Ensinar como simples ganha-pão é repugnante.
E era o que então fazia. Num colegiozinho de má morte, ao Bairro Alto, onde o
não ter o curso concluído nem possuir qualquer diploma para o ofício permitia
ao director pagar-me o que bem lhe parecia. Um director de truz, bigodeira de
pontas reviradas, bata branca, que também dava a sua aula, sim senhor, mas se
ocupava muito mais com vender aos cachopos cadernos, lápis, rebuçados... Artigo
1.° (pensava eu, imaginando leis fundamentais que deveria haver): é
expressamente proibida qualquer forma de negócio em matéria de ensino. Mas só
mais tarde sentiria a grande revelação: ensinar de verdade (forma excelsa de
comunicação), reaprender sempre a ensinar, ensinar a ensinar. Como um
profissional. Indispensável. Mas também como uma dádiva feliz e inteira,
exactamente igual à que exige o acto de criar seja o que for. Depois disso,
raras vezes ensinei com sacrifício. Não direi «nunca». Mentiria. O normal era,
contudo, fazê-lo com verdadeira entrega interior e algum êxito, parece. Desde
a escola do ensino técnico onde verdadeiramente assentei praça (ainda aí só
quase ganha--pão, mas já só quase), ao trabalhoso e abençoado estágio,
interrompido durante dezoito anos (malhas que o Império tecia...), aos longos
anos no particular — não tinha outra saída —, ao ensino secundário oficial,
em vários dos seus escalões, à metodologia, à Comissão de Estudo da Reforma
Educativa, a que presidi, logo após o 25 de Abril (era ainda ensinar, era
ainda paixão), enfim, à Faculdade, onde a história acabou quando tinha de
acabar.
Nunca consegui convencer deste prazer e sobretudo da sua
utilidade os escritores meus amigos. Eles viam na maneira absorvente como ao
ensino me entregava a mais indesculpável das infidelidades. Que assim não
podia ser. Que eu não nascera «para aquilo». Nascera «para mais», pensavam
eles. E enchia-me de tristeza que não pudessem perceber. O Ferreira de Castro,
por exemplo, quando, no Verão, estando ele em Sintra e eu em Galamares, nos
encontrávamos com bastante frequência: «Cuidado! Não deixe passar a idade. O
tempo voa...» Mas os «piores» eram o Carlos de Oliveira, o José Gomes Ferreira,
o Cochofel. Porque com estes estava eu todos os dias, tinha-os ali à perna. O
Carlos —olha quem! — nem pensar em desarmar. «Então agora são só pedagogias?»
Irónico, implacável. E logo sério, com a amizade do costume: «Mas não tem
escrito nada? Mesmo nada?» Como se o mundo fosse acabar por isso. Já publicara
aliás grande número dos meus livros. E mentia para mudar de assunto. Mas não
mentia muito. Na verdade, escrever era o meu vício. Andava às voltas, havia
perto de três anos, com o Não há Morte nem Princípio, cujo original ele, a seu
tempo, leria com o empenho que só os amigos sabem o que é. Com o mesmo com que
eu lia os dele, cheios ainda de emendas, papelinhos colados, a insatisfação em
carne viva.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: retrato de Carlos
de Oliveira da autoria de Mário Dionísio
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