, 15 de maio de 2024

CONVERSANDO


Citação  de um diálogo do filme de João César Monteiro A Comédia de Deus:

« Estás aonde? Em casa ou na fábrica? Esse Tomé só arranja confusões. Não, não. De amaneira nenhuma. Não te preocupes. Está tudo a andar. O costume. A mulher da limpeza voltou a não aparecer. Depois vem com umas grandes tretas. É uma chatice. Mas lá terá que ser… O problema é que não posso deixar isto entregue aos bichos. Quando o Romão vier. Combino as coisas com ele. Se tiver uma aberta passo ainda hoje pelo banco e dou uma palavrinha ao gerente. Fica descansada. E ainda temos quantos quilos em stock? Estamos à vontade. Não senhor. A ideia é muito simples: deixa-se os clientes a salivar durante uns dias com o anúncio de esgotado e relança-se o Paraíso em força. . Claro. Com um novo preço que faça jus à especialidade da casa e à originalidade do sabor. Ò menina, vem no Marx. Não há omeletes sem ovos. Aumenta os salários que os resultados aparecem. É elementar e tu sabe-lo por experiência própria: também te saiu do pêlo. Também fiquei com muito boa impressão, sim senhor. Vive sozinha com a mãe numa barraca? Também não me pareceu nada doidivanas. A ver vamos, mas uma andorinha não faz a Primavera. É. De que parte do Minho? Conheço muito bem. Papei por lá, se não estou em erro, a melhor cabidela da minha vida. É boa gente, lá isso é. É muito bonita e ainda não perdeu aquela inocência fresca e provinciana. Vou retocá-la ao  gosto das madonnas venezianas, mas sem apagar os traços rurais. Pode ser um chamariz, pode, mas toda a sabedoria vai estar no conservá-la. Alguma vez te deixei ficar mal? Ó Judite, sabes perfeitamente que em serviço não brinco. Está bem. Cá a espero. Rosário. Rosário quê? Não, não. A mim, essa Francisca nunca me enganou. Vi logo. Queixa na Judiciária? Não te metas nisso. Não paga o incómodo. Também está debaixo de olho, mas deixa-a pousar. Não quero levantar a lebre.»

Gosto deste «… vem no Marx».

O meu pai dizia muito que está tudo no Marx. Que também devia ler Lénine. De um e outro li alguma coisa.

O livro de Henri Krasucki que hoje aparece em Olhar as Capas, custou-me 35 escudos, ao câmbio de hoje, 0,175 euros.

Livros como este ajudaram a completar o que de Karl Marx fui lendo, a consciência de um Sindicato, a luta de classes, que a sociedade capitalista assenta na propriedade privada, capitalista, dos meios de produção e, por consequência, na exploração.

Tudo o mais decorre daqui.

Sim, está tudo no Marx!

Legenda: fotograma de A Comédia de Deus de João César Monteiro

OLHAR AS CAPAS

Sindicatos e Luta de Classes

Prefácio Georges Séguy

Henri Krasucki

Tradução: Mário Neto

Editorial Estampa, Lisboa, Outubro de 1971

O que define o capitalista, não é o ser bom ou mau, bem educado ou grosseiro, é a sua «função» nesse sistema: não se pode ser capitalista sem explorar os trabalhadores, e não imperfeitamente, mas o mais que for possível.

SE QUISERES FAZER AZUL

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz — eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé — e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice

terça-feira, 14 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS


A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa

Augusto da Costa Dias

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Portugália nº 1

Mas além de exigência natural das novas estruturas industriais o comboio é ainda, quer na praxis, quer no plano da consciência individual, um subersor das categorias ancilosadas do espaço e do tempo: e instigando ou coagindo os homens distantes às relações mais íntimas, os seus silvos vêm golpear sensibilidades enclausuradas, afeitas a pequenas áreas, com um quadro de estímulos secularmente fixo. Pensemos agora que o movimento ferroviário sofre, entre 1884 e 1900, a significativa evolução que vou resumir, reportando-me apenas àqueles dois anos, sem me deter nos intervalares.

RECOMPONHO O LUME

Hoje arrumei a estante.

 

Livros empilhados há anos pelos cantos
alojando pequenos animais no rés-do-chão
imensas caves larvares de encontro aos tacos

 

aqui e ali um fio de teia

mas nunca a aranha

 

não gostam de ler.

 

Um a um

limpo a lombada

folheio

miro de relance o índice. Este é para aqui!

 

Coloco-o no lugar exato da prateleira

espaço reservado à eternidade

 


os outros aguardam
fitam-me com seus olhos pétreos
os mais velhos largando odores
a pó de arroz
a pó
a pétalas amortalhadas
a invernos chuvosos
lumes de lareiras e o ruído da página que se vira.

 

Aguardam com olhos pétreos

suspensos da decisão

 

o pensamento universal ficou na prateleira de cima

escorre água pelas vidraças


os manifestos revolucionários logo ao lado
esquerdo nos seus vermelhos fulgentes
na de baixo uma coleção de bichos da national geographic
dorsos em couro tartaruga

 

as biografias olham-me estarrecidas.
Tantos anos para isto?
Perguntam

 

as biografias dos que tombaram

para que houvesse amanhã

 

tombaram mas agora os levanto

entalando-os com uma jarra

para não escorregarem

agora sim, arrumei a revolução.

 

Recomponho o lume

que soçobrava nas próprias cinzas

e logo um labareda recomeça

João Habitualmente


Nota do Editor: este poema de Nota do Editor: este poema de João Habitualmente foi copiado do jornal Público, 10 de Abril de 2024

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

NOTÍCIAS DO CIRCO

 “É injusto dizer que Israel quer eliminar os palestinianos”, diz Paulo Rangel

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, considerou, em entrevista ao jornal espanhol El País, que "seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestiniano".

“É injusto dizer que Israel quer eliminar os palestinianos”, diz Paulo Rangel

O governante português admitiu que "há uma catástrofe humana que tem de ser condenada" e "reparada", mas recusa a tese de genocídio no conflito entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, porque "o genocídio pressupõe a vontade de eliminar um povo", justificou.


“É injusto dizer que Israel quer eliminar os palestinianos”, diz Paulo Rangel
Paulo Rangel também confirmou que o Governo português não vai, pelo menos para já, juntar-se a Espanha para reconhecer a soberania do Estado da Palestina. Portugal está à espera "do momento mais oportuno para dar esse passo". O ministro admite que a posição portuguesa é semelhante à espanhola, que se prepara para reconhecer a soberania da Palestina nos próximos dias, mas "não é exactamente a mesma". Há "uma diferença temporal".

Copiado do Público de hoje.

BLOGUEANDO POR AÍ

Passagem pelo blogue Antologia do esquecimento:

«Habitações, escolas, hospitais em ruínas. Sob as ruínas, o cheiro putrefacto dos corpos em decomposição. As bombas não cessam de cair, esventrando mulheres, estropiando velhos, esmagando crianças. Aos milhares. Há relatos de fome, de gente enterrada vida, outros a matarem a sede com água do mar, relatos de tortura, de perseguições, destruição massiva de instalações da Organização das Nações Unidas, jornalistas silenciados, à bala ou à censura, prisões e detenções administrativas, aos milhares, aos milhares. Por cá, celebram-se as unhas da Iolanda. Um statement. E os apelos à paz. E espantam-se pardais com o televoto português, que deu pontuação máxima a Israel. Continuemos a tratar o caso com unhas de gel e outfits. Posição, era não ter cantado. Ficar em silêncio no palco. E mandar aquilo tudo à merda. O resto é só mais um número, espectáculo tão ridículo, boçal e degradante quanto o da Catarina Furtado a cortar uma madeixa de cabelo em solidariedade para com as mulheres iranianas.»

OLHAR AS CAPAS


As 7 Vidas de José Saramago

Miguel Real E Filomena Oliveira

Capa: Alceu Nines

Companhia das Letras, Lisboa, Setembro de 2022

Escrever uma biografia não é fácil. Escrever uma biografia de um homem controverso, crítico, denunciante e acusador das sem-razões por que a História tem sido construída – e das iniquidades que se espalham hoje na paisagem do mundo – pressupomos ser menos fácil ainda.

O OUTRO LADO DAS ESTANTES


Chamo-lhe o Outro Lado das Estantes.

São livros que vieram da biblioteca do meu pai, também da do meu avô.

São livros, técnicos, outros que não sei como classificá-los.

Ficam aqui por mera curiosidade para memória futura.


Filhos, netos e bisnetos, outros descendentes, terão um dia que lidar com tudo isto. Não sei bem como e eu também não sei explicar.

Talvez seja um tempo em que já não haja livros ou espaço para os aconchegar.

No Outro Lado da Estante pego hoje num livro encadernado, comprado pelo meu pai na Festa do Avante, que reproduz os exemplares do Avante publicados antes de 25 de Abril, bem como o exemplar do 1º número do Avante em tempo de Liberdade, publicado em 17 de Maio de 1974.

Provavelmente o meu pai, com a compra deste livro, quis recordar alguns dos Avantes clandestinos que, em tempo de ditadura leu, porque sempre se afirmou como marxista-leninista. Recorda as muitas vezes que disse que, para além de Marx, não todo, não todo, deveria ler Lénine mas apenas se ficou pelo julgado necessário.

O Jornal dos Trabalhadores da Democracia e do Socialismo

Edições Avante, Lisboa 1977.

CARTA(S) A JORGE DE SENA

I

Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde

II

E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida

III

Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse

Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade

E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

IV

E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta

Sophia de Mello Breyner Andresen de Ilha em Cem Poemas de Sophia

domingo, 12 de maio de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


A minha vida de leitor está repleta de grandes livros, de grandes começos.

Há dias, reparei que Moby Dick ainda não tinha entrado em Olhar as Capas.

Espanto dos espantos.

Já lá mora e agora entra nos Começos de Livros.

Lamentavelmente perdeu-se – onde? Como? - a velha edição, comprada pelo meu pai, da Moby Dick da Estúdios Cor. A que hoje faz parte da Biblioteca da Casa é uma edição da Unibolso, mas mantém a tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves.

É um enorme começo de livro de um fascinante livro, um clássico da literatura.

«Tratem-me por Ismael. Há alguns anos – não interessa quantos – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.»

Sempre guardei – está devidamente sublinhado -  aquele:

«Sempre que sinto na boca uma amargura crescente, sempre que sinto na minha alma a humidade e a chuva de Novembro, sempre que minha hipocondria me domina de tal modo que é necessário um forte princípio moral para me impedir de sair deliberadamente para a rua e socar metodicamente o chapéu das pessoas - … então considero que é a altura de fazer-me ao mar e o mais depressa possível.»

Um grande livro e não poderá ser esquecido o filme que John Huston realizou em 1956. Uma daquelas tarefas julgadas quase impossíveis mas de que o velho John Huston, se sai mito bem, tal como Gregory Peck no papel do capitão Ahad, para nunca se deixasse de ouvir a perna de pau a bater no convés do navio Pequod.

Também não se pode esquecer, logo a abrir o livro, a Etimologia fornecida pelo defunto contínuo de uma escola elementar:

«O pálido contínuo! Bem me recordo dele, com a roupa, o coração, o corpo e o cérebro a largar o último fio… Sacudia sem cessar o pó dos seus velhos léxicos e das suas velhas gramáticas, com um lenço bizarro, cujo padrão, como por escárnio, representava as joviais bandeiras de todas as nações do mundo. Adorava espanar a poeira dos velhos calhamaços; aquilo era uma maneira subtil de não esquecer que também se havia de transformar em pó.»

O capitão Ahab impõe à sua tripulação a concretização do seu maior desejo – destruir a grande baleia branca. Sob o seu rígido comando a missão comercial do Pequod é alterada tornando-se uma missão de vingança.
Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma criatura, mas sim o símbolo de algo desconhecido.
Sem medo das catástrofes naturais, dos maus presságios ou mesmo da morte, Ahab impele o seu navio em direcção ao perigo.

O capitão Ahab, lembra à sua tripulação que o objectivo da viagem comercial vai ser alterada e passa a ser uma demanda vingativa, a caça à baleia branca que o tinha deixado sem uma perna e que agora era uma perna que tinha sido confecionada a bordo com um pedaço de osso polido da queixada de um cachalote.

Mais à frente, páginas 310 surge-nos o avisos:

Não há portanto nenhum meio de saber-se como é a baleia sem irmos cacá-la. Simplesmente isso corresponde ao risco de uma pessoa ser esmagada pelo peso da sua curiosidade e depois arrastada para o fundo do mar. Portanto, aconselho ao leitor que modere a sua curiosidade a respeito das baleias.»

O livro está largamente sublinhado. Numa das margens a observação: ler o Sermão de Jonas na baleia. «O Senhor fez com que um grande peixe engolisse Jonas, e ele ficou dentro do peixe três dias e três noites».

Mas fiquemo-nos com o capitão Ahab monologando, páginas 167, com o seu cachimbo, recordando eu velhas frases lidas aqui e ali: «um fumador de cachimbo nunca está só», ou este pedaço de prosa do jornalista António Carvalho: «Quando os meus filhos nasceram, o fumo do meu cachimbo recebeu-os uma a um, como uma nuvem de boas vindas. Uma nuvem feita de imaginação e de sonho. Todas as minhas casas ficaram impregnadas desses odores – a cada um o seu perfume. Mais tarde quando me separei, os meus filhos confessavam-me que sentiam a falta do cheiro do meu cachimbo. Pelo menos ficou-lhes o meu rasto… Efémero, como qualquer fumo…»

Mas regressemos ao monólogo do capitão:

«Ahab ficou por um momento debruçado sobre a amurada, e depois, como já era seu costume recente, chamou um dos marinheiros de quarto e mandou-o buscar ao camarote o cachimbo e o banco de marfim. Acendendo o cachimbo na lâmpada da bitácula e colocando o banco a barlavento, sentou-se a fumar.

Duranta alguns momentos saíram da sua boca constantes e densas baforadas de fumo que o vento lhe arrojava à face.

«Porque será – monologou ele – que este fumo perdeo condão de ma calmar? Oh! meu cachimbo, triste vida a minha se os teus encantos se perderam! Aqui tenho estado eu a fumegar sem prazer – a fumar sem dar por isso, contra o vento; e soltando fumaças nervosas como uma baleia moribunda, cujos derradeiros jacto são mais violentos e cheios de agonia. Que se passa contigo, meu cachimbo? Foste criado para tranquilizar, para lnçar suaves vapores brancos para o meio de tranquilos cabelos brancos e não para as ásperas madeixas cor de ferro do teu amo. Não mais fumarei…

Lançou ao mar o cachimbo ainda aceso; o lume silvou nas ondas e no mesmo instante a ressaca do navio lançou para o largo a bolha que assinalava o ponto onde o cachimbo se tinha afundado.»

Legenda: Gregory Peck no filme Moby Dick de John Huston