Humus
Raul Brandão
Renascença, Porto, 22
de Dezembro de 1917
Edição fac-simile do
jornal Público, Março 2018
Debaixo d’ estes tectos, entre cada quatro
paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho
insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de
pequenas coisas diante da vida. Tapal-a, escondel-a, esquecel-a. O sino toca a
finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em
que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse
restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de
mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criyptogamica,
nascida ao acaso n’um sítio húmido. Teem o seu rei, as suas paixões e um
cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente e d’um dia para o
outro n’um palmo do Universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os
mesmos saes, exhalam os mesmos gazes, e supuram uma escorrencia phosphorescente,
que corresponde talvez a sentimentos, a vicios ou a discussões sobre a
imortalidade da alma.
As paixões dormem, o riso postiço creou cama, as
mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia
pegajosa envolve e neutralisa, e só um ruído sobreleva, o da morte que tem deante
de si o tempo ilimitado para roer. Ha aqui odios que minam e contraminam, mas
como o tempo chega para tudo, cada anno minam um palmo. A paciencia é infinita
e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a côr da pedra e todos os dias
cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a
manhã anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na
aparencia é a insignificancia a lei da vida: é a insignificancia que governa a
vila. É a paciencia, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: -
Tem paciencia - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo
que a esmoreça. - Tem paciencia - e rodeia, volta atrás, espera ano atráz de
ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado.
Paciencia... paciencia... Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil côres e
toda a gente a acha agradável. - Pois sim... pois sim.
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