quinta-feira, 25 de abril de 2019

EI-LA A CIDADE...


Quarenta e cinco anos.

Tão bem que ele sabe onde estava naquele 25 de Abril.

E como se lembra de como eram os dias e as noites antes dessa madrugada.

Vale a pena lembrar esse dia quando nos esquecemos de ensinar - ou não soubemos realizar a ensinança? – as gerações mais novas?

Em 1985, José Saramago perguntava-se:

«Escrever sobre o 25 de Abril, onze anos depois? Para quê? Assinalar a efeméride, cumprir o calendário, desfilar em manifestação, gritar a palavra de ordem? E que mãos? Repetir o discurso do ano passado, e do outro, e do outro, como se repetem os gestos, sem pensar neles? Lembrar, suspirando em comum, as esperanças que demos e as promessas que recebemos? Chorar sobre as torpezas e as traições?»

Em Abril de 1993, Carmélia Âmbar telefonou-lhe para dizer: «25 de Abril, sempre!» e acabou por deixar comentário nos Cadernos de Lanzarote:

«O entusiasmo de Carmélia, um entusiasmo de sobrevivente, deixou-me lamentavelmente frio.»

Mais tarde, na conversa que manteve com João Céu e Silva:

«…. eu já não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer coisa de que eu não posso ver nenhum sinal, porque tudo o que o 25 de Abril me trouxe desapareceu e não me digam que é porque temos a democracia.»

Lembra, agora, o primeiro poema que lhe saltou quando foi tomando conhecimento do que ia acontecendo, estava o tempo tão cinzento como o que vai fazendo, agora, por Lisboa:

Daniel Filipe em A Invenção do Amore e Outros Poemas

 Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma

em praças ruas becos boîtes e monumentos

Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote

Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria

e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone

Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida

esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
   
E do segundo.

José Saramago em Os Poemas Possíveis

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

José Saramago em Os Poemas Possíveis

O apagamento da memória?

Ir ao cemitério uma vez por ano pôr as flores onde entendermos que são justas?

Não, enquanto sentir o estrondo dos altos muros no tempo em que chegou o dia das surpresas, mesmo que adormecidos possam estar os amanhãs longe demais, como diria o outro!

Legenda:  pintura de Vieira da Silva

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