domingo, 4 de março de 2018

NÃO ME CONTES ONDE ESTÁ O MEU CACHIMBO...



Ainda pelo Brasil, a 30 de Abril de 1963, Mário-Henrique escreve à «distante Maruska, doce como o olhar das gazelas do Volga»:

Fazes o favor de não me escreveres mais como escreveste na tua última carta, sim? Já viste um cão vadio e magro que rosna e morde constantemente, quando lhe fazem uma festa na cabeça? Fica com uns olhos muito humildes e encosta-se à perna de quem, finalmente, lhe deu um pouco de ternura. Pois é Isabel, foi como eu fiquei quando recebi a tua carta… só me faltou dar ao rabo. E olha, Isabelinha querida, ternura e amizade são coisas dolorosas demais quando se está totalmente só. por favor, não tenhas mais palavras de ternura para mim, não digas outra vez que eu sou o amigo que te resta, não me contes onde está o meu cachimbo e o teu isqueiro (e foi tão doce saber que alguma coisa resta de mim numa casa onde há amor e felicidade!...) Desculpa isto, mas estou quase estoirado e não quero ter que ficar com os olhos com uma nuvem de água ao sentir o teu carinho distante. É uma vergonha, Beliska, é uma vergonha chorar de saudade. Não pode ser… Isabel, é tão difícil continuar assim, vivo e vazio, com tudo perdido, cada vez mais perdido! Tenho que acreditar furiosamente no Partido, no meu Partido, para poder continuar. Um comunista não se mata, não pode matar-se, senão é um traidor. Mas passar os dias agarrado a uma ideia, só a uma ideia, para poder continuar vivo, é difícil, muito difícil. Há sempre o recurso do whisky e do brandy, que isso o Partido não proíbe. Quase todos os dias (isto é, todas as noites) apanho a minha sólida bebedeira, assim, às vezes até consigo dormir.

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

Legenda: imagem de René Magritte

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