5 de
Maio de 1946
Escreve-me espontaneamente um sacerdote a dizer amabilidades
sobre a minha arte, mas antepondo aos seus louvores, à guisa de esconjuro
inicial, um «alma do diabo» prudente.
Creio que tem havido sempre na nossa terra uma
descabida preocupação canónica à ilharga de cada artista. Interessa mais ao
zelo nacional averiguar se um poeta morreu sacramentado, do que ler os seus
versos. Ninguém quer saber se o caminho de um criador o leva à morada das musas
e da beleza; espreita-se da janela, mas é para ver se ele vai à missa. Ora isto
é de analfabetos, de pessoas que verdadeiramente não sabem nem querem saber do
valor de um poema, do mundo de liberdade e de independência que ele encerra. E
uma gente assim não me convém, nem tão pouco o Deus intolerante que servem. Por
isso me vou divertindo com as minhas divindades naturais, luciferinamente,
certo de que o diabo é ainda uma grande companhia. Foi a ele que Jesus disse
que o seu reino não era deste mundo. E o meu, precisamente, é.
Miguel Torga em Diário Volume III
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