Na rua Andrade, número dois, rés-do-chão, ao canto do piano. Eis o que,
em garoto, invariavelmente respondia a quem me perguntava: onde é que tu
nasceste? Ouvira qualquer coisa parecida, transformara-a. As pessoas gostavam
de ouvir a patetice. Faziam-me repeti-la. Eu repetia-a. Ainda sem saber que
1916 havia de carregar-se deste peso todo nos meus ombros, confundindo, para
mim, esse ano dos princípios do século com o começo do Mundo. Ano de guerra
mundial — a «Grande»! — por onde o meu pai andou a fazer não sei o quê.
(…)
O aluno pouco mais que medíocre no liceu tomava corpo nas salas
penumbrosas da antiga Faculdade de Letras, afinava a própria voz e ensaiava
gloriazinhas locais. Embora nem tudo fossem rosas, longe disso. E mesmo as
rosas têm espinhos, toda a gente o sabe bem. Dum desaire importante e bastante
inesperado ficou-me só a pobre consolação de ter sido o primeiro a pronunciar
em sessão pública naquela velha Casa, o nome de Pessoa. Bem antes, pois, de
nascer e se espalhar por esse mundo fora o culto «pessoano», a que nos sentimos
hoje todos obrigados, no duplo sentido da palavra. Estava-se em 1938 e era um
trabalho bem modesto, apressado, superficial, uma pretensa introdução à leitura
da «Ode Marítima». Para pouco mais que analfabetos. Coisas de que ainda coro. E
se o arguente (Agostinho de Campos) lhe teceu, ao contrário do que eu
esperava, tão desmedidos elogios, e perante tanta gente, só pude e posso
atribuí-lo à audácia do tema, que era ali, também para ele, completa novidade.
Já entretanto publicara, ainda no liceu, uma revista, Prisma, que só tivera um
número, como merecia, e dois livrinhos (dois livrecos) que viria a riscar da
minha tábua bibliográfica, tão verdes me haviam de parecer em breve. Sonetos e
sonetilhos por aqui e por ali. Já fundara, co-dirigira e paginara, em 34, o
semanário Gleba. Já entrara para a redacção de Liberdade, a convite da gente
mais destemida desse tempo, tal como sucedeu, no mesmíssimo dia, ao Álvaro
Cunhal, logo a seguir, ao Magalhães Vilhena. Como, anos depois, em 39, com um
grupo maior, o grupo propriamente dito, ficaria à testa de O Diabo, escrevendo
talvez de mais e, ao mesmo tempo, enviando o que podia ao Sol Nascente e a tudo
o mais que aparecesse. Enfim, a pátria agradecida vos contempla.
Mário Dionísio em Autobiografia
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