terça-feira, 14 de maio de 2024

RECOMPONHO O LUME

Hoje arrumei a estante.

 

Livros empilhados há anos pelos cantos
alojando pequenos animais no rés-do-chão
imensas caves larvares de encontro aos tacos

 

aqui e ali um fio de teia

mas nunca a aranha

 

não gostam de ler.

 

Um a um

limpo a lombada

folheio

miro de relance o índice. Este é para aqui!

 

Coloco-o no lugar exato da prateleira

espaço reservado à eternidade

 


os outros aguardam
fitam-me com seus olhos pétreos
os mais velhos largando odores
a pó de arroz
a pó
a pétalas amortalhadas
a invernos chuvosos
lumes de lareiras e o ruído da página que se vira.

 

Aguardam com olhos pétreos

suspensos da decisão

 

o pensamento universal ficou na prateleira de cima

escorre água pelas vidraças


os manifestos revolucionários logo ao lado
esquerdo nos seus vermelhos fulgentes
na de baixo uma coleção de bichos da national geographic
dorsos em couro tartaruga

 

as biografias olham-me estarrecidas.
Tantos anos para isto?
Perguntam

 

as biografias dos que tombaram

para que houvesse amanhã

 

tombaram mas agora os levanto

entalando-os com uma jarra

para não escorregarem

agora sim, arrumei a revolução.

 

Recomponho o lume

que soçobrava nas próprias cinzas

e logo um labareda recomeça

João Habitualmente


Nota do Editor: este poema de Nota do Editor: este poema de João Habitualmente foi copiado do jornal Público, 10 de Abril de 2024

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

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