Um livro pode ler-se de tantas maneiras.
O gosto de ler, depois o gosto de reler, fornece
cambiantes diversas.
Quantas vezes, um livro nos revela algo que, na
primeira leitura, nos passou despercebido, ou a que não dedicámos a atenção devida.
Há livros que gosto de ler devagar, muito devagar e
onde navega sempre o medo de chegar ao fim. Saudades do tempo que passei a ler
o livro. O livro está sempre à mão, voltar atrás e ler mas já não é o mesmo
tempo a mesma surpresa. Não perguntem porquês porque não sei explicar. Apenas o
medo de chegar ao fim…Algo tão velho como dizer:
Os meus livros estão abundantemente sublinhados.
Vou pegar em alguns, trazê-los aqui, e copiar pedaços
que resultaram de segunda ou terceira leituras. Nos pontos de exame de Português,
havia aquele momento: Comente o seguinte
texto.
Assim se vai chamar.
Começo com Miguel Torga.
Miguel Torga não é um
escritor que me entusiasme. Provavelmente nunca o soube ler. Mas do que
escreveu, os Diários são o que me despertaram mais a atenção.
Lamento de José
Saramago no momento da morte de Miguel Torga;
«Não conheci Miguel Torga. Nunca o procurei, nunca lhe
escrevi. Limitei-me a lê-lo, a admirá-lo muitas vezes, outras não tanto. Foi só
de leitor a minha relação com ele. Algumas vezes, nestes últimos tempos, os
nossos nomes apareceram juntos, e sempre que tal sucedia não podia evitar o
pensamento de que o meu lugar não era ali. Por uma espécie de superstição
induzida pela pessoa que foi e pela obra que criou? Não creio. O motivo é
certamente muito mais subtil do que aquele que se poderia deduzir de um mero
balanço de qualidades suas e defeitos meus. Achava que havia em Torga algo que
eu gostaria de ter, e não tinha: o direito ganho por uma obra com uma dimensão
em todos os sentidos fora do comum, a música profunda de uma sabedoria que
nascera da vida e que à vida voltava, para não se tornarem, ambas, mais ricas e
generosas. Que Torga não era generoso, dizem-no. Mas eu falo de outra
generosidade, a que se entranha nesse movimento de vaivém que em raríssimos
casos une o homem à sua terra e a terra toda ao homem.
Demasiado cedo morreu Miguel Torga. Compreendo agora
quanto gostaria de tê-lo conhecido. Demasiado tarde».
Volta e meia, pego
num qualquer volume do Diário, e folheio.
No 1º volume, há uma
entrada, 10 de Novembro de 1939, a que, na primeira leitura, não liguei a
atenção necessária, ter-me-á passado despercebido, ou os tempos de leitura, a
idade em que os lemos, deitam outros olhos à prosa, mas encerra uma sabedoria
que cativa, uma verdade eterna, como
a classifica Torga.
«Mais duas horas de
prosa.
Uma coisa sêca,
retalhada, sem nenhuma grandeza. A-pesar-de ter a consciência disso, suei
honradamente aquelas quatro páginas, E, afinal, é o que é precisos. Puxar,
puxar, até o corpo não poder mais e cair de vez. Dar à vida, numa palavra, o
que a vida pede: cada momento cheio de qualquer esfôrço.
Quando eu era
pequeno, havia em casa de meu pai, no cimo dum lameiro, uma costeira que era só
fraga; e meu pai, na vessada, cavava também aquêle bocado, que nunca deu sequer
feijão chícharo. Só com dez anos de vida, sem conhecer o pavor dos retalhos de
tempo, preguntava-lhe eu, já cansado:
- Mas porque é que
cava também isto?
E êle, como quem sabia
uma verdade eterna:
- Para se acabar o dia.»
O pai de Miguel Torga
era um cavador, um enorme apego à terra, S. Martinho da Anta de seu nome,
província de Trás-os-Montes. Saberia ler e escrever, não sei ao certo, o resto,
diz-nos Torga: um homem duro, duma dureza
quase agressiva, e rijo, e fero, de homem sem medo aos dias.
Homens de verdades e
sabedorias únicas, palavras e ensinamentos que transcendem as normalidades quotidianas.
Onde é que as
aprenderam?
Tal como José
Saramago, em Estocolmo, quando recebeu o Nobel da Literatura, disse ao Mundo:
«O homem mais sábio
que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.»
O seu avô Jerónimo, «um homem sem oportunidades, talvez um
Einstein perdido sob uma camada espessa de impossíveis, um filósofo, um grande
escritor analfabeto.
Momentos, palavras que encerram a beleza de gestos que prolongam a vida.»
«Para se acabar o dia», a verdade, o esplendor que fica.
Legenda: a fotografia que mostra o pai, a irmã e a mãe de Miguel Torga foi tirada do livro Miguel Torga de José de Melo, Colecção A Obra e o Homem nº 3 da Editora Arcádia.
2 comentários:
É verdade, Sammy.
Há livros que lemos cedo demais, outros tarde de mais... E há também a vidinha, há livros que não são para ler com determinado estado de espírito.
Ainda este fim de semana o editor Valente escreveu sobre o Torga (parece que não gostava de dar livros...) no Expresso.
Mas continuo a gostar mais dos escritores que escrevem bons livros que daqueles que têm sorrisos bonitos. :)
Quando agora li o texto, a terra não tinha nada para dar, o Torga com 10 anos a pensar, se aquilo não dava nada, para que o pai nela mexia. É quando o pai responde: «para se acabar o dia».
É uma frase fabulosa que entrou por mim dentro e desarrumou uma série de sentimentos, ou lá o que seja, talvez coisa nenhuma. Quais as razões de não ter dado pela frase quando aos 17 anos li o livro? Porque aos 17 anos, falta-nos muito caminhar de vida, «o pavor dos retalhos de tempo», como diz o Torga. Lembro-me de o meu pai dizer que a velhice era boa para reler. Nunca compreendi muito bem o alcance do que ele queria dizer. Porque não sabia que se fazem determinado tipo de coisas para «acabar o dia».
Se pegar nos livros da casa, e os reler, encontrarei dezenas e dezenas, de casos como este. Teimar, insistir, insistir para repetir, e não só.
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