Filho único, não cheguei, porém, a contrair as maleitas de tão
vantajosa situação, ou depressa delas me curei. Mas não ponho as mãos no fogo.
Quem sabe se uma sensibilidade às vezes exagerada (nunca tive vergonha de
chorar, se é caso disso) não virá daí mesmo?
Sem pai aos onze anos (tinha ele trinta e quatro), sem avô paterno aos
quinze (o materno já lá ia há muito), sem mãe aos dezassete (tinha ela trinta
e oito), vivendo depois com uma avó atingida por doença mental, que uns tios
haviam de levar para sua casa, longe, cedo me vi completamente só, cercado
pelos tais lobos do homem, aliás excelentemente engravatados, os pequenos,
melífluos sorrisos, mão rapace. Senhores! Como é que, com dezassete anos e a
exclusiva experiência de menino de família, se administra um prédio a cair aos
bocados, ainda por cima hipotecado — era a herança —, e se lida com usurários
que exibem na parede, por trás da secretária, este dístico solerte que nunca
mais esqueci: «A melhor maneira de perder um amigo é emprestar-lhe dinheiro»? O
caminho era vender, vender depressa, ainda que ao desbarato, pagar tudo e mais
que fosse e, depois, ficar roendo o que restasse. Se alguma coisa restasse.
Foi então com certeza que nasceu em mim para todo o sempre o horror ao
mundo dos negócios, o conceito de explorado e explorador (muito antes de ler
Marx), a ânsia quixotesca de transformar a vida (nem de nome conhecia ainda
Lenine), a descoberta de que o trabalho é a única solução para quem, não
preferindo suicidar-se, queira viver com alguma dignidade numa sociedade que a
não tem. Mas trabalhar em quê?
Houve aqui um factor decisivo. O desaparecimento dos meus pais, ambos
tão jovens e em tais circunstâncias. Ele, em Africa, por falta de meios de
tratamento. Ela, em Lisboa, por erro de diagnóstico: tinha uma pleurisia e
tratavam-na de cálculos nos rins! Vêm-me acordar, alta noite, «menino,
menino, a sua mãe!», corro ao hospital, ouço-a dizer — ou julgo ter ouvido —
«sê sempre bom, meu filho», descem-lhe a cama articulada, enquanto o dia
desponta, atalham-lhe os queixos, como se aquilo não fosse já a minha mãe e não
era, a verdade é que não era. Eis o que explicará aquela angústia, aquele
cepticismo tão pouco próprios da idade. Uma visão do mundo alheia a toda a esperança,
que a versalhada que fazia bem deixaria ver, se, com louvável e oportuna
sensatez, a não tivesse rasgado. O mais negro do Antero é que me sabia bem. E o
Nobre, está claro. Embora já não fosse meu livro de cabeceira. Mas tanta
desventura deu--me afinal (cinicamente se diria: há males que vêm por bem) a
felicidade suprema de poder escolher.
A família
destinara-me a Direito. E lá tinha as suas razões, sobre as quais ninguém me
ouvira. Assim se usava ao tempo. Mas agora, que podia fazer de mim o que
quisesse (nem sempre é doce a liberdade), de modo algum me apanhariam em Direito.
Escolher o que menos rende? Por que não? Era Letras o que eu queria. Letras
escolhi, com algum equívoco, sem dúvida.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: Mário Dionísio
com 9 anos. Fotografia do catálogo «Passageiro Clandestino»
Sem comentários:
Enviar um comentário