sexta-feira, 9 de março de 2018

A PÁTRIA AGRADECIDA VOS CONTEMPLA


Na rua Andrade, número dois, rés-do-chão, ao canto do piano. Eis o que, em garoto, invariavel­mente respondia a quem me perguntava: onde é que tu nasceste? Ouvira qualquer coisa parecida, transformara-a. As pessoas gostavam de ouvir a patetice. Faziam-me repeti-la. Eu repetia-a. Ainda sem saber que 1916 havia de carregar-se deste pe­so todo nos meus ombros, confundindo, para mim, esse ano dos princípios do século com o começo do Mundo. Ano de guerra mundial — a «Gran­de»! — por onde o meu pai andou a fazer não sei o quê.
(…)
O aluno pouco mais que medíocre no liceu tomava corpo nas salas penumbrosas da antiga Faculdade de Le­tras, afinava a própria voz e ensaiava gloriazinhas locais. Embora nem tudo fossem rosas, longe dis­so. E mesmo as rosas têm espinhos, toda a gente o sabe bem. Dum desaire importante e bastante ines­perado ficou-me só a pobre consolação de ter sido o primeiro a pronunciar em sessão pública naquela velha Casa, o nome de Pessoa. Bem antes, pois, de nascer e se espalhar por esse mundo fora o culto «pessoano», a que nos sentimos hoje todos obriga­dos, no duplo sentido da palavra. Estava-se em 1938 e era um trabalho bem modesto, apressado, superficial, uma pretensa introdução à leitura da «Ode Marítima». Para pouco mais que analfabetos. Coisas de que ainda coro. E se o arguente (Agos­tinho de Campos) lhe teceu, ao contrário do que eu esperava, tão desmedidos elogios, e perante tan­ta gente, só pude e posso atribuí-lo à audácia do tema, que era ali, também para ele, completa novidade. Já entretanto publicara, ainda no liceu, uma revista, Prisma, que só tivera um número, como merecia, e dois livrinhos (dois livrecos) que viria a riscar da minha tábua bibliográfica, tão verdes me haviam de parecer em breve. Sonetos e sonetilhos por aqui e por ali. Já fundara, co-dirigira e pagina­ra, em 34, o semanário Gleba. Já entrara para a redacção de Liberdade, a convite da gente mais des­temida desse tempo, tal como sucedeu, no mesmíssimo dia, ao Álvaro Cunhal, logo a seguir, ao Magalhães Vilhena. Como, anos depois, em 39, com um grupo maior, o grupo propriamente dito, ficaria à testa de O Diabo, escrevendo talvez de mais e, ao mesmo tempo, enviando o que podia ao Sol Nascente e a tudo o mais que aparecesse. En­fim, a pátria agradecida vos contempla.

Mário Dionísio em Autobiografia

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