segunda-feira, 4 de setembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Não devem restar dúvidas de que As Pequenas Memórias é um livro maravilhoso.

De uma simplicidade cativante regista o quase tudo da formação de que fará de José Saramago o escritor, o cidadão que conhecemos:

«Nunca fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz da mesma idade e de posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com o anzol a chumbada e a bóia de cortiça atados ao fio de pesca, nada que se parecesse com os artefactos modernos que por ali haveriam de aparecer mais tarde e que cheguei a ver em mãos de alguns amadores locais quando já era crescido e me havia deixado de ilusões piscatórias. Como consequência, as minhas capturas sempre se reduziram a uns poucos pampos, barbos uma raridade e pequenos, e muitas horas passadas em vão (em vão, a bem dizer, nenhuma, porque, sem que me desse conta, ia «pescando» coisas que no futuro não viriam a ser menos importantes para mim, imagens, cheiros, rumores, aragens, sensações). Ao sol, se não castigava demasiado, ou à sombra de algum salgueiro chorão, à espera de que o peixe picasse. Em geral, sentado à beira de água, operava no «rio da minha aldeia», o Almonda, ao fim da tarde, porque com os grandes calores já se sabia que os peixes se metiam nas locas e não vinham ao isco. Outras vezes, de um lado ou do outro da desembocadura do nosso rio, e em algumas assinaladas ocasiões, remando para mais longe, atravessava o Tejo para a margem sul, e aí me deixava ficar, abrigado pela maracha como se estivesse debaixo de um dossel, que era como mais gostava. Os pescadores eméritos da terra gabavam-se de ter os seus próprios métodos, as suas estratégias, as suas artes mágicas, que geralmente duravam uma temporada para logo darem lugar a outros métodos, a outras estratégias, a outras mágicas artes sempre mais eficazes que as anteriores. Nunca cheguei a beneficiar de nenhuma delas.»  

Legenda: fotografia de Winslow Homer

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