13 de Março de 1992
Acordo
a meio da noite e pego na mais recente tradução em prosa de De Rerum Natura de Lucrécio. Como só me costuma acontecer nestes parênteses nocturnos,
a leitura dá-me uma sensação de vertigem, as palavras tornam-se mais densas e
contornadas, e abre-se ao longo da noite um silencioso corredor a néon. É o
momento da leitura extraterrestre, liberta do peso do sentido, estratosférica.
E deparo com uma frase debruada de luz que entra em súbita ressonância com a
luz que me tocou no funeral da Vieira da Silva, e digo comovidamente: «é isto,
é assim, é assim é o que é».
Já
de manhã, procuro no labirinto do texto, a frase que me arrebatara e
reconduzira à brancura do sono. Não a encontro, e pergunto-me se fui eu que a a
sonhei ou se foi ela que furtivamente se desencantou. Ou talvez seja uma
armadilha dos deuses para eu finalmente ler o poema inteiro e de seguida.
Folheio, percorro o livro com sofreguidão e impaciência, e ele, teimosamente,
renitente, abre-se sempre nas mesmas páginas e precipita-me para as mesmas
frases que partilham a triste de não terem o brilho inapagável da minha perdida
inscrição nocturna. Suspeito que essa frase de Lucrécio terá ficado na aldeia
ventosa junto ao corpo de Vieira da Silva. Como uma cor que lhe faltasse. Ou
uma sombra – essa luz em luto de que fala Lucrécio.
Eduardo
Prado Coelho em Tudo O Que Não Escrevi
II Volume
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