quinta-feira, 23 de maio de 2024

ODE AOS LIVROS QUE NÃO POSSO COMPRAR

Hoje, fiz uma lista de livros, e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

Mas também é certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,
para comprar alguns livros
- sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quanto sentiram, ou sós, ou mal-acompanhados,
alguns outros que, se lhe falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que se não perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida.

Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,
nem de que, em breve, se morrerá de uma fome maior,
do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
e sair de casa, contando os tostões que me restam,
a ver se chegam para o carro eléctrico,
até outra porta.

27/6/44

 

Jorge de Sena de Tempo de Coroa da Terra em 40 Anos de Servidão

2 comentários:

Luis Eme disse...

Gosto de vir aqui, porque este cais têm muito para olharmos.

E sempre vou descobrindo um poema ou outro que desconhecia, Sammy.

É bom não sabermos tudo, torna a vida mais curiosa. :)

Sammy, o paquete disse...

Nasci em 1945. Na Biblioteca do meu pai havia um único livro de poesia: «Poemas de Deus e do Diabo de José Régio. As «poesias» de que eu tinha conhecimento encontravam-se nas Selectas Literárias, escolhidas pelas gentes da ditadura salazarista, poesia de «última gaveta», ou pior ainda. Fui um dos muitos milhares e milhares que andaram a dividir orações, a fazer outras tropelias gramaticais, em «Os Lusíadas».
Um dia, ano de 1963, o meu pai levou para casa um livro: «Poesia Portuguesa do Pós Guerra», uma invenção do Vitor Silva Tavares com poemas selecionados por Afonso Cautela e Serafim Ferreira. Um livreiro, o Sr. Carvalho, da Livraria Clássica Editora, com porta aberta, nos Restauradores, ao lado do antigo Cinema Eden, disse ao meu pai que era melhor levar já o livro porque a Pide em breve o colocava «Fora do Mercado».
Passei a chamar-lhe a minha Bíblia Poética. Poetas de que nunca ouvira falar, uma linguagem poética que passei a entender como de outra galáctica. Os meus olhos esbarravam com a moderna poesia portuguesa e entendi que precisava de outros voos. Falei com o meu pai que não era quase nada de poesias. Ficou de esgravatar e falou com o Sr. Carvalho. Que de imediato lhe disse que a melhor possibilidade seria a Colecção «Poetas de Hoje» da Portugália Editora. E aos poucos, as possibilidades da família eram muito escassas, todos os volumes da Colecção, demorou o seu largo tempo, chegaram às prateleiras da Biblioteca da Casa.
A aventura começou, as conquistas umas atrás das outras.
E ficou este vício de todos os dias colocar um poema no Cais.
Tempo para agradecer as amáveis palavras.
Um abraço