O
disco chama-se “Amália na Broadway”.
Na
Broadway...??? - perguntar-me-ão alguns de vós.
Um
restaurante...? Um bar....? Uma Casa de Fados...?
Não,
não é restaurante nem nome de bar, e mesmo que o fosse o mais certo é que se
tratasse de um desses lugares de encontro para almas tristes e solitárias, a
troco de uma determinada percentagem sobre o preço de uma garrafa de espumante.
Também
não é, naturalmente, nome que se dê a uma Casa de Fados...
Esta
Broadway é a autêntica, a legítima, a de Nova Iorque.... A célebre zona dos
teatros balizada, a traços largos, pelas ruas 42 e 49 e tendo Times Square por
epicentro.
Essa
mesma Nova Iorque onde, há muitos anos atrás, Amália uma vez contou ter sentido
vontade de se suicidar num quarto de hotel, desistindo da ideia depois de ter
visto um filme do Fred Astaire e da Ginger Rogers. (e depois venham-me dizer
que o Cinema não salva vidas...)
Mas
o nome do álbum leva ao engano, porque Amália não está em Broadway nenhuma, mas
sim em Paço d’Arcos, nos Estúdios da Valentim de Carvalho.
A
alusão à Broadway é justificada pelo fato de Amália estar a cantar, não fados,
como lhe era habitual, mas canções que associamos ao Cinema e ao Teatro
Musical, os célebres “espetáculos da Broadway”...
Mas
vamos à história...
Em
1965, com arranjos do maestro inglês Norrie Paramour, Amália gravou uma série
de “standards” da música popular americana, de autores como George e Ira
Gershwin, Richard Rogers e Lorenz Hart, Jeronome Kern e Oscar Hammerstein,
Hoagy Carmichael... Dos “big five”, de fora só ficaram Irving Berlin e Cole
Porter.
Terão
sido gravadas doze músicas mas Amália estava hesitante e acabou por nunca
colocar a sua voz em quatro delas, pelo que o disco contém, apenas, oito
faixas.
O
“Busto”, de 1962, primeira colaboração com Alain Oulman, já havia provocado
alguma polémica junto do seu público mais tradicional, e houve muito receio que
esta súbita divagação no repertório de Amália a provocasse ainda mais, pelo que
estas pobres gravações foram fechadas a sete chaves e só veriam a luz do dia em
1984, altura em que comprei o vinil que tenho na minha coleção.
Os
tolinhos esconderam o disco durante quase 20 anos porque não perceberam que,
cante Amália o que cantar, é Fado tudo quanto saia da sua voz.
Que
Fado não é letra nem é música. É, acima de tudo, voz e emoção à flor da pele.
Que
pode Amália cantar na língua em que quiser e será, sempre, Fado.
Desde
aquele dia em que o meu Pai me levou a almoçar ao velho “Pereira de Alfama”
fiquei, para sempre, ligado a Alfama e ao Castelo. E assim que tive asas para
voar sozinho nunca mais deixei de ir em busca do prazer de me passear por essas
ruelas, quando elas ainda não estavam empestadas de turistas, e uma ou duas
vezes por semana até tinha lugar marcado nas antigas instalações do AR.CO, ali
na Rua de Santiago, junto ao Castelo, para ver sessões de cinema “clássico”,
com cópias gentilmente cedidas pela Cinemateca
Portuguesa, que então ainda funcionava muito a “conta-gotas”.
Por
isso, a voz de Amália traz-me sempre à memória tantas coisas, muitas das quais
até já deixaram de existir, como o referido “Pereira de Alfama”...
Memórias
de Lisboa à noite e da Lisboa antiga que, por sinal, também são nomes de fados.
As
imperiais, os pires de caracóis e os mexilhões que comia na antiga tasca do Zé
Luís, antes dela se ter transformado no hoje muito respeitável Restaurante
Farol de Santa Luzia, mesmo defronte do Miradouro do mesmo nome.
O
Tejo no final de uma tarde de Outono, visto desse Miradouro.
Os
putos ao pontapé a uma bola de trapos, que tão bem fotografados foram por João
Martins.
As
vizinhas a falarem de uma janela para a outra, com a roupa pendurada mesmo por
cima das nossas cabeças.
O
reflexo da luz sobre a calçada molhada, depois de uma chuva precoce de
Setembro.
As
escadinhas, os becos esconsos e os gatos a escapulirem-se nas vielas.
O
pátio da Igreja de Santo Estêvão, que tinha uma árvore com um ramo muito
grande, feito à medida do meu corpo.
As
mãos dadas e os primeiros beijos de um namoro.
E
tantas, tantas coisas mais...
Mas,
para além dessas memórias e emoções mais ou menos subjetivas, qual a essência
do Fado, quais os ingredientes que lhe dão o sabor...?
A
própria Amália nos responde em “Tudo Isto é Fado” (1955), um dos fados dela de
que mais gosto:
“Almas
vencidas
Noites
perdidas
Sombras
bizarras
Na
Mouraria canta um rufia
Choram
guitarras
Amor,
ciúme
Cinzas
e lume
Dor
e pecado
Tudo
isto existe
Tudo
isto é triste
Tudo
isto é Fado”
E,
porque nem tudo se deixa explicar por palavras, ela diz ainda que “o Fado é
tudo o que eu digo, mais o que eu não sei dizer”...
Haverá
assim uma tão grande incompatibilidade entre o Fado e esses “standards”
americanos que faz com que se tenha de gritar sacrilégio! por a Grande Amália
os ter ousado cantar...?
Não
me parece...
Estes
“clássicos” americanos, embora, tradicionalmente, mais otimistas, não deixam de
conter a sua pitadazinha de quase todos os ingredientes que Amália mencionou.
É
por esse motivo que muitas dessas canções até se chamam “torch songs”,
expressão americana de difícil tradução mas que remete para a ideia de alguém
que, contra tudo e contra todos, levanta bem alto a chama de uma grande Paixão,
por muito dolorosa que ela lhe tenha sido ou ainda continue a ser.
São
canções de sofrimento que evocam amores não correspondidos, sonhos desfeitos,
separações dolorosas...
E
é por isso que não se torna assim tão estranho ouvi-las pela voz de Amália...
Deixe-mo-nos
de histórias, portanto... No íntimo (na Alma...) há muito de semelhante entre
ambas as músicas e talvez que, bem lá no fundo, seja mais o que as une do que
aquilo que as possa separar, pelo que terá sido um verdadeiro atentado à
Cultura este disco ter ficado escondido durante tanto tempo.
Se
não quiserem ouvir esses “standards” pela voz mais melodiosa de Ella
Fitzgerald, ouçam-nas pela voz bastante mais sofrida de Billie Holliday, e
depois contem-me coisas...
E,
se ao ouvirmos Amália canta-las dermos asas à imaginação, poderemos deparar com
uma deliciosa mistura
de lugares e de sentimentos, entre ambos os lados do Atlântico.
Quando
ela canta “blue moon, you saw me standing
alone...”, será que não poderemos imaginar um cacilheiro a pousar
suavemente num manto de luar, visto lá de cima de um banco solitário da Costa
do Castelo...?
Quando
ela grita “long ago and far away, I
dreamed a dream one day...”, que será isto senão a portuguesissíma Saudade
feita canção...?
E
em que é que pensamos ao ouvir “I Can’t t Help Loving That Man”, senão num bom
malandro de mãos nos bolsos a assobiar, enquanto desce as escadinhas de São Miguel,
acabadinho de sair de uma fotografia de Gérard Castello Lopes...?
E
o que é “The Nearest of You” senão
aquele Amor louco, longe de qualquer explicação, que tantas vezes o Fado
cantou...?
O
que me apetece dizer, no fim de tudo isto, é que pela voz de Amália estas
músicas sabem a Fado, e cheiram bem, cheiram a Lisboa...Como
se uma gaivota do Tejo me viesse trazer, na ponta do seu bico, os céus de
Manhattan.
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