Há livros, lidos
há muito tempo, caídos no esquecimento e que voltamos a pegar, por vezes olhar,
só quando, por uma qualquer assombração, uma campainha toca, e dizemos:
- Eh pá! Eu já
li isto!
A campainha que
tocou, encontrei-a no livro do Mário de Carvalho Quem Disser o Contrário éPorque Tem Razão.
Escreve Mário de
Carvalho:
Muito curiosas as primeiras linhas de Nossa Senhora de
Paris, de Victor Hugo, com a obsessão enumerativa que prepondera em todo o
romance: «Faz hoje trezentos e quarenta e oito anos seis meses e dezanove dias
que os parisienses despertaram com a barulheira de todos os sinos a badalar…
O livro, dois
volumes, o primeiro com 294 páginas, o segundo com 352 páginas, cheias de uma
letra minúscula e que pertencem à Colecção Lusitânia da Livraria Lello &
Irmão, sem data de edição, sem indicação do tradutor, apenas a nota «Tradução
Cuidado», foi-me oferecido, em 1958, por ocasião dos meus 13 anos, pelo António
Colaço, um amigo do meu pai.
Que leva alguém a
oferecer, a um puto, um livro destes?
Que o leia,
naturalmente.
Senão aos 13,
aos 50, aos 75 anos, mas que o leia.
Ficou de lado à
espera de uma qualquer vontade.
Lembro-me de o
ler, não recordo com que idade, mas de certeza antes dos 22 anos.
Naquele tempo
era a leitura o que restava, mas poucos eram os privilegiados.
Não havia
televisão, apenas cinema ao sábado à noite ou domingo à tarde, futebol de 15 em
15 dias e como não era possível andar sempre a jogar à bola nas ruas, lia-se
tudo, passavam-se livros de mão em mão, assim um pouco, como, maravilhosamente,
contou Dinis Machado no capítulo Os rapazes dos livros, das fitas e da bola,
de Reduto Quase Final
Recordo a
leitura encantantória de Nossa Senhor de Paris, principalmente a partir
do livro Sétimo, quando o autor decreta dos perigos de confiar um segredo a uma
cabra.
Quasímodo, o
Corcunda enclausurado de Notre Dame, Esmeralda, a bela cigana, a história do
louco amor dele por ela, e apenas a
amizade dela por ele. Também o arcediago de Notre Dame, D. Claudio
Frollo , também ele , esquecendo Deus, perdido de amores pela bela cigana.
O entusiasmo
pelo livro teve um acalentamento suplementar, transformado em grata memória,
quando, no Cine-Oriente, princípios dos anos sessenta (1962?) vi o filme que
Jean Delannoy adaptou ao cinema, com a participação de Jacques Prévert, espaço
assombroso para uma deslumbrante Gina Lolobrigida e um excelente Anthony Queen.
Com os dois
volumes nas mãos, uma leve tentação para voltar a ler, mas aquela letra
miudinha fez desfalecer o pitosga que já sou.
Assim, en
passant, como dizem os franceses, perdi umas horas a (re)ler algumas páginas,
e deu-me para respigar da pág. 175 do 2º volume:
No dia seguinte pela manhã descobriu, ao despertar,
que tinha dormido. Já havia tanto tempo que se desabituara de dormir! Um alegre
raio de sol nascente entrava pelo postigo e vinha beijar-lhe o rosto. Ao mesmo
tempo que o Sol, viu nesse postigo um objecto que a encheu de medo; era o desventurado
rosto de Quasímodo. Involuntàriamente fechou os olhos, mas debalde; parecia
estar sempre a ver através das suas pálpebras cor-de-rosa aquela máscara de
gnomo, cego dum olho, com os dentes de fora. Então, conservando sempre os olhos
fechados, ouviu uma voz rude que dizia com muita meiguice:
- Não tenhais medo. Sou vosso amigo. Que eu venha
ver-vos dormir não vos faz mal, não é verdade? Que vos faz que eu esteja aqui
quando tendes os olhos fechados? Agora vou-me embora. Vede, pus-me por detrás
do muro. Podeis abrir os olhos.
Mais um pormenor
sobre a Nossa Senhora de Paris.
Durante anos, o
Paulo Rodrigues, que foi actor saído da Guilherme Cossoul, foi meu colega de
trabalho e, volta e meia, entre as diversas secretárias, percorria o espaço da
grande sala, fazendo de corcunda e coxo e a dizer:
«Mon seigneur.»
Um pormenor que
não diz nada a ninguém, mas que, agora que o lembro, me faz sorrir de ternura.
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