Pelo menos, uma vez
por semana, para ir buscar um dos netos ao colégio, tenho que passar pela Igreja
dos Anjos.
Em frente está a
chamada «Sopa dos Pobres»
Aos anos que a sei
ali.
E sempre, mas sempre,
recordo a comovida evocação que José Saramago lhe faz no 2º volume dos Cadernos
de Lanzarote e já aqui transcrita.
Num artigo de Ângela Caires publicado na Visão, sobre
António Champalimaud, leio que o tio Henrique Sommer, em carta com valor
testamentário dirigida às manas Albana e Maria Luísa, lhes recomendava que não
se esquecessem de distribuir, pelo Natal, dois contos de réis à Sopa dos Pobres
da Freguesia dos Anjos, de Lisboa. Naturalmente, o generoso Sommer (que em
glória esteja) desejava que não sofresse mudança, depois do seu passamento, a
beneficente prática que instituíra.
Quem poderia imaginar que esta informação, escrita ao
correr da pena, viria lançar uma luz nova sobre a minha biografia secreta? De
facto, não foram poucas as vezes, no tempo da adolescência, que ocupei um
envergonhado lugar na fila de aspirantes à sopa e ao quarto de pão que se
serviam naquele atarracado e soturno edifício fronteiro à Igreja dos Anjos…
Mais ou menos por essa altura devo ter aprendido na aula de Física e Química da
Escola Industrial Afonso Domingues o princípio dos vasos comunicantes, mas só
hoje é que consegui perceber, sem reservas mentais nem dúvidas formais, como se
efectua a transmissão da riqueza e do bem-estar dos que estão em cima para os
que estão em baixo, do conto de réis para o quarto de pão, da fartura para
falta. Por muitos que fossem os seus pecados, Henrique Sommer nunca ficaria no
inferno, sempre haveria uma concha da sopa para o tirar de lá…
Jardim dos Anjos, Lisboa.
Há uns anos retiraram todos os bancos do jardim.
Tinham-se transformado em entreposto de compra e venda de droga, poiso
de prostitutas.
Os negócios continuam, mas agora há, que a pé firme, aguardar a chegada
de clientes.
Num desses bancos, nas Recordações da Casa Amarela, o destroçado João
de Deus mantém um delicioso diálogo com um sem-abrigo.
Sentados, olham o edifício da Sopa dos Pobres.
- Tem um cigarrinho?
- Hum?...
- Um cigarrinho…
(Longa pausa)
- Já abriu!
- Hum?
- Já abriu!
- Tal é a comida?
- Não é má, mas ao fim de quatro dias cansa… Tem cartão? É preciso ter
cartão. O senhor tem que ir à Junta de Freguesia do seu bairro e pedir um
cartão… igual a este.
- Quem não tem cartão?
- Se o refeitório não estiver chão talvez o porteiro o deixe entrar,
caso contrário é melhor arranjar um ali à porta, com meia nota é de caras.
- Ai é?
(Pausa)
- Vou andando. Não gosto de chegar no fim, fica-se à espera de mesa e a
comida arrefece num instante.
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