sexta-feira, 7 de agosto de 2020

BRISTOL, TENNESSEE - BIRTHPLACE OF COUNTRY MUSIC


Num recente texto acerca da música dos Apalaches falei-vos de Ralph Peer, dizendo-vos que era um “caçador de talentos” ligado à Okeh Records, de Nova Iorque. Era mais do que isso, porque tinha o pomposo cargo de Director-Geral de Gravações.

E foi-o, de facto, durante alguns anos, mais propriamente entre 1920 e 1925.

Durante esse período Ralph Peer gravou músicas e interpretes de todos os géneros, do “Jazz” ao “Hillbily”, tendo sido de sua responsabilidade a primeira gravação de “Blues” destinada ao mercado afro-americano, efetuada em 1920 com Mamie Smtilh a cantar “Crazy Blues”, bem como, tal como também já vos referi anteriormente, a primeira gravação de um género musical precursor da “Country Music”.

Em 1924, de forma totalmente inesperada, a Victor Talking Machine Company, também de Nova Iorque, teve um enorme sucesso comercial à escala nacional com Vernon Dalhart a cantar “The Wreck of the Old 97”, que terá vendido mais de um milhão de exemplares (já vi escrito 7 milhões, mas custa-me acreditar...). Dalhart não só não era “hillbilly” nenhum, como vivia há muitos anos confortavelmente instalado em Nova Iorque, tendo-se formado como cantor de ópera e de música clássica.

A Victor T. M. C. apercebeu-se, de imediato, do enorme potencial deste tipo de música para o negócio, e quis contratar o melhor produtor para trabalhar consigo. E esse era, sem dúvida, Ralph Peer.

Como Ralph Peer também acreditava, cada vez mais, no poder de atração dessa “hillbilly music”, que ele próprio batizara e ajudara a difundir, junto de um público rural cada vez mais vasto, juntou-se a fome com a vontade de comer…


O contrato que Peer celebrou com a Victor foi peculiar, porque previa o pagamento de 1 só dólar anual, mas concedia-lhe os “publishing rights” de todas as gravações que fizesse.

Em Janeiro de 1927 a Victor entregou a Peer a tecnologia mais evoluída que havia no seu tempo, fabricada pela Western Electric, e pediu-lhe que planificasse e iniciasse as suas gravações de campo.

Em Fevereiro e Março desse ano Peer fez uma primeira viagem pelo Sul, onde recolheu, sobretudo, “Blues” e “Gospel”.

No que se refere à “Hillbilly Music”, como Peer então lhe chamava, em conversa com Ernest Stonemam, que já havia gravado anteriormente, recebeu deste o conselho de que o melhor lugar para encontrar novos talentos seria as montanhas do sul dos Apalaches, cujos difíceis acessos tornava as suas populações mais isoladas e sem possibilidade de se deslocarem às grandes cidades, como Nova Iorque, para gravações.

Peer terá pensado que se a montanha não vai a Maomé, vai este à montanha…

E assim foi.

Em Junho meteu-se de novo à estrada e fez gravações em Savannah e Charlote, na Geórgia e na Carolina do Norte, respetivamente.

Um contacto prévio com o representante da Victor Company em Bristol, na fronteira entre o Tennessee e a Virginia, que na altura era a maior cidade daquela região dos Apalaches, com 32.000 habitantes, ajudou-o a preparar o terreno e a fazer uma primeira seleção de interpretes a conhecer.

Por outro lado, Peer também já havia pedido aos intérpretes oriundos dessa região que já conhecia de anteriores gravações (Stoneman, Jackson Brothers, …) que lhe recomendassem amigos ou outros músicos seus conhecidos das redondezas, que considerassem valer a pena ouvir.

A técnica destes “caçadores de talentos” era quase sempre a mesma.


Chegavam às cidades que escolhiam, reservavam quartos num hotel ou alugavam qualquer outro espaço compatível, que transformavam em estúdio de gravação, tendo o cuidado de eliminar todo o ruído exterior suscetível de afetar as gravações. Enquanto preparavam a logística já tinham publicado um ou mais anúncios nos jornais locais dando conta da sua presença e do seu desejo de encontrar e gravar talentos locais, mediante uma remuneração a acordar, que era, no caso de Peer e salvo alguma exceção especial, 50 dólares por música gravada e 2,5 cêntimos por disco “single” vendido.

Peer regressou a Bristol no dia 21 de Julho desse ano de 1927, acompanhado pela sua mulher e por dois técnicos de gravação.

Como local para se instalar alugou uma parte do edifício da “Taylor-Christian Hat and Glove Company”, situada no nº 408 da State Street, a principal rua da cidade. O estúdio de gravação propriamente dito, que tinha de ter um espaço grande devido ao elevado número de membros de alguns dos grupos já programados, foi instalado no 3º piso do edifício.

Peer tinha programado efetuar duas semanas de gravações. Com os compromissos previamente agendados a primeira semana estava cheia, mas a segunda não tinha, ainda, nenhuma gravação prevista.

Peer recorreu, então, à habitual prática do anúncio no jornal local, mas isso não produziu, desta vez, qualquer resultado relevante.

Como era tudo menos parvo, Peer decidiu convidar um repórter do jornal local, o “Bristol News Bulletin”, para assistir ao primeiro dia de gravações, a 25 de Julho, em que estariam em cena Ernest Stoneman e Uncle Eck Dunford, dois artistas locais de nomeada.


A 27 de Julho as gravações de Peer foram notícia de primeira página no jornal, com detalhes acerca das peripécias das gravações e, sobretudo, com a informação que Stoneman ganharia 100 dólares por dia de gravações, e os músicos seus acompanhantes 25. E ainda o detalhe complementar de que Sotoneman, um carpinteiro de Galax, nas proximidades, havia ganho 3.600 dólares só em “royalties” no ano anterior.

Ora estes montantes representavam muito dinheiro à época, sobretudo naquela região tão pobre, o que fez com que os candidatos a uma audição disparassem e chegasse a Bristol gente de todo o lado com o desejo de ser ouvida, o que não só preencheu por completo a segunda semana de gravações, como obrigou Peer a fazer horas extraordinárias à noite e ao fim de semana.

Não vos vou massacrar aqui com um relato detalhado dos 15 dias de gravações, embora o possua.

Dir-vos-ei, apenas, que foram gravadas 76 canções envolvendo 19 intérpretes diferentes, e isto sem contar os respetivos acompanhantes. Dessas 76 metade eram “Gospel”, o que confirma bem aquilo que vos escrevi há tempos acerca do interesse que esta música já suscitava nos Estados Unidos naquela época, fruto da ação dos Jubilee Singers e outros.


A maior parte destes intérpretes caíram num total esquecimento e não foi devido à sua presença que estas chamadas “Bristol Sessions” tiveram a importância histórica que tiveram.

Tal ficou a dever-se, exclusivamente, à presença de dois interpretes.

Nas suas preparações prévias, Peer já tinha estabelecido contacto com um tal Alvin Pleasant Carter, que vivia em Maces Spring, não muito longe de Bristol, e era conhecido por ser um recoletor de música de origem irlandesa e inglesa, e já teria ficado acordada entre ambos uma audição numa futura oportunidade.

E essa oportunidade acabou por ser a tarde do dia 1 de Agosto, em que A. P., como gostava que o chamassem, se apresentou a Peer acompanhado da sua mulher, Sara, e da prima desta, Mayebelle, de 18 anos de idade, também sua cunhada por ser casada com o seu irmão mais novo.


Sara estava grávida e foi com alguma relutância que aceitou deslocar-se a Bristol.

Maybelle, a cunhada, também não sabia muito bem ao que ia, porque antes da partida ainda perguntou a A.P. se deveria levar, ou não, a sua guitarra.

A viagem foi penosa e com paragens constantes, devido ao mau estado do caminho e aos incómodos provocados a Sara.

Nos seus cadernos, Peer tinha apenas registado que os intervenientes na gravação dessa tarde de 1 de Agosto de 1927 eram “Mr. and Mrs. Carter, from Maces Spring”.

Mas depois de os ouvir, não mais os largaria da mão, e recorda o evento com estas palavras: “They wander in. He’s dressed in overalls and the women are country women, from way back there. They look like hillbillies. But as soon as I heard Sara’s voice, that was it. I knew it was going to be wonderful”.

E foi…


Nasceria nesse dia a Carter Family, “first Family of Country Music”, que iria durar, com diversas formações, até aos dias de hoje. No seu trio original gravaram 326 músicas entre 1927 e 1941, ano em que se separaram.

Em Bristol, os Carter gravaram seis canções, quatro no primeiro dia e mais duas na manhã do dia seguinte.

A primeira de todas foi “Bury Me Under the Weeping Willow”, muito conhecida nas montanhas e que as raparigas cantavam desde a sua meninice.


Depois seguiram-se duas músicas, “Little Log Cabin in the Sea” e “Poor Orphan Chil”, que A.P. tinha retirado do “gospel book” da Igreja em cujo coro cantara há muitos anos atrás e, para finalizar o dia, “The Storms are on the Ocean”, cuja origem fora uma velha balada escocesa.

No dia seguinte foram gravadas duas canções só com a voz das raparigas, acompanhadas pela auto-harpa de Sara e a guitarra de Mayebelle, “Single Girl, Married Girl” e “Wondering Boy”, também muito conhecidas nas montanhas.

Só pela descoberta da Carter Family as “Bristol Sessions” já teriam o seu lugar garantido na História da Música Tradicional americana, mas a coisa não se iria ficar por aqui.

No dia 4 de Agosto estava previsto a gravação de uma banda chamada “Tenneva Ramblers”, que nos últimos tempos vinha sendo acompanhada por um cantor do Mississipi, tocador de banjo e com um jeito muito especial para o “yodelling”, um estilo vocal pouco usual na região.


Mas o cantor era ambicioso, já se considerava o “cabeça de cartaz” e queria que o seu nome antecedesse o da banda.

As comadres zangaram-se, não houve acordo, a banda recrutou localmente um tocador de banjo e apresentou-se a Peer com o seu nome inalterado. Entre outras, gravou “The Longest Train I Ever Saw”, uma variação da conhecida “In the Pines”, e a banda acabaria por ter algum sucesso nos anos que se seguiram.

Às duas da tarde chegou o ambicioso cantor, apenas acompanhado pela sua guitarra Martin.

As primeiras canções que interpretou desagradaram a Peer, porque já eram cantigas populares da época e o que ele queria era músicas mais antigas.

O cantor interpretou, então, “The Soldier’s Sweetheart”, que Peer aprovou, embora sem grande entusiasmo.

Mas como o cantor insistia em fazer prova do seu “yodelling style”, avançou para “Sleep, Baby, Sleep”, que fez Peer saltar da cadeira. I thought his yodel alone might spell sucess”, afirmaria mais tarde.

E que sucesso ele teve…!

O cantor chamava-se Jimmie Rodgers, que ficaria na História como “the singing brakeman” devido às suas origens como ferroviário, e foi, apenas, a primeira figura a integrar o “Country Music Hall of Fame”, em 1961, altura em que já era conhecido como “the father of Country Music”.

Ao contrário da dos Carter, a carreira de Rodgers haveria de ser igualmente fulgurante, mas muito curta. Sofria de tuberculose e viria a morrer poucos anos depois, em 1933, quando se encontrava em Nova Iorque a gravar para a Victor.

Descobertas com três dias de intervalo, estas duas figuras enormes dos primórdios da “Country Music” só se iriam encontrar pela primeira vez quatro anos depois, quando ambos estiveram em Louisville a gravar para a Victor e deixaram para a posteridade uma célebre fotografia conjunta.

Foi por ter proporcionado estas duas grandes descobertas que Johnny Cash, que haveria de se tornar genro de Maybelle Carter em finais dos anos 60, chamou a estas “Bristol Sessions” o “Big Bangda Country Music”.


Mas como qualquer pessoa normal, a “Country Music” não nasceu em 1927 já crescidinha, como o Benjamin Button do Scott Fitzgerald…

Foi um bebézinho que teve de gatinhar, aprender a andar, crescer através de uma infância, uma adolescência e uma juventude saudáveis.

Para se estabilizar em toda a sua plenitude, aí por meados dos anos 40, ainda muita coisa teve de acontecer nesses quase 20 anos para que essa identidade ficasse bem definida.

Os “singing cowboys” dos anos 30, popularizados através do Cinema, com Gene Autry, “the Oklahoma yodeling cowboy”, a imitar Jimmie Rodgers, mas também Roy Rogers e a sua banda “The Sons of the Pioneers, Tex Ritter, etc...

Na fronteira entre o México e o Texas, Lydia Mendoza e os seus seguidores no desenvolvimento daquilo a que no meu tempo se chamava Tex-Mex, e a que hoje se prefere chamar “Musica Tejana”.

Milton Brown e os seus “Musical Brownies” e, quase em simultâneo, Bob Wills e os seus “Texas Playboys”, que criaram uma fusão de Jazz com música tradicional, a que então se chamou “western swing”…

Patsy Montana, a primeira mulher a vender mais de um milhão de cópias com o seu sucesso “I Want to be a Cowboy’s Sweetheart”…
E só então chegariam, mais tarde, aqueles que se iniciaram no programa radiofónico “Grand Ole Opry” e que iriam ajudar a transferir o centro nevrálgico deste tipo de música da região do Texas e do Okklahoma, para Nashville, que se tornaria a “Capital da Country Music”: Roy Acuff e os seus “Smoky Mountain Boys”, os Delmore Brothers, os Monroe Brothers, as “Coon Creek Girls” formadas em torno de Lily May Ledford, “The Blue Sky Boys”, Pee Wee King, etc


Mas que tudo começou em Bristol, nesse Verão de 1927, foi oficialmente reconhecido em 1998 pelo próprio Congresso Americano, que concedeu à cidade o direito de utilizar a expressão “Birthplace of Country Music”, que tão orgulhosamente ostenta.

Hoje Bristol é uma simpática cidadezinha de província, mas já não é a mais importante dos Apalaches.

Como homenagem às “Bristol Sessions” foi criado, em 2014, o “Birthplace of Country Music Museum”, um museu no qual se pode começar por perceber a evolução da tecnologia das gravações de música a partir dos anos 20 do século passado e passar em revista as principais gravações efetuadas, antes de se entrar no seu núcleo principal, que são as gravações realizadas por Ralph Peer nesse glorioso Verão de 1927. Aí podem ser ouvidas todas essas gravações e conhecida, em detalhe, a carreira de cada um dos seus intérpretes, bem como ser vistos alguns instrumentos musicais idênticos aos utilizados nessas gravações.

Na rua principal da cidade já não existe o armazém do nº 408, onde foram realizadas as gravações. No seu lugar está um parque de estacionamento, com uma enorme gravura mural alusiva ao evento.


E se me permitirem concluir, mudando radicalmente de conversa, contar-vos-ei ainda da maravilha que foi, depois de ter bebido uma boa cerveja, ter deparado nessa mesma “main street” com este magnífico exemplar de um Corvette C1, suponho que de 1958 ou 1959…!


A América também é isto e isto também é Cultura geral…!

PS:

As informações mais detalhadas foram obtidas no livro que acompanha o CD “The Bristol Sessions” que vos mostro, uma edição da “Country Music Foundation”.

Texto e fotografias de Luís Miguel Mira

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