quinta-feira, 30 de março de 2017

QUASE NINGUÉM ME ESCREVE



As amarguras do exilado José Rodrigues Miguéis, percorrem as diversas cartas que escreveu a José Saramago, enquanto editor da Estúdios Cor.

Findar de carta datada de 26 de Abril de 1961:

Só me arrelia saber que vou esperar agora mais UM MÊS pela sua próxima carta! É que quase ninguém me escreve: sinal dos tempos ou temporais.

Esperou mais de um mês.

Saramago escreve-lhe no dia 12 de Maio, outra carta a 26 do mesmo mês, mais uma a 30 de Junho. Miguéis responde a 3 de Julho, curta carta de Saramago a 31 de Julho, dando conta da venda dos livros de Miguéis e o envio de um cheque de 4 contos referente a direitos.

A 15 de Agosto escreve Miguéis:

Enquanto o avião vai e vem, folga o ocioso (EU) – Não lhe escrevo (raio de penas!!) para lhe forçar a mão a escrever-me pois bem imagino o que é a sua vida de trabalho. No entanto, neste violentamento cada vez maior e (pior), e no desgosto dos acontecimentos que me fazem sentir tão profundamente inútil como escritor – quanto como (ex-) homem de acção – sempre que me ocorrem ideias gosto de as lançar ao papel, amigo passivo e silencioso.

Mais um desabafo, no findar da carta:

Ainda haverá esperança para este desgraçado país? Quantos cadáveres passando por vivos! Espectros – nem sequer ibsenianos! – Quase ninguém me escreve, nem eu escrevo: isolado no corpo e no espírito. Mas inda resta em mim um pouco da vocação de Mártir…

Um mês depois desta carta, Miguéis entra sem paninhos quentes:

Como imagino de longe a COR muito corada de vergonha pelo abandono a que me tem votado, resolvi interromper o meu silêncio para os tirar do embaraço! Que se passa? Continuam a reorganizar o escritório? Viajam? Gozam férias? Arrepelam-se de crise? O calor dissolveu-os? – Os últimos cheques, com carta chegaram a 4 de Agosto. Todos os dias abro a caixa do Correio na esperança de notícias, uma palavra animadora, talvez um cheque – embora este último me chegue a parecer menos importante, apesar da situação em que vivo. (Tive de aceitar um trabalho técnico para obviar as despesas correntes, e cobrir o prejuízo do roubo de que fomos vítimas no domingo 30 de Julho: assaltaram a na/ casa, durante a n/ ausência, e roubaram-nos roupas (4 fatos meus), relógios, rádios, as poucas joias de minha mulher, etc. – ao todo algumas centenas de dólares; além dos estragos e despesas que fizemos a pôr fechaduras e trancas – depois da casa roubada…)

A 22 de Setembro, Saramago dá notícias, sinceras:

Oh, quão corado estou, realmente! De todo este mau proceder, bem me parece que sou eu o maior responsável. Da falta do envio das «massas» e do resto. Das «massas» porque tendo o Canhão e o Correia ido para férias, eu não tomei as devidas providências necessárias para que a conseguida regularidade de pagamentos não sofresse interrupção. Do resto, da falta de notícias tout court, devidas por todas as razões, que mais não fosse para o acompanhar nesse tremendo aborrecimento do roubo, ainda mais responsável sou. Mas caí naquela atitude cobarde de quem para não ter que dar uma explicação (aliás inevitável) acaba por agravar a situação. De tudo peço que me desculpe, ainda que reconheça que tem boas razões para estar magoado comigo.


Legenda: José Rodrigues Miguéis, desenho de André Carrilho

Sem comentários: