segunda-feira, 3 de agosto de 2020

UMA GAIVOTA DO TEJO A TRAZER-ME OS CÉUS DE MANHATTAN


O disco chama-se “Amália na Broadway”.

Na Broadway...??? - perguntar-me-ão alguns de vós.

Um restaurante...? Um bar....? Uma Casa de Fados...?

Não, não é restaurante nem nome de bar, e mesmo que o fosse o mais certo é que se tratasse de um desses lugares de encontro para almas tristes e solitárias, a troco de uma determinada percentagem sobre o preço de uma garrafa de espumante.

Também não é, naturalmente, nome que se dê a uma Casa de Fados...

Esta Broadway é a autêntica, a legítima, a de Nova Iorque.... A célebre zona dos teatros balizada, a traços largos, pelas ruas 42 e 49 e tendo Times Square por epicentro.

Essa mesma Nova Iorque onde, há muitos anos atrás, Amália uma vez contou ter sentido vontade de se suicidar num quarto de hotel, desistindo da ideia depois de ter visto um filme do Fred Astaire e da Ginger Rogers. (e depois venham-me dizer que o Cinema não salva vidas...)
Mas o nome do álbum leva ao engano, porque Amália não está em Broadway nenhuma, mas sim em Paço d’Arcos, nos Estúdios da Valentim de Carvalho.

A alusão à Broadway é justificada pelo fato de Amália estar a cantar, não fados, como lhe era habitual, mas canções que associamos ao Cinema e ao Teatro Musical, os célebres “espetáculos da Broadway”...

Mas vamos à história...

Em 1965, com arranjos do maestro inglês Norrie Paramour, Amália gravou uma série de “standards” da música popular americana, de autores como George e Ira Gershwin, Richard Rogers e Lorenz Hart, Jeronome Kern e Oscar Hammerstein, Hoagy Carmichael... Dos “big five”, de fora só ficaram Irving Berlin e Cole Porter.

Terão sido gravadas doze músicas mas Amália estava hesitante e acabou por nunca colocar a sua voz em quatro delas, pelo que o disco contém, apenas, oito faixas.

O “Busto”, de 1962, primeira colaboração com Alain Oulman, já havia provocado alguma polémica junto do seu público mais tradicional, e houve muito receio que esta súbita divagação no repertório de Amália a provocasse ainda mais, pelo que estas pobres gravações foram fechadas a sete chaves e só veriam a luz do dia em 1984, altura em que comprei o vinil que tenho na minha coleção.

Os tolinhos esconderam o disco durante quase 20 anos porque não perceberam que, cante Amália o que cantar, é Fado tudo quanto saia da sua voz.

Que Fado não é letra nem é música. É, acima de tudo, voz e emoção à flor da pele.

Que pode Amália cantar na língua em que quiser e será, sempre, Fado.

Desde aquele dia em que o meu Pai me levou a almoçar ao velho “Pereira de Alfama” fiquei, para sempre, ligado a Alfama e ao Castelo. E assim que tive asas para voar sozinho nunca mais deixei de ir em busca do prazer de me passear por essas ruelas, quando elas ainda não estavam empestadas de turistas, e uma ou duas vezes por semana até tinha lugar marcado nas antigas instalações do AR.CO, ali na Rua de Santiago, junto ao Castelo, para ver sessões de cinema “clássico”, com cópias gentilmente cedidas pela Cinemateca Portuguesa, que então ainda funcionava muito a “conta-gotas”.

Por isso, a voz de Amália traz-me sempre à memória tantas coisas, muitas das quais até já deixaram de existir, como o referido “Pereira de Alfama”...

Memórias de Lisboa à noite e da Lisboa antiga que, por sinal, também são nomes de fados.
As imperiais, os pires de caracóis e os mexilhões que comia na antiga tasca do Zé Luís, antes dela se ter transformado no hoje muito respeitável Restaurante Farol de Santa Luzia, mesmo defronte do Miradouro do mesmo nome.

O Tejo no final de uma tarde de Outono, visto desse Miradouro.

Os putos ao pontapé a uma bola de trapos, que tão bem fotografados foram por João Martins.
As vizinhas a falarem de uma janela para a outra, com a roupa pendurada mesmo por cima das nossas cabeças.

O reflexo da luz sobre a calçada molhada, depois de uma chuva precoce de Setembro.
As escadinhas, os becos esconsos e os gatos a escapulirem-se nas vielas.

O pátio da Igreja de Santo Estêvão, que tinha uma árvore com um ramo muito grande, feito à medida do meu corpo.

As mãos dadas e os primeiros beijos de um namoro.

E tantas, tantas coisas mais...

Mas, para além dessas memórias e emoções mais ou menos subjetivas, qual a essência do Fado, quais os ingredientes que lhe dão o sabor...?

A própria Amália nos responde em “Tudo Isto é Fado” (1955), um dos fados dela de que mais gosto:

“Almas vencidas
Noites perdidas
Sombras bizarras
Na Mouraria canta um rufia
Choram guitarras
Amor, ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é Fado”

E, porque nem tudo se deixa explicar por palavras, ela diz ainda que “o Fado é tudo o que eu digo, mais o que eu não sei dizer”...

Haverá assim uma tão grande incompatibilidade entre o Fado e esses “standards” americanos que faz com que se tenha de gritar sacrilégio! por a Grande Amália os ter ousado cantar...?

Não me parece...

Estes “clássicos” americanos, embora, tradicionalmente, mais otimistas, não deixam de conter a sua pitadazinha de quase todos os ingredientes que Amália mencionou.

É por esse motivo que muitas dessas canções até se chamam “torch songs”, expressão americana de difícil tradução mas que remete para a ideia de alguém que, contra tudo e contra todos, levanta bem alto a chama de uma grande Paixão, por muito dolorosa que ela lhe tenha sido ou ainda continue a ser.

São canções de sofrimento que evocam amores não correspondidos, sonhos desfeitos, separações dolorosas...

E é por isso que não se torna assim tão estranho ouvi-las pela voz de Amália...

Deixe-mo-nos de histórias, portanto... No íntimo (na Alma...) há muito de semelhante entre ambas as músicas e talvez que, bem lá no fundo, seja mais o que as une do que aquilo que as possa separar, pelo que terá sido um verdadeiro atentado à Cultura este disco ter ficado escondido durante tanto tempo.

Se não quiserem ouvir esses “standards” pela voz mais melodiosa de Ella Fitzgerald, ouçam-nas pela voz bastante mais sofrida de Billie Holliday, e depois contem-me coisas...

E, se ao ouvirmos Amália canta-las dermos asas à imaginação, poderemos deparar com uma deliciosa mistura de lugares e de sentimentos, entre ambos os lados do Atlântico.

Quando ela canta “blue moon, you saw me standing alone...”, será que não poderemos imaginar um cacilheiro a pousar suavemente num manto de luar, visto lá de cima de um banco solitário da Costa do Castelo...?

Quando ela grita “long ago and far away, I dreamed a dream one day...”, que será isto senão a portuguesissíma Saudade feita canção...?

E em que é que pensamos ao ouvir “I Can’t t Help Loving That Man”, senão num bom malandro de mãos nos bolsos a assobiar, enquanto desce as escadinhas de São Miguel, acabadinho de sair de uma fotografia de Gérard Castello Lopes...?

E o que é “The Nearest of You” senão aquele Amor louco, longe de qualquer explicação, que tantas vezes o Fado cantou...?

O que me apetece dizer, no fim de tudo isto, é que pela voz de Amália estas músicas sabem a Fado, e cheiram bem, cheiram a Lisboa...Como se uma gaivota do Tejo me viesse trazer, na ponta do seu bico, os céus de Manhattan.


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