sexta-feira, 23 de março de 2018

OLHAR AS CAPAS



Humus

Raul Brandão
Renascença, Porto, 22 de Dezembro de 1917
Edição fac-simile do jornal Público, Março 2018

 Debaixo d’ estes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapal-a, escondel-a, esquecel-a. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criyptogamica, nascida ao acaso n’um sítio húmido. Teem o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente e d’um dia para o outro n’um palmo do Universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrencia phosphorescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vicios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
 As paixões dormem, o riso postiço creou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutralisa, e só um ruído sobreleva, o da morte que tem deante de si o tempo ilimitado para roer. Ha aqui odios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada anno minam um palmo. A paciencia é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a côr da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manhã anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparencia é a insignificancia a lei da vida: é a insignificancia que governa a vila. É a paciencia, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciencia - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. - Tem paciencia - e rodeia, volta atrás, espera ano atráz de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciencia... paciencia... Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil côres e toda a gente a acha agradável. - Pois sim... pois sim.

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