domingo, 7 de abril de 2019

SE A MINHA VIDA NÃO FOSSE UMA DIFICULDADE...


Carta, datada de 18 de Janeiro de 1959, de Jorge de Sena para António Ramos Rosa.

Sena informa que envia um poema para ser publicado nos Cadernos do Meio-Dia, publicação não periódica dirigida por António Ramos Rosa, Casimiro de Brito, Fernando Moreira Ferreira e Hernâni de Lencastre.

«Dos meus livros, só está esgotado Perseguição, embora os outros tenham levado mais ou menos sumiço, e eu não possua controlo da situação em que eles se encontram. Coroa da Terra foi editado por Lello & Irmão e ainda há alguns exemplares, que eu saiba. Juntamente lhe envio o exemplar da minha mulher para V. copiar dele o que quiser e mo devolver. Se a a minha vida não fosse uma dificuldade, teria o maior prazer em comprara um para lho oferecer
Quanto  à revista em que me fala, pela mesma razão não posso assiná-la. E colaborar regularmente também não posso prometer, esmagado como ando de encargos e compromissos.
Aqui lhe mando copiado o poema que me pede e é dos que não tiveram lugar em Fidelidade. Se possível gostaria de ver uma prova dele.
Abração com muita e grata estima o seu camarada

JORGE DE SENA

P.S. – O exemplar da Coroa, além do valor estimativo, é o único que possuo. Peço-lhe o maior cuidado no uso e na devolução dele.»

É este o poema publicado no nº 4 dos Cadernos do Meio-Dia, Fevereiro de 1959, poema incluído no Post-Scriptum de Poesia I (1961), com novo título:


 «Reconciliação».

DEPOIS DA ESPERANÇA, QUALQUER PAZ

Reconciliamo-nos sempre.
No fundo, e às vezes nem muito ao fundo,
a reconciliação nos espreita,
na mira da primeira fraqueza, da primeira humidade
de lágrima ou de sexo. Às vezes,
nem sequer disso: a poalha dispersa
que o sol define em branda agitação,
ou mesmo a própria luz num reflexo
(quanto mais breve e modesto melhor emociona)
lhe bastam.
Espreita-nos para que aceitemos, para que
pensemos noutra coisa ou nesse refúgio das pequenas coisas
que é, diz-se, não pensar em nada.
reconciliamo-nos pois. E amamos logo tudo,
ou, mais subtilmente, fingimos que do tudo
apenas uns sinais, algo de nobre
e muito humilde. Assim
como se a solidão se acompanhasse
de muitas outras reconciliações humanas, simultâneas,
paralelas, mas não connosco, de outrem.
Quase mais que a nossa própria nos espreita
a reconciliação, suposta apenas, de outros.

1958


Legenda: a capa de Coroa da Terra foi encontrada em gabrielagouveialivrosantigos.

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