Ainda pelo Brasil, a
30 de Abril de 1963, Mário-Henrique escreve à «distante Maruska, doce como o olhar das gazelas do Volga»:
Fazes o favor de não me escreveres mais como escreveste na tua última
carta, sim? Já viste um cão vadio e magro que rosna e morde constantemente,
quando lhe fazem uma festa na cabeça? Fica com uns olhos muito humildes e
encosta-se à perna de quem, finalmente, lhe deu um pouco de ternura. Pois é
Isabel, foi como eu fiquei quando recebi a tua carta… só me faltou dar ao rabo.
E olha, Isabelinha querida, ternura e amizade são coisas dolorosas demais
quando se está totalmente só. por favor, não tenhas mais palavras de ternura
para mim, não digas outra vez que eu sou o amigo que te resta, não me contes
onde está o meu cachimbo e o teu isqueiro (e foi tão doce saber que alguma coisa
resta de mim numa casa onde há amor e felicidade!...) Desculpa isto, mas estou
quase estoirado e não quero ter que ficar com os olhos com uma nuvem de água ao
sentir o teu carinho distante. É uma vergonha, Beliska, é uma vergonha chorar
de saudade. Não pode ser… Isabel, é tão difícil continuar assim, vivo e vazio,
com tudo perdido, cada vez mais perdido! Tenho que acreditar furiosamente no
Partido, no meu Partido, para poder continuar. Um comunista não se mata, não
pode matar-se, senão é um traidor. Mas passar os dias agarrado a uma ideia, só
a uma ideia, para poder continuar vivo, é difícil, muito difícil. Há sempre o
recurso do whisky e do brandy, que isso o Partido não proíbe. Quase todos os
dias (isto é, todas as noites) apanho a minha sólida bebedeira, assim, às vezes
até consigo dormir.
Mário-Henrique Leiria
em Depoimentos Escritos
Legenda: imagem de
René Magritte
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