sábado, 25 de março de 2017

COMEÇOS DE LIVROS


Há livros, lidos há muito tempo, caídos no esquecimento e que voltamos a pegar, por vezes olhar, só quando, por uma qualquer assombração, uma campainha toca, e dizemos:

- Eh pá! Eu já li isto!

A campainha que tocou, encontrei-a no livro do Mário de Carvalho Quem Disser o Contrário éPorque Tem Razão.

Escreve Mário de Carvalho:

Muito curiosas as primeiras linhas de Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo, com a obsessão enumerativa que prepondera em todo o romance: «Faz hoje trezentos e quarenta e oito anos seis meses e dezanove dias que os parisienses despertaram com a barulheira de todos os sinos a badalar…


O livro, dois volumes, o primeiro com 294 páginas, o segundo com 352 páginas, cheias de uma letra minúscula e que pertencem à Colecção Lusitânia da Livraria Lello & Irmão, sem data de edição, sem indicação do tradutor, apenas a nota «Tradução Cuidado», foi-me oferecido, em 1958, por ocasião dos meus 13 anos, pelo António Colaço, um amigo do meu pai.

Que leva alguém a oferecer, a um puto, um livro destes?

Que o leia, naturalmente.

Senão aos 13, aos 50, aos 75 anos, mas que o leia.

Ficou de lado à espera de uma qualquer vontade.

Lembro-me de o ler, não recordo com que idade, mas de certeza antes dos 22 anos.

Naquele tempo era a leitura o que restava, mas poucos eram os privilegiados.

Não havia televisão, apenas cinema ao sábado à noite ou domingo à tarde, futebol de 15 em 15 dias e como não era possível andar sempre a jogar à bola nas ruas, lia-se tudo, passavam-se livros de mão em mão, assim um pouco, como, maravilhosamente, contou Dinis Machado no capítulo Os rapazes dos livros, das fitas e da bola, de Reduto Quase Final

Recordo a leitura encantantória de Nossa Senhor de Paris, principalmente a partir do livro Sétimo, quando o autor decreta dos perigos de confiar um segredo a uma cabra.

Quasímodo, o Corcunda enclausurado de Notre Dame, Esmeralda, a bela cigana, a história do louco amor dele por ela, e apenas a  amizade dela por ele. Também o arcediago de Notre Dame, D. Claudio Frollo , também ele , esquecendo Deus, perdido de amores pela bela cigana.

O entusiasmo pelo livro teve um acalentamento suplementar, transformado em grata memória, quando, no Cine-Oriente, princípios dos anos sessenta (1962?) vi o filme que Jean Delannoy adaptou ao cinema, com a participação de Jacques Prévert, espaço assombroso para uma deslumbrante Gina Lolobrigida e um excelente Anthony Queen.



Com os dois volumes nas mãos, uma leve tentação para voltar a ler, mas aquela letra miudinha fez desfalecer o pitosga que já sou.
Assim, en passant, como dizem os franceses, perdi umas horas a (re)ler algumas páginas, e deu-me para respigar da pág. 175 do 2º volume:

No dia seguinte pela manhã descobriu, ao despertar, que tinha dormido. Já havia tanto tempo que se desabituara de dormir! Um alegre raio de sol nascente entrava pelo postigo e vinha beijar-lhe o rosto. Ao mesmo tempo que o Sol, viu nesse postigo um objecto que a encheu de medo; era o desventurado rosto de Quasímodo. Involuntàriamente fechou os olhos, mas debalde; parecia estar sempre a ver através das suas pálpebras cor-de-rosa aquela máscara de gnomo, cego dum olho, com os dentes de fora. Então, conservando sempre os olhos fechados, ouviu uma voz rude que dizia com muita meiguice:
- Não tenhais medo. Sou vosso amigo. Que eu venha ver-vos dormir não vos faz mal, não é verdade? Que vos faz que eu esteja aqui quando tendes os olhos fechados? Agora vou-me embora. Vede, pus-me por detrás do muro. Podeis abrir os olhos.

Mais um pormenor sobre a Nossa Senhora de Paris.

Durante anos, o Paulo Rodrigues, que foi actor saído da Guilherme Cossoul, foi meu colega de trabalho e, volta e meia, entre as diversas secretárias, percorria o espaço da grande sala, fazendo de corcunda e coxo e a dizer:

«Mon seigneur.»
   
Um pormenor que não diz nada a ninguém, mas que, agora que o lembro, me faz sorrir de ternura.

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