quinta-feira, 14 de outubro de 2021

ALFABETO DO MUNDO

Em vão me demoro a soletrar

o alfabeto do mundo.

Leio nas pedras um escuro soluço,

ecos afogados em torres e edifícios,

indago a terra com o tacto

cheia de rios, de pausagens e cores,

mas engano-me sempre ao copiá-los.

Preciso de escrever cingindo-me a um risco

sobre o livro do horizonte.

Desenhar o milagre desses dias

que flutuam envoltos na luz

e se desprendem em cantos de pássaros.

Quando na rua os homens que vagueiam

do seu rancor à sua fadiga, matutando,

se me revelam inocentes mais que nunca.

Quando o batoteiro, a adúltera, o malandro,

os mártires do ouro ou do amor

são só signos que nunca li bem,

que ainda não consigo anotar em meu caderno.

Quanto eu queria ao menos um instante

que esta página febril de poesia

gravasse em sua transparência cada letra:

o o do ladrão, o t do santo,

o gótico ditongo do corpo e seu desejo,

com a mesma escrita do mar nos areais,

a mesma cósmica piedade

que a vida desdobra aos meus olhos.

Eugenio Montejo em Rosa do Mundo

Tradução de José Bento