sábado, 29 de agosto de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE…

Numa recente entrevista que o escultor Alberto Carneiro deu ao Público, Anabela Mota Ribeiro perguntou-lhe:

Lia livros?

Alberto Carneiro respondeu-lhe:

Li imenso. A Gulbenkian tinha bibliotecas itinerantes. A carrinha passava todos os meses por São Mamede e eu requisitava livros. Li sempre muito, desde criança. Foi isso que me abriu os horizontes. O que é que requisitava? Aquilino Ribeiro, Miguel Torga. Camões. Do Pessoa, não me lembro.

Inestimável papel aquele que as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian deram a este país que Salazar quis inculto, submisso, assustado. O suficiente era saber ler, escrever, contar, mas não valia a pena mais esforço. Havia campos para trabalhar, mares para pescar, gado para tratar, ruas para calcetar.

Mesmo os que sabiam ler, grande parte eram incapazes de compreender aquilo que liam.

Para Salazar, ser culto era um pecado mortal.

Camilo Castelo Branco em Os Vulcões de Lama:

A poderosa razão que o lavrador Roberto Rodrigues opunha para não mandar ensinar a ler o filho, era - que ele pai também não sabia ler, e mais arranjava lindamente a sua vida. Esta vinha a ser a razão capital, reforçada por outras subalternas e praticamente bastante persuasivas.
 - Se o rapaz souber ler – argumentava triunfantemente o idiota – assim que chegar a idade, às duas por três, fazem-no jurado, regedor, camarista, juiz ordinário, juiz de paz, juiz eleito. São favas contadas. Depois, enquanto ele vai à audiência ou à Camara, a Cabeçais daqui uma légua, os criados e os jornaleiros ferram-se a dormir a sesta de cangalhas à sombra dos carvalhos, e o arado fica também a dormir no rego. E ademais, isto de saber ler é meio caminho andado para  asno e vadio. E citava exemplos, personalizando meia dúzia de brejeiros que sabiam ler e eram mais asnos e vadios que os analfabetos.

Alberto Carneiro vivia numa aldeia perto do Porto, isolada, triste e a chegada das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian funcionou como um pauzinho na engrenagem, uma possibilidade de os imperativos de Salazar não terem resultados mais funestos.

É assim que a Gulbenkian faz o resumo das suas Bibliotecas Itinerantes:


«Ainda em 1958, baseado na experiência pioneira de Branquinho da Fonseca e sob a sua direcção, foi criado pela Fundação Calouste Gulbenkian, instituição privada, o Serviço de Bibliotecas Itinerantes, com o intuito de tentar resolver um problema: o da educação pós-escolar dos cidadãos.
As bibliotecas itinerantes ou carros-biblioteca levavam a bordo cerca de dois mil volumes arrumados nas estantes. Nas prateleiras de baixo, encontravam-se os livros para crianças, nas prateleiras do meio a literatura de ficção, de viagens e biografias e, por fim, nas de cima os livros menos procurados, de filosofia, poesia, ciência e técnica.
Em 1962 existiam 47 bibliotecas itinerantes, o número de leitores rondava os trezentos mil e os livros emprestados atingiam os 3 milhões.
Durante a ditadura salazarista, que assentava a sua acção na manutenção da censura e do obscurantismo da sociedade portuguesa, o livro e a leitura eram um luxo e também, uma actividade arriscada. Foi, no entanto, a acção levada a cabo pela Fundação Calouste Gulbenkian que dotou o país de uma rede de bibliotecas coerente, com o objectivo principal de alcançar e promover o gosto pela leitura.»

Uma explosão de memórias leva-me até aos jardins da infância.

Em alguns jardins de Lisboa, existia um pequeno armário cinzento com alguns livros, mas as leituras mais disputadas eram o Condor Popular e afins.

Um funcionário da Câmara zelava pelo serviço.

Deslocava-me, então, da Penha de França até ao Jardim Constantino para, nessas pequenas, mas úteis, bibliotecas ler o Condor Popular, o velho Mandrake e os seus passe de mágica

O Carlos Alberto, cujo pai tinha mais posses do que os pais dos outros putos da rua, fazia com que o Cavaleiro Andante e o Mundo de Aventuras, passassem de mão em mão. Nenhum exemplar podia ficar mais de um dia nas mãos de cada puto. Se isso acontecesse, o Carlos Alberto determinava que para o prevaricador não havia leitura na semana seguinte.


Ainda hoje, quando passo pelo jardim Constantino, olho o espaço onde se encontrava o armário dos livros e revistas, que foi o meu pontapé de saída para outras aventuras romanescas que tiveram como referências Emílio Salgari, Júlio Verne, Walter Scott, misturados com as aventuras dos Cinco.

Mais tarde vim a saber pelo José Gomes Ferreira, que foi o seu pai, Alexandre Ferreira, também fundador da Universidade Livre e da Associação dos  Inválidos do Comércio que, como vereador da Câmara Municipal, lançou a ideia de instalar bibliotecas nos jardins públicos:

«Bibliotecas onde os leitores poderiam não só requisitar os livros para ler ali mesmo, na dureza dos bancos, mas, quando o desejassem, levá-los para casa com a condição de devolvê-los no dia seguinte.»
 (1)

Em 1961 a Câmara Municipal de Lisboa lançou as Bibliotecas Itinerantes que percorriam os bairros de Lisboa.

Já depois do 25 de Abril, lembro-me de ver uma carrinha estacionada na Praça Paiva Couceiro, também encontrei uma outra no jardim junto à Igreja da Encarnação.

Em Fevereiro de 2011, o Partido Ecologista Os Verdes entregou na Assembleia Municipal de Lisboa um requerimento questionando a Câmara sobre as razões da suspensão do serviço de Bibliotecas Itinerantes.

Ao que parece a interrupção teve a ver com custos de reparação das viaturas.

Nos tempos de internetes e coisas-que-tais, as bibliotecas itinerantes viraram dinossauros.

Das Bibliotecas Itinerantes da Câmara Municipal de Lisboa nunca mais houve notícia.

Alguém na Câmara terá concluído que já ninguém se desloca a um jardim para ir buscar um livro para ler.

Altura ideal para cortar nas despesas e aplicar o dinheiro em folclore.

Sempre dá mais nas vistas!...

Na Feira do Livro do ano passado puseram lá uma dessas Bibliotecas Itinerantes.

Se já não foram extintas, estão em vias de…

Mas as Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian e da Câmara fazem parte do imaginário de gerações.

E não é sem emoção que esses tempos renascem como gratas memórias.

Final de O Raio Verde de Júlio Verne:

«- Mas com efeito, minha querida Helena – argumentou Olivier Sinclair -, não o vimos, esse raio que quisemos tanto ver!
- Vimo-lo melhor – disse baixinho a jovem senhora. – Vimos a felicidade, aquela que a lenda ligava à observação deste fenómeno!... Visto que o encontrámos, meu querido Olivier, que ele nos baste, e abandonemos aos que não o conhecem, e quiserem conhecê-lo, a busca do raio verde!»

(1) José Gomes Ferreira em Relatório de Sombras, Moraes Editores, Lisboa Setembro de 1980.


Texto publicado em 26 de Agosto de 2013

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