sábado, 17 de março de 2018

DESTINOS


Filho único, não cheguei, porém, a contrair as maleitas de tão vantajosa situação, ou depressa de­las me curei. Mas não ponho as mãos no fogo. Quem sabe se uma sensibilidade às vezes exagerada (nunca tive vergonha de chorar, se é caso disso) não virá daí mesmo?
Sem pai aos onze anos (tinha ele trinta e qua­tro), sem avô paterno aos quinze (o materno já lá ia há muito), sem mãe aos dezassete (tinha ela trin­ta e oito), vivendo depois com uma avó atingida por doença mental, que uns tios haviam de levar para sua casa, longe, cedo me vi completamente só, cercado pelos tais lobos do homem, aliás exce­lentemente engravatados, os pequenos, melífluos sorrisos, mão rapace. Senhores! Como é que, com dezassete anos e a exclusiva experiência de menino de família, se administra um prédio a cair aos bo­cados, ainda por cima hipotecado — era a heran­ça —, e se lida com usurários que exibem na pare­de, por trás da secretária, este dístico solerte que nunca mais esqueci: «A melhor maneira de perder um amigo é emprestar-lhe dinheiro»? O caminho era vender, vender depressa, ainda que ao desbara­to, pagar tudo e mais que fosse e, depois, ficar roendo o que restasse. Se alguma coisa restasse.
Foi então com certeza que nasceu em mim para todo o sempre o horror ao mundo dos negócios, o conceito de explorado e explorador (muito antes de ler Marx), a ânsia quixotesca de transformar a vida (nem de nome conhecia ainda Lenine), a descober­ta de que o trabalho é a única solução para quem, não preferindo suicidar-se, queira viver com algu­ma dignidade numa sociedade que a não tem. Mas trabalhar em quê?
Houve aqui um factor decisivo. O desapareci­mento dos meus pais, ambos tão jovens e em tais circunstâncias. Ele, em Africa, por falta de meios de tratamento. Ela, em Lisboa, por erro de diag­nóstico: tinha uma pleurisia e tratavam-na de cál­culos nos rins! Vêm-me acordar, alta noite, «meni­no, menino, a sua mãe!», corro ao hospital, ouço-a dizer — ou julgo ter ouvido — «sê sempre bom, meu filho», descem-lhe a cama articulada, enquan­to o dia desponta, atalham-lhe os queixos, como se aquilo não fosse já a minha mãe e não era, a ver­dade é que não era. Eis o que explicará aquela an­gústia, aquele cepticismo tão pouco próprios da idade. Uma visão do mundo alheia a toda a espe­rança, que a versalhada que fazia bem deixaria ver, se, com louvável e oportuna sensatez, a não tivesse rasgado. O mais negro do Antero é que me sabia bem. E o Nobre, está claro. Embora já não fosse meu livro de cabeceira. Mas tanta desventura deu--me afinal (cinicamente se diria: há males que vêm por bem) a felicidade suprema de poder escolher.

A família destinara-me a Direito. E lá tinha as suas razões, sobre as quais ninguém me ouvira. Assim se usava ao tempo. Mas agora, que podia fazer de mim o que quisesse (nem sempre é doce a liberdade), de modo algum me apanhariam em Di­reito. Escolher o que menos rende? Por que não? Era Letras o que eu queria. Letras escolhi, com algum equívoco, sem dúvida.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Mário Dionísio com 9 anos. Fotografia do catálogo «Passageiro Clandestino»

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