Quarenta e cinco
anos.
Tão bem que ele sabe
onde estava naquele 25 de Abril.
E como se lembra de
como eram os dias e as noites antes dessa madrugada.
Vale a pena lembrar
esse dia quando nos esquecemos de ensinar - ou não soubemos realizar a ensinança?
– as gerações mais novas?
Em 1985, José
Saramago perguntava-se:
«Escrever sobre o 25 de Abril, onze anos depois? Para quê? Assinalar a
efeméride, cumprir o calendário, desfilar em manifestação, gritar a palavra de
ordem? E que mãos? Repetir o discurso do ano passado, e do outro, e do outro,
como se repetem os gestos, sem pensar neles? Lembrar, suspirando em comum, as
esperanças que demos e as promessas que recebemos? Chorar sobre as torpezas e
as traições?»
Em Abril de 1993, Carmélia
Âmbar telefonou-lhe para dizer: «25 de
Abril, sempre!» e acabou por deixar comentário nos Cadernos de Lanzarote:
«O entusiasmo de Carmélia, um entusiasmo de sobrevivente, deixou-me
lamentavelmente frio.»
Mais tarde, na
conversa que manteve com João Céu e Silva:
«…. eu já não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável
celebrando qualquer coisa de que eu não posso ver nenhum sinal, porque tudo o
que o 25 de Abril me trouxe desapareceu e não me digam que é porque temos a
democracia.»
Lembra, agora, o primeiro
poema que lhe saltou quando foi tomando conhecimento do que ia acontecendo,
estava o tempo tão cinzento como o que vai fazendo, agora, por Lisboa:
Daniel Filipe em A Invenção do Amore e Outros Poemas
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos
Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone
Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos
Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone
Ei-la a que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
E do segundo.
José Saramago em Os Poemas Possíveis
Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.
Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.
A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.
Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.
José Saramago em Os Poemas Possíveis
O apagamento da memória?
Ir ao cemitério uma vez por ano pôr as flores onde entendermos que são
justas?
Não, enquanto sentir
o estrondo dos altos muros no tempo em que chegou o dia das surpresas, mesmo
que adormecidos possam estar os amanhãs longe demais, como diria o outro!
Legenda: pintura de Vieira da Silva
Sem comentários:
Enviar um comentário