segunda-feira, 21 de março de 2011

O QUE DIZ MOLERO


No semanário  Sete, de 13 de Julho de 1978, Dinis Machado começa assim uma sua crónica:

Um dia, a long time ago, como dizia Ed. G. Robinson mascarado de gangster nostálgico já não me lembro em que fita, abri os olhos. Fiquei espectador.

Esse dia de Dinis Machado ficar espectador, aconteceu em Lisboa, levava o Março de 1930, 21 dias.
Andou escondido num tal de Dennis McShade e escreveu três policiais. Um dia abalançou-se a um outro género, deu-lhe o título  de O Que Diz Molero e colocou-lhe nome próprio. Luiz Pacheco, com o seu olho de águia, topou o livro à primeira, botou crítica no suplemento literário do Diário Popular e o livro, logo no ano de publicação, 1977,  teve cinco edições – um enorme sucesso de público e crítica.

No 10º aniversário da publicação de  O Que Diz Molero, Dinis Machado deu uma entrevista ao JL em que humildemente reconhece que não estava preparado para o sucesso do livro. A jornalista pergunta-lhe se o êxito do livro não o estimulara a escrever, durante esses dez anos, mais nenhum romance.

Paralisou-me. Embora o meu projecto, desde miúdo, fosse fazer um livro memorável, não compreendi o que se estava a passar. Perdi sentido crítico.

Volta e meia volto a  O Que Diz Molero.

Dizia o Helder Piunho que um livro como este só poderia ter sido escrito em Lisboa e por quem a conhecia muito bem , por dentro, por fora, palmo a palmo.

Então a tua tia chalou?, perguntou um dia o Zuca", disse Austin "como é que ela faz?, tem ataques?, é maluca de ter de ficar atada?, de ter ataques com espuma na boca ou é só maluca de não ligar a nada?, o rapaz disse que era maluca de falar em comboios e em serradura, que era um bocado triste e não fazia mal a ninguém, fazia-lhe impressão porque ela já não o conhecia, estava paradinha no banco de lona, então o Bertinho Ranhoso dizia que os malucos com uma grande calma às vezes eram os piores, estão com uma grande calma e só pensam em meter facas no bucho das pessoas, o Peida Gadocha dizia que também tinha uma tia maluca, mas era só maluca de comprar vestidos, tinha mais de quatrocentos vestidos, comprava os vestidos e passava-lhes a mão, era maluca de passar a mão pelos vestidos, o Zuca dizia que quatrocentos vestidos era uma peta das antigas, isso ninguém tinha, o Peida Gadocha dizia que se não eram quatrocentos eram duzentos, isso não interessava, ela era chalada de mexer nos vestidos e de estar sempre a dizer está bem mas tenho de mudar de vestido, dizia os meus vestidinhos, os meus vestidinhos, depois ficava nervosa e ia comprar mais vestidos, o Mané Borbulhas dizia que tinha um tio e uma tia que ficaram malucos ao mesmo tempo, foi por causa de uma roca, ele tinha uma roca em cima da mesinha-de-cabeceira, ela começou a embirrar com a roca, que ele gostava mais da roca do que dela, ele disse que nem ligava à roca, estava ali porque tinha um feitio giro, tinha-a comprado na Feira da Ladra, mas para a chatear começou a cantar uma música que é a Traviata com versos a falar da roca, que lindo som que esta roca tem, tatati, tatatitati, ela para se vingar escondeu-lhe as calças e ele não podia sair de casa, cantava a Traviata à procura das calças, e ao fim de três dias chateou-se e saiu para a rua em cuecas e a tocar a roca, foi logo engavetado pelo polícia, a família toda foi à esquadra, a minha mãe levou-lhe umas calças do meu pai, mas ele não quis, que ficava em cuecas e a tocar a roca enquanto não lhe dessem as calças dele, a minha tia disse que lhe dava as calças se ele deitasse a roca fora, depois fizeram as pazes, o meu tio deu a roca à minha mãe, que ma deu a mim, era eu puto, eles depois deixaram de ficar malucos, a roca é que os chalava, o Zuca então dizia que também tinha um tio maluco, andava sempre de boca aberta e a pensar em nada, era despedido dos empregos porque o apanhavam de boca aberta e a pensar em nada, andava aí pelas ruas com livros debaixo do braço, vai lá a casa só no Natal, dizia ele, no último Natal ficou de boca aberta no meio do jantar, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora, deixou a perna de peru no prato, às vezes encontro-o e faz-me uma festa na cabeça, depois ficamos a olhar um para o outro, pergunta-me se eu já ando na escola, eu começo a falar e ele fica de repente de boca aberta, faz-me outra festa na cabeça e vai-se embora, ninguém consegue falar com ele, desliga quando lhe dá o aparte de ficar de boca aberta e de pensar em nada, o que ele gosta é de dar milho aos pombos nas praças, um dia o meu pai deu-lhe uma grande descompostura, disse-lhe o piorzinho, e depois no fim perguntou-lhe e agora o que é que vais fazer?, vou dar milho aos pombos, disse ele, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora de boca aberta, parece que os pombos é que o conhecem bem, poisam-lhe nos ombros e na cabeça, comem o milho da mão dele, um emprego de dar milho aos pombos é que era bom para ele, às vezes ele anda aqui no Largo do Navegante a dar milho aos pombos muito satisfeito da vida, anda de largo em largo, senta-se nos degraus das estátuas e põe-se a ler uns livros que ninguém percebe nada de um gajo chamado Pessoa, não é o António Pessoa, porque esse é o das balanças, é outro, se calhar é um livro sobre pombos, não sei, uma vez foi para a tropa e desertou, foram dar com ele numa praça a dar milho aos pombos, perguntaram-lhe porque é que ele tinha desertado e ele disse que marchar lhe fazia bolhas nos pés, acabou por ser preso e apanhou uma data de castigos, mas punha-se de boca aberta e não ligava a nada, depois mandaram-no para um manicómio e foi uma grande confusão, o médico perguntou ao meu pai se o meu tio tinha uma coisa que era intermitências não sei quê, o meu pai perguntou ao meu tio se ele tinha essas intermitências, o meu tio perguntou de que cor?, depois viram-lhe a língua e os olhos, ele nos intervalos perguntava ao enfermeiro não se importa de me dar o meu Pessanha?, que é um livro de outro gajo, o médico fazia-lhe perguntas para malucos, mas ele não ligava, só ligava ao Pessoa e ao Pessanha, queria era ficar de boca aberta a pensar em nada, devia sentir a falta dos pombos, acabaram por mandá-lo embora porque não havia lugares, os lugares eram precisos para os malucos assassinos e para os que espumam da boca, vai lá a casa no Natal, agora mesmo está ele, até aposto, a dar milho aos pombos num largo qualquer, a ler livros e de boca aberta, há malucos à brava mas não são perigosos, o meu pai diz que o Bigodes Piaçaba é maluco de ajudar os pobres, de querer pias limpas e banheiras e de acabar com os percevejos, de fazer umas grandes fitas com os senhorios e de querer endireitar o mundo, é um maluco que pensa nas coisas, em escolas e em hospitais, há malucos com outros apartes, de andarem a falar sozinhos ou de arriarem sempre do melhor, como o Joca Farpelas, ou de fazerem discursos que não interessam nada, e os malucos de contar o dinheiro, contam o dinheiro quinhentas vezes, depois falta-lhes um tostão e voltam a contar, se a porra do tostão não aparece até ficam doentes de cama, e os malucos de tocar pífaro só gostam de estar a tocar pífaro e o resto não interessa, todos os gajos têm um tio maluco, às vezes há gajos que têm uma data de malucos na família, o Padeirinha diz que a avó dele é maluca de dizer que lhe roubam coisas da caixa da costura, os dedais, as agulhas e os botões, um dia foi cá uma fita por causa de um botão de madrepérola, o avô do Padeirinha foi aos arames e disse que queria que o botão se fodesse, e bateu com a porta como de costume, o Padeirinha anda sempre a arranjar a fechadura, pede à avó que acabe com a mania que lhe roubam a caixa da costura e ao avô para não bater com a porta, mas eles não ligam, os malucos não ligam, é esse o aparte deles, até a minha mãe um dia acordou maluca, subiu-lhe à cabeça uma coisa que é a ureia, começou a dizer ao meu pai que andava um cágado nas dunas, o meu pai à rasca dizia um cágado nas dunas?, um cágado nas dunas?, levou-a para o hospital das pernas partidas, conhecia lá um enfermeiro, o meu pai começou a dizer às pessoas todas que a minha mãe dizia que andava um cágado nas dunas, uma enfermeira disse que ali era o hospital das pernas partidas, das doenças de pus e coisas assim, dizia que as doenças de cágados nas dunas era no manicómio.

Legenda: Esta fotografia de Dinis Machado é da autoria de Augusto Cabrita, seu cunhado.

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