O avô era um tipo assaz curioso, patusco mesmo. Por chalaça, por um certo gosto anarquista, apresentava-se às pessoas como: «Mário Santos – benfiquista, republicano histórico e anticlerical».
Tinha um béguin pelo Johnny Guitar de
Nicholas Ray, aquele diálogo fabuloso em que Vienna pede a Johnny para lhe
contar mentiras, que ainda a ama como ela o ama e o velho vaqueiro, a filosofar
sobre Johnny: tal como ele disse, só precisa de um café e de uma boa
cigarrada.
Este disco existe porque pediu ao filho que lhe arranjasse a canção tema do
filme.
Naqueles tempos a oferta de bandas sonoras era quase nula, o filho não
encontrou a interpretação da Peggy Lee e comprou esta versão, em espanhol,
cantada pela Juanita Cuenca, uma soberba capa amarela, uma fotografia como
mandavam as regras.
O avô morreu com 85 anos e nunca conseguiu entender-se com o “pick-up”. Quando
lhe dava a saudade dizia: «eh pá! Põe a tocar o Johnny Guitar».
Na estante onde estão os LPs, puxados ligeiramente 5 ou 6 para fora, está
lá pendurado o boné – Donegal Tweed Woven in Ireland – que foi
o último que o pai usou.
Tem dias, mas principalmente noites, que sente que o pai anda por aí, a
solicitar um whisquinho e a dizer: «Eh! Pá põe lá o «Johnyy Guitar” para o teu e eu
avô ouvirmos»
«Play the guitar, play it again, my Johnny, maybe you're cold, but you're so
warm inside.»
E
uma nostalgia do tamanho do mundo apodera-se da prosa.
Johnny Guitar é cantado em espanhol e está identificado como sendo
um «bolero afrocubano». O disco tem ainda: Mis Manos, que é a
versão espanhola de uma velha canção do Gilbert Bécaud, um fado fox, Lejana
Lisboa, assinado por A. Angel e Garcia Cote, e Faustina, um
baião que, no antigamente, muito no antigamente, era tocado, dezenas de vezes,
na mesma noite, nos bailes lá de casa.
3 comentários:
Uma pérola preciosa!
O tempo exacto para agradecer as amáveis palavras que vai deixando por aqui ao longo dos dias.
O nosso trabalho começa por ser um divertimento, uma maneira de estar, e o intuito de divulgar o que vamos vendo, ouvindo e lendo.
Se quiser que lhe diga, há alturas em que, perante alguns textos, nos interrogamos: «o que Seve nos terá para dizer?»
Sabemos por palavras suas que odeia o mercantilismo do Natal. Mas, no meio desta calamidade epidémica, queremos desejar-lhe, se possível,um Bom Ano.
Caro Amigo Sammy (curioso-às vezes nem precisamos de ver as pessoas para sentirmos afinidades com elas-), O CAIS DO OLHAR é já uma rotina (quase indispensável) do meu dia a dia!
Agradeço os seus votos de um bom ano e eu desejo-vos também um Bom Ano com alegria e muita, muita saúde.
Um abraço fraterno.
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