Quando Ricardo Reis desceu para jantar, já perto das nove horas,
conforme a si mesmo havia prometido, encontrou a sala deserta, os criados a
conversarem a um canto, finalmente apareceu Salvador, mexeram-se os
serventuários um pouco, é o que devemos fazer sempre que nos apareça o superior
hierárquico, basta, por exemplo, descansar o corpo sobre a perna direita se
antes sobre a esquerda repousava, muitas vezes não é preciso mais, ou nem
tanto, E jantar, pode-se, perguntou hesitante o hóspede, claro que sim, para
isso ali estavam, e também Salvador para dizer que não se admirasse o senhor
doutor, na passagem do ano tinham em geral poucos clientes, e os que havia
jantavam fora, é o réveillon, ou révelion, que foi a palavra, dantes dava-se
aqui no hotel a festa, mas os proprietários acharam que as despesas eram
grandes, desorganizava-se o serviço, uma trabalheira, sem falar nos estragos
causados pela alegria dos hóspedes, sabe-se como as coisas acontecem, atrás de
copo, copo vem, às tantas as pessoas não se entendem, e depois era o barulho, a
agitação, as queixas dos que não tinham alegria para festas, que sempre os há,
Enfim, acabámos com o révelion, mas tenho pena, confesso, era uma noite bonita,
dava ao hotel uma reputação fina e moderna, agora é o que se está vendo, este
deserto, Deixe lá, vai mais cedo para a cama, consolou Ricardo Reis, e Salvador
respondeu que não, que sempre ouvia as badaladas da meia-noite em casa, era uma
tradição da família, comiam doze passas de uva, uma a cada badalada, ouvira
dizer que dava sorte para o ano seguinte, no estrangeiro usa-se muito, São
países ricos, e a si, acha que lhe dá realmente sorte, Não sei, não posso
comparar, se calhar corria-me pior o ano se não as comesse, assim seria, por
estas e outras é que quem não tem Deus procura deuses, quem deuses abandonou a
Deus inventa, um dia nos livraremos deste e daqueles, Tenho as minhas dúvidas,
aparte que alguém lançou, ou antes ou depois, mas não aqui, que não se tomam
tais liberdades com os dignos hóspedes.
(…)
Ricardo Reis sobe
devagar a escada, cansado, parece a personagem daquelas rábulas de revista ou
dos desenhos alusivos à época, ano velho carregado de cãs e de rugas, já com a
ampulheta vazia, sumindo-se na treva profunda do tempo passado, enquanto o ano
novo se aproxima num raio de luz, gordinho como os meninos da farinha
lacto-búlgara, e dizendo, em infantil toada, como se nos convidasse para a
dança das horas, Sou o ano de mil novecentos e trinta e seis, venham ser
felizes comigo. Entra no quarto e senta-se, tem a cama aberta, água renovada na
garrafa para as securas nocturnas, os chinelos sobre o tapete, alguém está
velando por mim, anjo bom, obrigado. Na rua passa uma algazarra de latas, já
deram as onze horas, e é então que Ricardo Reis se levanta bruscamente, quase
violento, Que estou eu para aqui a fazer, toda a gente a festejar e a
divertir-se, em suas casas, nas ruas, nos bailes, nos teatros e nos cinemas,
nos casinos, nos cabarés, ao menos que eu vá ao Rossio ver o relógio da estação
central, o olho da tempo, o ciclope que não atira com penedos mas com minutos e
segundos, tão ásperos e pesados como eles, e que eu tenho de ir aguentando,
como aguentamos todos nós, até que um último e todos somados me rebentem com as
tábuas do barco, mas assim não, a olhar para o relógio, aqui, aqui sentado,
sobre mim próprio dobrado, aqui sentado, e, tendo rematado o solilóquio, vestiu
a gabardina, pôs o chapéu, deitou mão ao guarda-chuva, enérgico, um homem é
logo outro homem quando toma uma decisão.
José Saramago em OAno da Morte de Ricardo Reis
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