Boaventura de Sousa Santos.
"Os mercados cometem crimes contra a humanidade"
O Prémio Nobel Paul Krugman diz que os mercados são um bando de miúdos de 20 e tal anos, bêbados e encharcados em cocaína...
São um bando de criminosos, que andam por aí muito bem vestidos, mas são uns mafiosos. Não há dúvida que se trata de um crime contra a humanidade, porque estão a lançar para a fome populações inteiras, para que uns poucos enriqueçam de uma maneira escandalosa. Estive em Nova Iorque e na 5.a Avenida bateram-se os recordes de venda dos produtos mais caros. Voltaram a abrir as carteiras, têm dinheiro como nunca em Wall Street, aqueles que produziram a crise.
O professor tinha dito que o neoliberalismo tinha falido, mas afinal...
Aí quase tenho de me retratar. Nunca imaginei que o neoliberalismo tivesse canibalizado tanto os estados. O neoliberalismo nacionalizou os estados, os bancos nacionalizaram os estados, não foram os estados que nacionalizaram os bancos. Passou a ideia de que um banco não pode falir. As empresas podem falir, um banco não pode falir. Faliram todos com a Grande Depressão nos EUA, mas nos últimos anos souberam como controlar os estados e começaram por fazer isso nos EUA. Quem é que nos últimos 20 anos financiou as campanhas nos EUA? Wall Street. A campanha do Obama? Wall Street. Quem é que Obama nomeia para seu consultor financeiro mais íntimo? Timothy Geithner. De onde vem Timothy Geithner? De Wall Street. Os abutres dos mercados financeiros estão a destruir a riqueza do mundo para se enriquecerem escandalosamente sem nenhum controlo e há-de haver um momento em que o povo, os governos, vão dizer basta. E os portugueses, quando começarem a sentir no bolso e na cabeça, e não só no bolso, estas medidas que vão começar a ser aplicadas.
O Presidente da República tem dito que não se deve achincalhar os mercados porque eles podem reagir contra nós...
Penso que o senhor Presidente da República está equivocado. Não há outra solução para a Europa que não seja a regulação financeira. Os mercados vão destruir o bem-estar das populações, criar um empobrecimento geral do mundo, para o enriquecimento de poucos. É necessária uma regulação forte. Não digo que seja igual àquela que se viveu nos anos 60 - quando uma empresa de Nova Iorque não poderia investir em Nova Jérsia, que fica do outro lado do rio. Mas hoje os mercados estão globalizados e os estados são nacionais, e ainda por cima não se unem. Aconselho o professor Cavaco Silva a abrir os jornais: na Grécia os juros estão a 12,5% - obviamente o país nunca vai pagar aquela dívida - apesar do dinheiro que lá se injectou.
Vamos ter confrontos sociais na rua no próximo ano?
É muito difícil prever essa situação porque não há uma relação directa entre o agravamento das desigualdades e a confrontação social. Portugal esteve metade do século xx sem democracia. Há uma cultura autoritária, de obediência, de medo. Foram 50 anos em que os outros países todos organizavam movimento sociais, sindicatos, e em Portugal nada aconteceu. Não pensemos que isto se curou nestes últimos 40 anos porque foram anos demasiadamente fáceis. Até 1974 tínhamos colónias, ficámos sozinhos 10/12 anos e em 1986 já éramos parte da Europa. Mas estou convencido que, no momento em que estas medidas se agravarem, vamos ter uma maior organização social e sobretudo sofreremos o contágio europeu. Vai haver obviamente mais contestação na Europa. É dessa contestação que vai surgir o golpe de asa de que precisamos e vamos tê-lo por pressão popular.
Nas ruas?
Nas ruas. No princípio de 2000, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, que faleceu recentemente, fez uma coisa que o transformou num pária. Achou que parte da dívida do país era ilegítima e disse aos credores: "Eu pago-vos, se aceitarem, por cada dólar que vos devo, 30 cêntimos. Agora os outros esqueçam!" O Fundo Monetário Internacional achou um escândalo. Disse que Kirchner era um "pária", que a "Argentina não cumpre". A verdade é que a Argentina fez isso mesmo. Os credores tiveram de aceitar. A Argentina levantou a cabeça e fez o seu desenvolvimento económico. Quando morreu Néstor Kirchner, a primeira coisa que fiz foi ir à página do FMI para ver o que dizia. E lá estava um elogio enorme do FMI pela capacidade de pôr a economia da Argentina de novo a crescer. Porque é que Kirchner se recusou a pagar a divida? Por pressão popular.
Uma mudança de governo poderia fazer diferença?
Nas actuais circunstâncias do panorama político, não faz nenhuma. E se fizer, neste momento, será para pior. Olhamos para o programa do PSD e o que está a ser praticado e é o quê? Mais privatização? Fim do Serviço Nacional de Saúde? São mais ou menos as medidas que o Fundo Monetário Internacional vai instituir quando aqui chegar. E vai chegar? Incrivelmente, há aí muitos tontos, economistas trauliteiros, que tenho hoje muita dificuldade em respeitar, que até parece que desejam isso. Mas desejam--no porque têm boas reformas, bons empregos, foram ministros ou estão em grandes empresas, são aqueles que não serão nada atingidos por essas medidas. Mas a maioria dos portugueses vai ser duramente atingida, porque são medidas cegas, que passam por privatizar tudo. Vejo comentadores, analistas, sociólogos deste país a dizerem que nós ainda dependemos muito do Estado e que é preciso termos confiança na sociedade. Mas que sociedade? Na filantropia, na caridade, no Banco Alimentar? O que vai ser destes jovens? Trabalho muito com estudantes, quer aqui quer nos EUA, e os meus estudantes nos EUA são cada vez mais velhos. São doutoramentos atrás de doutoramentos para adiar o desemprego. Tenho uma grande estima pelos estudantes de hoje. Às vezes quero levantar muitos problemas, mas os estudantes estão sobretudo preocupados com saber em que é que aquilo vai ajudar às suas empregabilidades. É muito difícil dizer a um estudante que um poema pode ajudar à sua empregabilidade.
Parte de entrevista ao jornal "I" por Filipa Martins, Publicado em 01 de Janeiro de 2011
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