11 de Dezembro de 1967
Passei
um fim-de-semana tormentoso, devorando-me como um canibal! Mal li, mas escrevinhei.
Sentei-me no fundo do poço e arranquei os cabelos que me restam. Perdi todos os
estímulos que um homem pode ter para a vida. Só o espírito do dever me mantém à
tona. Que vai acontecer, mo dia em que o perca? Divorciei-me da burguesia, em
nome do futuro, e aquela não perdoa. Não me arrependo disso, mas, sem,
alternativa palpável, sou impelido ao que nunca quis ser: um associal. Cada vez
estou mais isolado – na profissão, na família, no burgo, na vida intelectual
até. Como se a vida não fosse tão curta, as pessoas repetem à minha volta os
mesmos o slogans mágicos em que se alienam! E a lucidez é incompatível com
isso. É certo que há algo de ciclotímico em mim, pelo que é de esperar que a
depressão passe. Mas vai preponderando, à medida que os anos correm. E não vejo
solução para isso. Pudesse eu ter, ao menos, a escapatória do pequeno escritor
que vive feliz com a sua mediocridade! Mas destruo quase tudo o que escrevo.
Ontem, rasguei uns molhos de folhas do pseudo-romance (à Joyce) que vinha
cozinhando há meses. Já estou arrependido disso: há sempre, no mau, uma página
a salvar. De qualquer modo, está feito. E o mais irritante é que vou recomeçar,
quem sabe?
Mário
Sacramento em Diário
2 comentários:
Vou dar o desconto da época, porque em 1967 devia ser complicado viver no nosso país. Especialmente para quem tinha consciência política.
Mas confesso, que não acho muita graça a quem passou a vida a "lamber as feridas", Sammy.
Interrogo-me muitas vezes pelos espaços de leitura de livros que por aqui vou introduzindo. Muitas vezes o extracto fica fora do contexto, não é tão claro como a sua leitura completa. Arrisco que são mais os possíveis benefícios do que o seu contrário.
No caso do Diário de Mário Sacramento é complexo citar qualquer extracto. O livro retrata o que foi a luta, intetectual e profissional, deste velho lutador contra Salazar e Caetano, as perseguições pessoais bem como à mulher e aos filhos. O que escreve não seria bem «um lamber de feridas» possivelmente seriam um lenitivo de fazer frente ao terrível quotidiano - «uma protérvia, esta vida arrepiada.»
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