Eu sei o que sinto, e penso, e digo, não é comum, e que todos, de modo
geral, desejariam viver eternamente. Foi esse desejo um dos motivos porque se
fabricou esse anestésico que se chama religião. As religiões garantem a
eternidade, e a eternidade é angustiosamente desejada. Compreendo que assim
seja. Quando se olha um ser humano estendido no seu caixão, acorrem-nos ao pensamento
muitas interrogações. Mas este homem, ou mulher, está ali estendido, tem tudo
quanto tinha, cabeça, tronco e membros, tem por dentro também tudo quanto
tinha, o coração, o fígado, o cérebro, tudo, e não se mexe! Porque é que não se
mexe? Por- que não anda, não fala, não olha? Que lhe falta? O sangue nele não
circula. Mas porquê? Falta-lhe uma coisa qualquer que lhe punha o sangue e,
movimento, e daí poderia estar vivo. Mas que coisa é essa?
Evidentemente que a inevitabilidade destas interrogações, que devem ser
de todos os tempos e de todos os seres humanos, sempre exigiu uma resposta.
Falta-lhe, sem dúvida, uma coisa qualquer. Essa coisa estava no corpo, enquanto
vivo, e deixou de estar. Saiu dele. Saiu dele no momento em que a pessoa
morreu. O último suspiro é isso, a saída dessa coisa pela boca do candidato a
morto. Saiu, morreu. Mas que coisa é essa? Não se vê sair nada pela boca porque
essa coisa é invisível. Saiu e ninguém viu nada. Mas saiu, “evidentemente”, e
por isso a pessoa morreu. Temos que lhe dar um nome para falarmos nela quando
quisermos. Chamou-se-lhe alma.
Rómulo de Carvalho em
Memórias
Sem comentários:
Enviar um comentário