Que será,
interroga-se Ricardo Reis, mas não se atreve a fazer a pergunta em voz alta,
acha que onde tanta gente se reuniu por uma razão de todos conhecida, não é
lícito, e talvez seja impróprio, ou indelicado, manifestar ignorância, podiam
as pessoas ficar ofendidas, nunca há a certeza de como vai reagir a
sensibilidade dos outros, e como teríamos tal certeza, se a nossa própria
sensibilidade se comporta de maneira tantas vezes imprevisível para nós que
julgávamos conhecê-la. Ricardo Reis alcançou o meio da rua, está defronte da
entrada do grande prédio do jornal O Século, o de maior expansão e circulação,
a multidão alarga-se, mais folgada, pela meia-laranja que com ele entesta, respira-se
melhor, só agora Ricardo R eis deu por que vinha a reter a respiração para não
sentir o mau cheiro, ainda há quem diga que os pretos fedem, o cheiro do preto
é um cheiro de animal selvagem, não este odor de cebola, alho e suor recozida,
de roupas raro mudadas, de corpos sem banho ou só no dia de ir ao médico,
qualquer pituitária medianamente delicada se teria ofendido na provação deste
trânsito. A entrada estão dois polícias, aqui perto outros dois que disciplinam
o acesso, a um deles vai Ricardo Reis perguntar, Que ajuntamento é este, senhor
guarda, e o agente de autoridade responde com deferência, vê-se logo que o perguntador está aqui por um acaso, É o
bodo do Século, Mas é uma multidão, Saiba vossa senhoria que se calculam em
mais de mil os contemplados, Tudo gente pobre, Sim senhor, tudo gente pobre,
dos pátios e barracas, Tantos, E não estão aqui todos, Claro, mas assim todos
juntos, ao bodo, faz impressão, A mim não, já estou habituado, E o que é que
recebem, A cada pobre calha dez escudos, Dez escudos, É verdade, dez escudos, e
os garotos levam agasalhos, e brinquedos, e livros de leitura, Por causa da
instrução, Sim senhor, por causa da instrução, Dez escudos não dá para muito,
Sempre é melhor que nada, Lá isso é verdade, Há quem esteja o ano inteiro à
espera do bodo, deste e dos outros, olhe que não falta quem passe o tempo a
correr de bodo para bodo, à colheita, o piar é quando aparecem em sítios onde
não são conhecidos, outros bairros, outras paróquias, outras beneficências, os
pobres de lá nem os deixam chegar-se, cada pobre é fiscal doutro pobre, Caso
triste, Triste será, mas é bem feito, para aprenderem a não ser aproveitadores,
Muito obrigado pelas suas informações, senhor guarda, Às ordens de vossa
senhoria, passe vossa senhoria por aqui, e, tendo dito, o polícia avançou três
passos, de braços abertos, como quem enxota galinhas para a capoeira, Vamos lá,
quietos, não queiram que trabalhe o sabre. com estas persuasivas palavras a
multidão acomodou-se, as mulheres murmurando como é costume seu, os homens
fazendo de contas que não tinham ouvido, os garotos a pensar no brinquedo, será
carrinho, será ciclista, será boneco de celulóide, por estes dariam camisola e
livro de leitura. Ricardo Reis subiu a rampa da Calçada dos Caetanos, dali
podia apreciar o ajuntamento quase à vol d'oiseau, voando baixo o pássaro, mais de mil, o polícia calculara
bem, terra riquíssima em pobres, queira Deus que nunca se extinga a caridade
para que não venha a acabar-se a pobreza, esta gente de xale e lenço, de
surrobecos remendados, de cotins com fundilhos doutro pano, de alpargatas,
tantos descalços, e sendo as cores tão diversas, todas juntas fazem uma nódoa
parda, negra, de lodo mal cheiroso, como a vasa do Caís do Sodré. Ali estão, e
estarão, à espera de que chegue a sua vez, horas e horas de pé, alguns desde a
madrugada, as mães segurando ao colo os filhos pequenos, dando de mamar aos da
sazão, os pais conversando uns com os outros em conversas de homens, os velhos
calados e sombrios, mal seguros nas pernas, babam-se, dia de bodo é o único em
que se lhes não deseja a morte, por causa do prejuízo que seria. E há febres
por aí, tosses, umas garrafinhas de aguardente que ajudam a passar o tempo e
espairecem do frio. Se volta a chover, apanham-na toda, daqui ninguém arreda.
Sem comentários:
Enviar um comentário