sábado, 31 de março de 2018

OLHAR AS CAPAS




Novembro
Cadernos de Poesia

Poesias de António-Franco Alexandre, Fernando Assis Pacheco, Herberto Helder,
                   José Gomes Ferreira e Nuno Júdice

Coordenação de Casimiro de Brito e Gastão Cruz
Capa: Manuel Baptista
Edição dos Coordenadores, Lisboa, Novembro de 1972

Minha Pequenas Dúvidas e a Guerra


                               1

minhas pequenas dúvidas estabelecem
habitação violenta. furam pelos ossos,
espalham os dedos em volta, os caules
aquecidos do vento, roem
lentamente os pátios inertes,
instalam a dobra azul dos cotovelos,
resistem. Têm, ambígua, a elegância
elementar da água. Dobram
as espigas nos dentes,
conhecem o nervo
estendido no céu.
                            mexem
os dedos na gaveta, o calcário
das costas, vigiam com cuidado
as vísceras dos galos, a variável
rotação dos planetas; enquanto a galáxia
gira em si mesma intensamente inútil.
minhas pequenas dúvidas multiplicam os dentes,
decoram marx, passeiam o silêncio
pela trela. resistem,
furam pelos dedos, as vísceras
intensas do vento, estabelecem
cotovelos completos.
                                   têm
a violência constante dos ossos,
resistem, dobram lentamente
a trela das estrelas,
ferem as vísceras
inertes do silêncio, espalham
em volta a demasia oblíqua
das espigas nos pulsos. lêem
o jornal misturado à saliva, aprendem
sem ruído as máquinas da pele:
minhas pequenas dúvidas resistem
o calcário dos nervos,
                             estabelecem
habitação inútil,
dobram os ossos ao calor dos pátios.


                          2

 enquanto o coração se prende às cordas
cruzadas do silêncio, esmago
entre os dedos uma gota estreita de noite,
fecho os olhos ao gás das granadas em voo,
escrevo, rumino, peso as estrelas
ao fundo da garganta moída,
buscando entre polícias de dentes aos ombros
uma mancha de vento que nos sirva de céu
e um corpo que permita
o repouso velocíssimo do esperma.
                                          porque, entendes,
minhas pequenas dúvidas explodem
no ar balões de espiga, cotovelos
oblíquos, quando voam no pátio
as curvas variáveis da matraca.
uma ternura, entendes, uma ternura de ombros,
de cabelos completos, de nervos na água,
de dedos constantes ao calor dos ossos,
enquanto o coração se agarra à noite espessa
ou me conhece um caule de elegância nos pulsos.
                                    ternura, entendes,
é ter perdido voz
a granada que voa, pesada como
esta palavra: ternura, ao cair sobre a trela
elementar dos dias.
são ombros, entendes, um nervo cruzado,
a doce rotação
do sangue nos ossos,
o cansaço dos galos quando limpo
o suor anguloso das axilas,
um corpo respirado por dentro, junto à boca.


                                   3

minhas pequenas dúvidas embatem contra o chão
da gasolina ardida, moram
dentro da trela,
leram platão, arrastaram carroças,
cortaram de manhã as vísceras da água,
hesitam na carícia do corpo que se estende
e dobra sobre os ossos, como
uma fonte.
minhas pequenas dúvidas enumeram os dentes,
conhecem hegel, ultrapassam
oblíquamente os pulsos, procuram
habitação inerte.
minhas pequenas dúvidas pequenas
aconchegam no bolso um rato amargo,
vestem à pressa os ossos, aguardam
a rotação inútil dos planetas,
vigiam as estrelas moídas na garganta

                                     4

pornogràficamente acordo
com o sexo dentro da boca.
minhas pequenas dúvidas acendem luzes,
arames, fazem vibrar alarmes,
estabelecem gritos cruzados nos ossos,
abençoam granadas de dentro da janela,
acordam a polícia do seu sono oblíquo.
                              estabelecem
habitação de galos no silêncio.
minhas pequenas dúvidas arrancam os dedos
do chão, cortam as árvores,
alcatroam a alma,
                               proíbem
movimentos de mais de duas mãos.
avisaram de noite a presidência.
ferem a água, estabelecem
vísceras variáveis,
aconchegam um rato no calcário.
                                   pornograficamente
adormeço com o sexo dentro do bolso.
minhas pequenas dúvidas pequenas
abrigam-se do voo nas axilas do vento.

                                      5

minhas pequenas dúvidas não morrem. sei-as
dentro dos galos, vigiando a carroça
elementar  dos ossos,
agarradas ao nervo do silêncio.
resistem. furam pelos dentes,
espalham em torno o vento seco,
os caules, estabelecem
cotovelos inertes.

                     enquanto uma guerra
se prende às cordas
constantes da ternura,
minhas pequenas dúvidas desatam
os nós dentro da boca

                            6

madrugada, as lanternas apitam
a corrida dos dentes pela rua,
estamos contando os dedos que nos restam.
                                   não sei
se são de gás ou raiva
as lágrimas nos pulsos.
                                   ajudo-te
a despir, notando as cicatrizes
e algum piolho oculto.
minhas pequenas dúvidas cansadas
adormecem num bolso, e estamos nus.
                                       abraço-te
devagarinho, com as costas dos ossos,
dobrando os cotovelos na gaveta.

minhas pequenas dúvidas pequenas
sussurram junto ao chão,
movimentam espigas
sobre os nervos,
desejam vigilância.
                              minhas pequenas
dúvidas, minhas trelas miúdas,
sufocam numa névoa de granadas.
                   pouso
as asas angulosas no cimento.
dói-me na mão direita
uma falta de dedos, uma falta
de rios.
            pornogràficamente
adormecemos.

(Poema de António-Franco Alexandre)

sexta-feira, 30 de março de 2018

ATRÁS DE COPO, COPO VEM


Quando Ricardo Reis desceu para jantar, já perto das nove horas, conforme a si mesmo havia prometido, encontrou a sala deserta, os criados a conversarem a um canto, finalmente apareceu Salvador, mexeram-se os serventuários um pouco, é o que devemos fazer sempre que nos apareça o superior hierárquico, basta, por exemplo, descansar o corpo sobre a perna direita se antes sobre a esquerda repousava, muitas vezes não é preciso mais, ou nem tanto, E jantar, pode-se, perguntou hesitante o hóspede, claro que sim, para isso ali estavam, e também Salvador para dizer que não se admirasse o senhor doutor, na passagem do ano tinham em geral poucos clientes, e os que havia jantavam fora, é o réveillon, ou révelion, que foi a palavra, dantes dava-se aqui no hotel a festa, mas os proprietários acharam que as despesas eram grandes, desorganizava-se o serviço, uma trabalheira, sem falar nos estragos causados pela alegria dos hóspedes, sabe-se como as coisas acontecem, atrás de copo, copo vem, às tantas as pessoas não se entendem, e depois era o barulho, a agitação, as queixas dos que não tinham alegria para festas, que sempre os há, Enfim, acabámos com o révelion, mas tenho pena, confesso, era uma noite bonita, dava ao hotel uma reputação fina e moderna, agora é o que se está vendo, este deserto, Deixe lá, vai mais cedo para a cama, consolou Ricardo Reis, e Salvador respondeu que não, que sempre ouvia as badaladas da meia-noite em casa, era uma tradição da família, comiam doze passas de uva, uma a cada badalada, ouvira dizer que dava sorte para o ano seguinte, no estrangeiro usa-se muito, São países ricos, e a si, acha que lhe dá realmente sorte, Não sei, não posso comparar, se calhar corria-me pior o ano se não as comesse, assim seria, por estas e outras é que quem não tem Deus procura deuses, quem deuses abandonou a Deus inventa, um dia nos livraremos deste e daqueles, Tenho as minhas dúvidas, aparte que alguém lançou, ou antes ou depois, mas não aqui, que não se tomam tais liberdades com os dignos hóspedes.
(…)
Ricardo Reis sobe devagar a escada, cansado, parece a personagem daquelas rábulas de revista ou dos desenhos alusivos à época, ano velho carregado de cãs e de rugas, já com a ampulheta vazia, sumindo-se na treva profunda do tempo passado, enquanto o ano novo se aproxima num raio de luz, gordinho como os meninos da farinha lacto-búlgara, e dizendo, em infantil toada, como se nos convidasse para a dança das horas, Sou o ano de mil novecentos e trinta e seis, venham ser felizes comigo. Entra no quarto e senta-se, tem a cama aberta, água renovada na garrafa para as securas nocturnas, os chinelos sobre o tapete, alguém está velando por mim, anjo bom, obrigado. Na rua passa uma algazarra de latas, já deram as onze horas, e é então que Ricardo Reis se levanta bruscamente, quase violento, Que estou eu para aqui a fazer, toda a gente a festejar e a divertir-se, em suas casas, nas ruas, nos bailes, nos teatros e nos cinemas, nos casinos, nos cabarés, ao menos que eu vá ao Rossio ver o relógio da estação central, o olho da tempo, o ciclope que não atira com penedos mas com minutos e segundos, tão ásperos e pesados como eles, e que eu tenho de ir aguentando, como aguentamos todos nós, até que um último e todos somados me rebentem com as tábuas do barco, mas assim não, a olhar para o relógio, aqui, aqui sentado, sobre mim próprio dobrado, aqui sentado, e, tendo rematado o solilóquio, vestiu a gabardina, pôs o chapéu, deitou mão ao guarda-chuva, enérgico, um homem é logo outro homem quando toma uma decisão.

COMO EU COSTUMAVA DIZER


Como eu costumava dizer
o amor é mais difícil de nascer nos mais idosos
porque já percorreram
os mesmos velhos trilhos muitas vezes
e depois quando a manhosa agulha se apresenta não tomam o desvio
e devoram a velha via errada enquanto
o alegre
tandem segue em voo
e o maquinista da locomotiva a vapor não reconhece
as novas buzinas eléctricas
e os velhos correm sob o impulso ferrugento cujo fim se encontra
na erva morta onde
as latas ferrugentas e as molas de colchão e as lâminas de barbear usadas jazem
e a via acaba abruptamente ali mesmo
embora as chulipas de madeira continuem por uns metros
e os velhos
dizem para si próprios
Bem
Deve ser este sítio onde temos de nos deitar
E deitam-se mesmo
enquanto a bela carruagem iluminada prossegue lá ao longe
no alto no cimo da colina
com as janelas cheias de céu azul e namorados
com flores e longos cabelos ondulantes
e todos a rirem-se e a dizerem adeus
e a perguntarem-se a si próprios o que aquele cemitério
onde a via acaba
é

Lawrence Ferlinghetti em Como Eu Costumava Dizer

SEXTA-FEIRA SANTA


Numa sua crónica, João Bénard da Costa cita uma frase de Romano Guardini:

«O Cristo na Cruz! Ninguém conseguirá jamais perceber este mistério!»

Tão pouco sabia Bénard da Costa porque de «há muito longo tempo» reteve a frase.

E adiantava:

«Os mistérios só são mistérios porque ninguém os percebe e porque é estulto aquele que os tenta perceber. Cristo na Cruz, para qualquer cristão, é um mistério. Mas Cristo ressuscitado também. E, na esfera do mistério, não cabe o maior nem o menor. Quando não percebo, não posso perceber o tamanho do que não percebo. Se abro a porta para uma escuridão total, nunca poderei saber se essa escuridão é imensa ou atravessável em sete passos. A não ser que me enfie nela, o que não posso fazer pois que não tenho sustentação possível».

Semana Santa.

A entrada de Jesus em Jerusalém, a subida ao Monte Calvário, a morte e a ressurreição.

Vitória, cantam os cristãos católicos.

Porquê?

Dizem que é a vitória da vida sobre a morte.

«Ninguém conseguirá jamais perceber esse mistério.»

Ninguém!

Legenda: pintura de Paul Gauguin

quinta-feira, 29 de março de 2018

MALEITAS DE SE LHE TIRAR O CHAPÉU...


Ainda estamos com a carta que Mário-Henrique Leiria enviou a «Isabelinha, a doce menina do sorriso bonito».
Falava do espírito de Natal, mas também disto:

Tive fortes complicações, como deves supor, daí o não te ter escrito. Por os sítios onde andei fazendo “férias”, agarrei uma série de maleitas tropicais e sub-tropicais de se lhe tirar o chapéu, Assim apesar de ter conseguido recuperar-me mais ou menos, fiquei com um joelho (o direito) e um pé (o esquerdo) totalmente desarranjados, coisa que de vez em quando não me permite dar um passo e me chateia incrivelmente com dores. Creio que ficarei coxeando para o resto da vida, o que já não é nada mau, visto que sempre é andar. A mão direita de vez em quando fica do tamanho de um barril e, zás, não consigo nem pegar num lápis e o ombro esquerdo, por espírito de equipa, faz o mesmo. Bem, podia ser muito pior…
Passei também um período de fome, daquela que só se encontra nos romances neo-realistas de má qualidade. Fome mesmo, fome total… mas não morri. Quando voltei a esta santa cidade, a única coisa que arranjei foi vender de porta em porta. E agora vê lá tu o digno exemplo moral que eu sou: ao fim de seis meses tinha subido de vendedor de porta em porta a gerente técnico da Editora! Muito bonito! Passei por lay-out man, por art-director e agora aqui estou manobrando o departamento gráfico, contactos com litografias e tipografias, arranjos gráficos e etc. Eis um exemplo muito moral para ser citado no livro único da 3ª classe! Assim tenho um quarto numa casa de italianos e até almoço! E, às vezes, janto! Espantosos! É claro que todas estas histórias poderiam ser contadas longamente, com tragédia e muita dignidade mas, como sabes, não tenho jeito nenhum para isso. E é bom estar vivo, continuar a lutar, saber que existem muitas meninas como a Ann e muitas mamãs maravilhosas como tu.


Legenda: fotografia de João Freire em Lisboa ao Voo doPássaro

OLHAR AS CAPAS


F de Fiama

Fiama Hasse Pais Brandão
Capa: Vitor Paiva
Colecção Letra Viva nº 1
Editorial Teorema, Lisboa, Abril de 1986

Simétrico

Novembro tem o sol de verão no verso, na face,
e a varanda antiga assemelha-se a todas as imagens.
A tríade de seres que atravessa a praç
é actual, e senil como são os plátanos.
Só a escavação revela a gruta onde revejo sons. Sombras. Platão permite-me
negá-lo e rever olissipo neste tempo. Observo na toponímia os sítios
e a população  existe na antroponímia. Inicio o dia,
sendo na face e no verso já dezembro
e estou no claustro da praça, uma manhã.

quarta-feira, 28 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


Uma geração passa, e outra geração vem; mas a terra para sempre fica… O Sol sempre nasce, e o Sol se põe, e apressa-se para o lugar onde nasceu… O vento ronda ao sul, e volta a rondar ao norte; e o vento continuamente circula, e o vento volta de novo segundo os seus circuitos… Os rios correm para o mar; e o mar não transborda; ao lugar de onde os rios vieram, aí voltam mais uma vez.

Eclesiastes, citação utilizada por Ernest Hemingway em Fiesta

OS FRUTOS QUE ENCHEM A TERRA


Prometo que só ficarei atento
os séculos que forem necessários.
Atento nas promessas
que fazem os amigos
atento na justiça
com a paz na pista dos seus passos.

Vejam só que de frutos se enche a Terra.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

OLHAR AS CAPAS


O Sono da Morte

Dick Haskins
ASA Editores, Porto, Abril de 2002

Consegui encontrar-me com Mrs. Forrest, a «quase governanta» dos Morgan, for de River Garden, numa cervejaria de Windsor.
Mrs. Forrest era uma mulher alta e seca, feia como uma noite de trovões, de tal modo que tinha «assustado» e enterrado quatro maridos no curto espaço de vinte anos. Ao completar o meio-século, tivera o bom senso de decidir não meter medo a mais ninguém e de conservar o estado de viuvez. Tinha sido a partir daí, havia cerca de três anos, que se empregara em River Garden.
Se Mts. Forrest nada devia à beleza, a inteligência e a esperteza havaiam-lhe dado crédito ilimitado. Era uma mulher observadora, ponderada, que media cada palavra antes de a pronunciar. Em meia dúzia de frases apenas, Mrs. Forrest disse-me muito…

PAZ AOS MORTOS


Detestei sempre os arquitectos de infinito:
como é feio fugir quando nos espera a vida!
Nunca tive saudades do futuro
e o passado... o passado vivi-o, que fazer?!
- e não gosto que me ordenem venerá-los
se eu todo não basto a encher este presente.

Não tenho remorsos do passado. O que vivi, vivi.
Tenho, talvez, desprezo
por esta débil haste que raramente soube
merecer os dons da vida,
e se ficava hesitante
na hora de passar da imaginação à vida.

As pazadas de terra cobrindo o que já fui
sabem mal, às vezes; noutros dias
deliro quando lanço à vala um desses seres tristonhos
que outrora fui, sem querer. 

Adolfo Casais Monteiro

terça-feira, 27 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


Devem-se estacar sempre as árvores novas e as amizades velhas.

Miguel Torga em Diário, Volume XI

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

GRANDES DORES DE CABEÇA



Carta de António José Saraiva, datada de Lisboa 23 de Março de 1958, para Óscar Lopes:

Como se eu não tivesse já poucos problemas, outros me sobrevieram que me deram grandes dores de cabeça. O meu sócio da Guilda do Livro, faltando a um compromisso, recusou-se a pagar-me o fascículo que lhe entreguei na data combinada (o último dia de Fevereiro, por ele fixado). Sobre esse dinheiro assentava a minha vida, e contava com ele para cobrir dois meses passados de despesas. Isto colocou-me numa situação impossível. Tive de aceitar a ajuda dos meus pais e pedir um pequeno adiantamento sobre dinheiro a haver de um trabalho para a Sá da Costa. Fiquei fisicamente esfarrapado, cheio de frio, sucumbido, Cortei com o meu sócio e foram-se por água abaixo todos os planos de proventos editoriais.
Por outro lado tornaram-se mais agudos os problemas dos meus filhos, especialmente do mais velho. Estava e está ainda em grande depressão. Teve três negativas, entre elas um 7; em Física teve um 9, quando o ano passado tivera três 19.
Tudo isto me obrigou a procurar uma solução empírica para o meu problema. Mandei pôr um divã no meu escritório em casa, e durmo nele. Pus calaramente a questão à Maria Isabel. Só me encontro com ela à hora das refeições, enquanto não tiver dinheiro para comer fora de casa o maior número de vezes possível. Esta situação não me parece indefinidamente sustentável, nem digna, nem lógica. É um expediente a que me obrigou o receio de uma queda vertical do rapaz mais velho, juntamente com a falta de dinheiro.

LEITURAS


Terminámos a viagem por O Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry e apeteceu-me voltar ao princípio.
É um notável documento que reflecte as dificuldades dos intelectuais portugueses com a ditadura salazarista/caetanista.
As cartas, para além de outros temas político-culturais, referem também a troca de impressões que os autores foram trocando para reedições da História da Literatura Portuguesa.
Ressaltam também as mirabolâncias políticas, as dificuldades económicas de António José Saraiva em contraste com a serenidade de Óscar Lopes.

NOTÍCIAS DO CIRCO


OLHAR AS CAPAS


O Sorriso Aos Pés Da Escada

Henry Miller
Prefácio: Vitor Silva Tavares
Tradução: Célia Henriques e Vitor Silva Tavares
Capa: Tocha de Sousa
Editora Ulisseia, Lisboa, Dezembro de 1966

Todas as noites, ao aplicar o maquillage, Augusto discutia com os seus botões. As focas, não importa o que fossem obrigadas a fazer, permaneciam sempre focas. O cavalo, um cavalo; a mesa, uma mesa. Augusto, embora permanecendo um homem, era obrigado a tornar-se em algo mais: tinha de assumir os poderes de um ser excepcional dotado de um excepcional talento. Tinha de fazer rir as pessoas. Não era difícil fazê-las chorar, tão-pouco fazê-las rir; descobrira isso há muito tempo, antes mesmo de sequer ter entrado para o circo. Mais altas, porém, eram as suas ambições – queria dotar os espectadores de uma alegria que se revelasse imperecível. Foi esta obsessão que primeiramente o levou a sentar-se aos pés da da escada e simular o êxtase. Caindo, por mero acaso, na imitação de um transe – esquecera-se do que iria fazer a seguir. Quando voltou a si, um tanto confuso e em extremo apreensivo, encontrou-se a ser aplaudido freneticamente.

CARTAZ TURÍSTICO


Portugal
país de pirâmides
de sal

Podeis vê-las aqui, na Ribeira do tejo.

Desfilam à cabeça das mulheres
num faraónico cortejo
entre as fragatas e o cais.

Mas sal, Tejo e manhã
é luz demais: Cegamos.
Nasce um fosfeno de cristais.

Nasce o silêncio da Sedução.

É quando se ouve mais
o canto
da carregação.

José Fernandes Fafe em Poesia Amável

Legenda: fotografia de Artur Pastor

segunda-feira, 26 de março de 2018

AGORA SÃO SÓ PEDAGOGIAS?NÃO TEM ESCRITO NADA?


Ensinar como simples ganha-pão é repugnante. E era o que então fazia. Num colegiozinho de má morte, ao Bairro Alto, onde o não ter o curso concluído nem possuir qualquer diploma para o ofício permitia ao director pagar-me o que bem lhe parecia. Um director de truz, bigodeira de pontas reviradas, bata branca, que também dava a sua au­la, sim senhor, mas se ocupava muito mais com vender aos cachopos cadernos, lápis, rebuçados... Artigo 1.° (pensava eu, imaginando leis fundamen­tais que deveria haver): é expressamente proibida qualquer forma de negócio em matéria de ensino. Mas só mais tarde sentiria a grande revelação: en­sinar de verdade (forma excelsa de comunicação), reaprender sempre a ensinar, ensinar a ensinar. Como um profissional. Indispensável. Mas também como uma dádiva feliz e inteira, exactamente igual à que exige o acto de criar seja o que for. Depois disso, raras vezes ensinei com sacrifício. Não direi «nunca». Mentiria. O normal era, contudo, fazê-lo com verdadeira entrega interior e algum êxito, pa­rece. Desde a escola do ensino técnico onde verda­deiramente assentei praça (ainda aí só quase ganha--pão, mas já só quase), ao trabalhoso e abençoado estágio, interrompido durante dezoito anos (malhas que o Império tecia...), aos longos anos no parti­cular — não tinha outra saída —, ao ensino secun­dário oficial, em vários dos seus escalões, à meto­dologia, à Comissão de Estudo da Reforma Educa­tiva, a que presidi, logo após o 25 de Abril (era ainda ensinar, era ainda paixão), enfim, à Faculda­de, onde a história acabou quando tinha de acabar.
Nunca consegui convencer deste prazer e sobretudo da sua utilidade os escritores meus amigos. Eles viam na maneira absorvente como ao ensino me entregava a mais indesculpável das infidelida­des. Que assim não podia ser. Que eu não nascera «para aquilo». Nascera «para mais», pensavam eles. E enchia-me de tristeza que não pudessem perceber. O Ferreira de Castro, por exemplo, quan­do, no Verão, estando ele em Sintra e eu em Galamares, nos encontrávamos com bastante frequên­cia: «Cuidado! Não deixe passar a idade. O tempo voa...» Mas os «piores» eram o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira, o Cochofel. Porque com estes estava eu todos os dias, tinha-os ali à perna. O Carlos —olha quem! — nem pensar em desar­mar. «Então agora são só pedagogias?» Irónico, implacável. E logo sério, com a amizade do costu­me: «Mas não tem escrito nada? Mesmo nada?» Como se o mundo fosse acabar por isso. Já publi­cara aliás grande número dos meus livros. E men­tia para mudar de assunto. Mas não mentia muito. Na verdade, escrever era o meu vício. Andava às voltas, havia perto de três anos, com o Não há Morte nem Princípio, cujo original ele, a seu tem­po, leria com o empenho que só os amigos sabem o que é. Com o mesmo com que eu lia os dele, cheios ainda de emendas, papelinhos colados, a in­satisfação em carne viva.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: retrato de Carlos de Oliveira da autoria de Mário Dionísio

OLHAR AS CAPAS


Burlescas, Teóricas e Sentiemtais

Mário Cesariny
Colecção Forma nº 7
Editorial Presença, Lisboa, Julho de 1972

Rua do Ouro

Ai dele que tanto lutou e afinal
Está tão só. Tão sòzinho. Chora.
DIRECÇÃO DA COMPANHIA TANTOS DO TAL.
Cinquenta e três anos. Chove, lá fora.

Chora, porquê? Ora, chora.
Uma crise de nervos, coisa passageira.
É, talvez, pela mulher que o adora?
(A ele ou à carteira?)

Seis horas. Foi-se o pessoal.
O homem que venceu está sòzinho.
Mas reage: que diabo…Afinal...
E olha para o cofre cheínho.

Sim estou só ainda bem porque não? ele diz
Batendo com os punhos na mesa.
Lutei e venci. Sou feliz
E bate com os punhos na mesa.

Seis e meia. Ó neurastenia
O homem que venceu está de borco
E sente uma grande agonia
Que afinal é da carne de porco
que comeu no outro dia.

É da carne de porco ele diz
Vendo a chuva que cai num saguão.
É da carne de porco. Sou feliz.
E ampara a cabeça com as mãos.

Durante toda a vida explorou o semelhante.
Por causa dele arruinaram-se uns cem.
Agora, tem medo. E o farsante
Diz que é feliz diz que está muito bem.

Sim, reage. Que diabo. Terei medo?
E vê as horas no relógio vizinho.
Mas, ai, não é tarde nem cedo.
Ele, que venceu, está sòzinho.

Venceu quem? Venceu o quê? Venceu os outros
Os outros, os que o queriam vencer!
Arruinou-os, matou-os aos poucos.
Então não o queriam lá ver?

Sim, reage: Esta noite a Leonor
Amanhã de manhã o Salemos
e depois? Ah o novo motor
veremos, veremos, veremos

Mas pouco do que diz tem sentido.
Tudo hoje lhe é vago uniforme miudinho.
O homem que venceu está vencido.
O dinheiro tapou-lhe o caminho.

Os filhos? Esperam que ele morra.
A mulher? espera que ele morra.
O sócio? Pede a Deus que ele morra!
Só a Anita não quer que ele morra!

Ai, maldita carne, murmura
Vendo a água que há no saguão.
Tinha demasiada gordura!
E chora de desilusão.

Passa os olhos pelo lenço. Acabou-se.
Vai sair. Talvez vá jantar?
É inverno. Lá fora, faz frio.

O homem que venceu matou-se
Na margem mais escura do rio
Ao volante dum belo Packard

domingo, 25 de março de 2018

ANTÓNIO ANDRADE ALBUQUERQUE (1929-2018)


Na quarta-feira, com 88 anos, morreu Dick Haskins.

De seu nome António Andrade Albuquerque, Dick Haskins foi um autor de romances policiais com livros traduzidos em mais de 30 países.

«Eu estava à procura do pseudónimo e gostei de um nome que vi. Era o de um ator inglês, o Jack Hawkins, só que fiz confusão com o nome. Mais tarde é que venho a descobrir que ele não se chamava Haskins como eu pensava, mas Hawkins.»

Fui um apaixonado leitor dos seus livros de bolso, publicados na Ática Editora num formato similar aos da Colecção Vampiro.

Esses livros, juntamente com os da Colecção XIS e Vampiro, pertenciam à biblioteca do meu pai.

O meu pai lia mais que um livro ao mesmo tempo, mas um era sempre um romance policial. Ainda guardo a mala preta com que partia para férias, carregada com livros policiais.

Herdei umas boas dezenas dos livros da Colecção Vampiro, cujas capas tenho vindo a apresentar, principalmente as de Cândido Costa Pinto que são as de que mais gosto.

Mas às minhas mãos não chegou qualquer dos livros de Dick Haskins.

O descaminho desses livros tem uma explicação.

Naqueles tempos o meu pai tinha alguns amigos que estavam presos por actividades contra a ditadura.

Os únicos livros que deixavam entrar em Caxias eram os romances policiais, e nem todos.

Por motivos vários muitos livros não regressaram à origem.

Na quinta-feira fui até à Livraria Pó dos Livros que irá fechar portas no próximo dia 31.

Mais uma livraria que se perde.

Num daqueles imprevistos do quotidiano, encontrei O Sono da Morte de Dick reeditado pela Editora ASA em 2002, enquanto a 1ª edição da Ática é de 1958.

Desconhecia que Haskins morrera na véspera mas resolvi comprá-lo como registo do último livro comprado na Pó dos Livros.

Será capa na próxima quarta-feira, que é dia de Olhar as Capas dos romances policiais cá da casa.

LOURENÇO MARQUES REVISITED


A água que murmura espectros lentos
O que houve e não houve e não volta nunca mais
Os quartos sem esperança que os guardasse
As casas sem anjo da guarda

A luz intensa bela e dolorosa
A adolescência dilacerada
A ternura dezoito anos recusada
Na casa dos Átridas
O crime horroroso que não houve
Mas as feridas abriram manaram um sangue

Que penetra implacável as fendas do sono
E me deixa acordado à beira da estrada
Com lágrimas que percorrem
Trinta e quatro anos

Lourenço Marques, 11 de Fevereiro de 1963

Alberto Lacerda em Exílio

sábado, 24 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


Somos donos do tempo apenas quando o tempo se esquece de nós.

Mia Couto

REPREENSÃO


Depois de fuzilado
ao levar
o tiro na nuca pra acabar
chateou-se
e viu-se obrigado
a explicar
ao major
que comandava o pelotão
que o tinha fuzilado
por favor
preste atenção
e não me obrigue a repetir
a repreensão
na próxima vez
que mandar matar
dê tempo ao morto
para gritar
convicto
um último viva a revolução

Mário-Henrique Leiria em Contos do Gin-Tonic

sexta-feira, 23 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


Por mim, penso que Raul Brandão é um dos nossos pouquíssimos escritores merecedores de exportação.

José Saramago

Legenda: retrato de Raul Brandão por Columbano Bordalo Pinheiro

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Raul Brandão é um dos escritores abordados na troca de Correspondência entre José Saramago e José Rodrigues Miguéis.

José Rodrigues Miguéis, carta datada de 10 de Abril de 1961, informa que mandou para a Gazeta Musical e de Todas as Artes, um artigo sobre Raul Brandão.

Em carta, datada de 12 de Maio de 1961, Saramago escreve:

Espero com o maior interesse o seu artigo sobre o Raul Brandão, que é uma das maiores e mais velhas admirações minhas em literatura. Um livro como Húmus, por exemplo, como é possível que tanta gente o ignore? Não percebo, palavra. Falava o Régio, já aqui há tempos, no mau gosto de certas passagens. Bolas! Sempre gostava que me dissessem onde há, nos livros do Régio, às vezes de uma pieguice muito professor-de-liceu-em-cidade-da-província, algo que iguale em ternura aquelas «mãos como cepos» da Joana, dessa criação única da nossa literatura que é a mulher da esfrega! «Há sonhos humildes que ninguém quer sonhar: servem à Joana que quando os usa os vira do avesso.» Quantas vezes exprimiu assim a frustração um escritor português, uma frustração que nega até o direito a sonhos próprios?...

E em outra carta, datada de 30 de Junho de 1961, Saramago volta a Raul Brandão:

Saiu a Gazeta, dedicada ao Raul Brandão. Esperava outra coisa. Evocações a mais, e não o estudo lúcido que venha pôr Raul Brandão no altíssimo lugar que lhe compete. O Joel Serrão tê-lo-á tentado, mas falta-lhe sensibilidade e também audácia de dar às coisas os seus nomes: Raul Brandão é dos maiores criadores (não digo escritor) da nossa literatura, se não estou enganado, como diria António Sérgio, ou o seu discípulo Rogério Fernandes (no estilo, entenda-se). Por mim, penso que Raul Brandão é um dos nossos pouquíssimos escritores merecedores de exportação.


( Texto publicado em  5 de Março de 2017).

OLHAR AS CAPAS



Humus

Raul Brandão
Renascença, Porto, 22 de Dezembro de 1917
Edição fac-simile do jornal Público, Março 2018

 Debaixo d’ estes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapal-a, escondel-a, esquecel-a. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criyptogamica, nascida ao acaso n’um sítio húmido. Teem o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente e d’um dia para o outro n’um palmo do Universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrencia phosphorescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vicios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
 As paixões dormem, o riso postiço creou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutralisa, e só um ruído sobreleva, o da morte que tem deante de si o tempo ilimitado para roer. Ha aqui odios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada anno minam um palmo. A paciencia é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a côr da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manhã anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparencia é a insignificancia a lei da vida: é a insignificancia que governa a vila. É a paciencia, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciencia - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. - Tem paciencia - e rodeia, volta atrás, espera ano atráz de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciencia... paciencia... Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil côres e toda a gente a acha agradável. - Pois sim... pois sim.

OUVE VOU DIZER-TE


ouve vou dizer-te
abre com os dedos uma cereja
daquelas de fazer brinco quando a brisa é boa
tira-lhe o caroço
verás como isso é arrancar o coração do tempo
o carmesim do suco
é o choro e o riso
dos que se amam impacientes e belos

Abel Neves em Resumo: a poesia em 2012

quinta-feira, 22 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos.

COMPANHIA


Passava a noite sentado diante do espelho para fazer companhia a mim próprio.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

OLHAR AS CAPAS


Notícias do Bloqueio
Nº 3

Direcção literária: Egito Gonçalves, Daniel Filipe, Papiniano Carlos
                                 Luís Veiga Leitão, António Rebordão Navarro
Gráfica: Álvaro A. Portugal
Xilogravuras: Altino Maia
Porto, Dezembro de 1957

Aos Homens Que Virão
Trad. M.D.E.

Nós, que haveis de entender, no futuro, o trabalho
como o doce sabor da desejada festa,
quando ele for para vós arte, paixão, vitória,
- quando o poeta vê no seu próprio poema –

pensai, então, em nós com carinhosa estima;
em nós que, trabalhando como bestas de carga,
entregues a tarefas monótonas, iguais,
deixamos que a tristeza marcasse o nosso olhar.

Ah!, como vós – sabei – nós amamos a vida
e, apesar disso, deste inferno, não quisemos
chorar lágrimas vãs, deixar morrer a esperança.

Ah, sim! Profundamente amamos a alegria,
como vós – as pequenas e grandes alegrias
de que a maior foi abrir-vos o caminho.

Poema de Guillevic

quarta-feira, 21 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


Nunca sabemos o que sabemos, onde começa a nossa recordação e acaba a dos outros, o que lembramos hoje é sempre o que da última vez lembrámos, são falsas todas as memórias.
E tudo se mistura, um sonho, um facto, uma recordação, vários pontos acrescentados que formam uma constelação defeituosa – tudo feito da mesma matéria, uma esponja, cheia de lapsos e interstícios, e às vezes quando se espreme sai uma gota a custo, outras, um jorro torrencial.

Ana Margarida Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

Legenda: fotografia de Eric Vance

JÁ NÃO ESTOU AQUI A FAZER NADA


Mas é melhor não dar razão aos crentes para que nos chamem pateta. O corpo é um todo que funciona como uma máquina e que, por isso, tem que ter a sua fonte de energia. A fonte parou, a energia esgotou-se e o sistema deixou de funcionar. Isso não tem nada a ver com alma. A alma é a parte de toda essa máquina. Morreu o corpo e a alma disse para consigo: Bem. Já não estou aqui a fazer nada. E saiu.
A alma não faz mover as pernas nem os braços mas decide que se mexam. É a alma que nos define como seres pensantes, que determina os nossos sentimentos, que impõe os nossos comportamentos, as nossas decisões, as nossas opiniões, nós somos ela. O nosso corpo é matéria. Não é o corpo que pensa, que decide, que tem sentimentos. É ela, a nossa alma. Quando a máquina do corpo deixa de funcionar, por razões meramente técnicas, a alma sai do corpo porque já não tem condições para actuar.
Quanto ao possuidor dessa alma, segundo o nosso código de sentimentos, se for boa pessoa diz-se que é uma “boa alma”, se for má pessoa diz-se que é um “desalmado”.

Rómulo de Carvalho em Memórias

OLHAR AS CAPAS


Fumo Sem Fogo

Jacques Decrest
Tradução: Lima de Freitas
Capa: Cândido da Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 60
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Gilles contemplou a assinatura durante um momento. Era simples e seguida de uma linha ligeiramente ascendente, sem complicações.
A escrita corria, sobre as folhas de papel, ao mesmo tempo leve e precisa, rápida e um pouco ziguezagueante,
«O vôo de uma borboleta,» pensou ele subitamente
Era exacto. A imagem inopinada acorrera-lhe sem reflexão, mas exprimia perfeitamente a sua ideia. A ortografia desta Irène Auderac evocava o arabesco de uma borboleta que adeja.
Meteu a carta na algibeira, levantou-se e deu três passos em direcção à janela do seu escritório. A água, no pequeno bocado deserto do Sena que avistava dali, estava azul. Pela primeira vez nesse ano o céu sobre Paris tomava uma cor de Primavera. No entanto fazia frio. «O friozinho seco e agradável,» diz o povo.

GRAÇA/PRAZERES


Por aqui vivi outras manhãs
a caminho dum emprego pontual
arrepiado à porta da PIDE
duas vezes por dia todos os dias.

Mesmo ao domingo por aqui passava ou
para o cinema para o futebol
havia uma linha pela Rua Augusta
e ia até ao Rossio – só ao domingo.

Assembleias gerais na Voz do Operário
Alguns mortos queridos nos Prazeres
Eu próprio que morri aos poucos nesta linha
E até Fernando Pessoa tem uma paragem
porque a aldeia dos sinos da minha aldeia
é aqui e não como eu vi nos livros escolares
uma aldeia vulgar como o romantismo queria.

José do Carmo Francisco em Transporte Sentimental

Legenda: fotografia de Robert Blombáck