Roteiro Afectivo de Palavras Perdidas
António Mega Ferreira
Capa: V. Tavares
Tinta-da-China
Editores, Lisboa, Outubro de 2022
Quando viro o espelho retrovisor da memória para o percurso da minha já
longa vida, é sob a forma de palavras que as diversas etapas, episódios ou
afetos me aparecem. Muitas dessas palavras eram para mim correntes à data dos
sucessos que nomeiam e descrevem; mas, resgatadas hoje, parecem-nos obsoletas,
fora de uso, inutilizadas. Que mistério envolve o envelhecimento e a
obsolescência das palavras? Porque caem em desuso termos como trampolineiro,
infernizar e larápio (ao longo deste livro, as palavras que tenho por
«perdidas» aparecem sempre em itálico), mesmo quando as realidades que nomeiam
se mantêm presen‑ tes, ainda que sob outras formas?
Confesso que é com alguma nostalgia que me lembro de certas palavras da
minha juventude, cujo fulgor rutilava no intenso fascínio do significante,
antes mesmo que o que elas queriam dizer tivesse para mim um significado
inteligível. Colhera o belo verbo nas «rútilas estrelas» de Gonçalves Crespo e
só mais tarde soube que rutilante (arruivado, doura‑ do, cintilante) era um
elegante latinismo de Camões (de rutilans, rutilantis), possivelmente acolhido por via castelhana. Porém, aqui não me refiro
tanto às palavras «caras», que os adultos pronunciavam com aplicação e algum
pretensiosismo, quanto às outras, as que povoavam a conversação, nem sempre
densas de uma história multissecular, mas às palavras sem traço de
novo-riquismo, nobres apenas porque enraizadas na fala vulgar da cidade de
Lisboa, onde nasci, cresci e sempre vivi. Resgatar palavras do relativo
esquecimento em que caíram é desencadear exercícios de reminiscência pessoal
sobre os modos, as circunstâncias, o tempo em que elas foram correntes.
Ao longo dos anos, fui registando numa lista laboriosa palavras que fui perdendo, palavras que tiveram um tempo no meu discurso (na minha vida?), ou que, pelo menos, nela traçaram um rasto fulgurante de cintilações afetivas rapidamente extintas no céu do meu olvido. O que tinha em mente era uma coletânea de murmúrios e reminiscências, de segredos e memórias, um inventário de adversidades e afetos, cada uma das nossas histórias dando às palavras o sentido que lhes atribuí‑ mos, em lentas, sucessivas, respeitosas aproximações. Mas o que resultasse não seria um exercício lexicográfico, muito me‑ nos filológico, e só instrumentalmente etimológico: antes, um álbum de memórias vazadas em palavras cujo eclipse parcial me apetecia resgatar pela evocação, mais um roteiro do que um dicionário. Nada nele seria exaustivo: na realidade, me‑ nos de um terço das palavras listadas acabou por vir à escrita (80 de uma lista de 250). E, dessas, nem todas desapareceram da fala comum; algumas delas apenas se tornaram mais raras, menos correntes, mais «antigas».
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